ANPP: benefício ao infrator ou ao Estado?
27 de maio de 2025, 6h03
Certamente, muitos irão responder que o acordo de não persecução penal (ANPP) é um benefício ao investigado, afinal, é isso que comumente se diz, dada sua natureza negocial, geralmente ligada à ideia de benesse estatal.
No entanto, não é essa a resposta que se obtém ao serem analisadas as estatísticas de eficiência sancionatória do Poder Judiciário brasileiro, extraídas do robusto artigo publicado na última edição da Economic Analysis of Law Review [1] e que colocam o ANPP como a ferramenta de maior poder de sancionamento do sistema de persecução penal brasileiro, especialmente quando comparado com a imposição de penas por provimentos condenatórios.
Base de dados estatísticos
A base de dados da pesquisa considerou imputações criminais sentenciadas em 1º grau na Justiça Federal entre os anos de 2015 e 2017, logo, quando ainda não existia o ANPP. Também foram reunidos os respectivos resultados sancionatórios em 2º grau pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Paralelamente, a pesquisa coletou os resultados sancionatórios de audiências para tentativa de celebração do ANPP, realizadas entre 01.2020 e 10.2022, também em 1ª grau da Justiça Federal.
Sob tais parâmetros, foram obtidas: 1) 981 imputações criminais, egressas de 289 processos criminais, universo que englobou 588 réus e 2) 132 propostas de ANPP apresentadas pelo Ministério Público Federal.
Resultado sancionador do processo penal
O estudo estatístico apurou o resultado sancionador até 2º grau de cada uma das 981 imputações criminais sem a vigência do ANPP, alcançando os seguintes dados: 283 absolvições, 464 prescrições (in abstrato e in concreto), 36 falecimentos dos réus, 77 condenações e 77 casos de obrigações negociais em transação penal ou suspensão condicional do processo.
Foram encontradas ainda 43 condenações e uma absolvição pendentes de recurso, às quais foi aplicado o índice de reversibilidade de recursos junto ao TRF-1 [2], o que finalizou o montante de 7 prováveis inversões de condenação em absolvição, 36 casos em que se projeta a manutenção da condenação fixada na sentença e a estimativa de manutenção da única absolvição desafiada por recurso da acusação.
Portanto, a efetiva imposição de sanção penal (ainda sem o advento do ANPP), resultado que vai muito além da mera existência de condenação, haja vista a possibilidade de determinada condenação não ser aplicada diante da prescrição das pena in concreto, ocorreu em 113 casos decorrentes de título condenatório exequível e 77 obrigações em justiça negocial (transação penal ou suspensão condicional do processo), o que revela um índice de 19% de sancionamento geral.
Isto é, o processo criminal brasileiro na esfera federal, quando não vigente o ANPP, apresentava a capacidade de impor sanções penais aos acusados em 19% dos casos, considerando tanto os casos em que a sanção nasce de um provimento judicial condenatório (pena), como das ferramentas de acordo penal então existentes (obrigação penal).
Porém, para aferir a capacidade de o Estado em impor sanções coercitivamente, sem qualquer modalidade de negociação com o réu, necessário extraírem os 77 casos decorrentes de transação penal ou suspensão condicional do processo. Nessa ótica, o índice de sancionamento real do processo penal em sentido estrito fica em 12% [3] (904 imputações e 113 sancionamentos). Em outras palavras, o Estado Brasileiro, em âmbito federal, somente consegue impor e executar uma sanção penal exigível, independente da vontade do acusado, em 12% dos casos.
Resultado sancionador do ANPP
A obtenção do resultado sancionador do ANPP utilizou unidade judiciária da Justiça Federal que realizava audiências judiciais para a apresentação de todas as propostas de ANPP aos investigados, já que o MPF não as realizava extrajudicialmente, o que permitiu extrair a real capacidade de sancionamento do novo instituto negocial. Portanto, o meio de coleta de dados de sancionamento do ANPP eram efetivas audiências de tentativa de acordo e não, simplesmente, homologatórias.

Das 132 propostas de ANPP, 119 réus anuíram em celebrar o acordo para cumprir obrigações penais em consequência da denúncia criminal apresentada pelo Ministério Público, resultando um índice de sancionamento de 90%.
Da pequena fatia de 10% em que não houve acordo penal, 77% recusaram o ajuste por contrariedade à exigência da confissão da prática criminosa, ainda que tal admissão criminal não gere efeitos práticos desfavoráveis.
Paralelamente, todos os casos em que houve a recusa do investigado em pactuar o ANPP se relacionaram ao cometimento de crimes econômicos, o que pode revelar a maior racionalidade desse grupo criminoso, ao preferir se submeter à via processual criminal tradicional, que apresenta menor índice de sancionamento geral (12%).
Impacto do ANPP em acervos processuais criminais
Para avaliar os efeitos do ANPP na capacidade sancionatória do Estado, imprescindível que fosse medida a compatibilidade do instituto com a realidade criminológica das denúncias que compõe o acervo criminal da Justiça Federal.
No ponto, o índice de compatibilidade do ANPP foi construído sob o prisma de cada acusado, posto que eventual concurso de crimes pode gerar uma sanção penal final que ultrapassa o limite legal de pena mínima de 4 anos, fator barreira para incidência do novo instituto negocial.
A pesquisa então realizou a análise de aplicabilidade do ANPP àquelas 981 imputações penais sentenciadas em 1º grau na Justiça Federal entre os anos de 2015 e 2017, quando o instituto do ANPP ainda não existia, a fim de mensurar o impacto que o ANPP poderia gerar nos resultados sancionadores que esses processos penais obtiveram pela via coercitiva.
A partir do universo de 588 réus, a base de dados da pesquisa evidenciou a compatibilidade objetiva do ANPP com 385 acusados (para 179 réus o ANPP não foi aplicável e 24 infratores foram beneficiados com transação penal, que é prioritária em relação ao ANPP), o que representou o percentual de 65% de compatibilidade.
Quem é o maior beneficiário do ANPP?
A pesquisa demonstrou que, em 65% dos casos em tramitação na Justiça Federal, pode-se elevar o índice máximo de sancionamento de 19% (índice de sancionamento geral sem o ANPP) para 90% (índice de sancionamento do ANPP), o que gera a projeção do índice ponderado de sancionamento máximo com a incorporação do ANPP para 65%, mais que o triplo dos 19% até então existentes.
Portanto, facilmente respondemos à indagação inicial desse artigo: o Estado é o maior beneficiário do ANPP, que substitui a antiga probabilidade de 19% de sancionar o infrator por 65% de chances de impor alguma forma de sanção, ainda que negociada.
Importante considerar que o aumento do grau de sancionamento de determinado sistema de justiça criminal eleva a percepção da punição pelos infratores, produzindo uma diminuição da criminalidade agregada [4], como se fosse a elevação do preço de uma mercadoria pelo consumidor, ou seja, o aumento do preço do crime [5].
Depois de todas essas análises, há de se ter muitas reservas ao considerar que determinado infrator não merece ser “beneficiado” pelo ANPP, sob o fundamento de que aquela conduta exige uma “maior reprimenda” do Estado.
Primeiramente, porque repreensão, então decorrente do processo criminal de forma coercitiva, somente ocorrerá em 12% dos casos, enquanto a via negocial tem capacidade de gerar sancionamento em 90% pelo ANPP e pactuando obrigações penais bem semelhantes àquelas penas que iriam findar pela via coercitiva.
Em segundo plano, as estatísticas demonstraram que o maior beneficiário do ANPP não é o investigado, mas o Estado, que, a partir do ANPP, obtém o triplo de chances de sancionar o infrator (12% para 65% de possibilidade), além de elevar a dissuasão criminal, em razão do incremento da percepção de punição pelos criminosos.
Portanto, quando ouvir alguém afirmar que não cabe o ANPP a determinado caso, pois a conduta infracional exige mais rigor, melhor advertir o interlocutor que os resultados sancionatórios reais do nosso sistema criminal dizem justamente o contrário: os casos mais graves, que requerem maior reprimenda do Estado, estão sob o manto de ferramenta processual de menor eficiência, cujos acusados possuem maiores chances de não serem sancionados.
A jurimetria apresentada ensina que nem sempre mais rigor processual significa obter um melhor resultado penal, conclusão que nos faz refletir sobre a necessidade de expansão das ferramentas negociais penais no Brasil, alcançando delitos mais graves, como ocorre em ordenamentos jurídicos estrangeiros.
[1] HONORATO, M.; MENEGUIN, F. A retroatividade do acordo de não persecução penal pela teoria econômica do crime. Economic Analysis of Law Review. Brasília, v. 15, n. 1, p. 98-125, ago. 2024. Disponível aqui.
[2] Índice de reversibilidade de recurso no TRF1 também foi medido na pesquisa acima citada.
[3] O índice de 12% de sancionamento geral deve ser considerado um valor máximo, já que a eventual prescrição da pretensão executória do Estado não foi aferida pela pesquisa, o que pode degradar ainda mais esse índice.
[4] COOTER, R.; ULEN, T. Direito e economia. 5a ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.
[5] BECKER, G. Crime and punishment: an economic approach. The Journal of Political Economy, v. 76, 1968.
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