Opinião

Advocacia pública e OAB: identidade, defesa e pertencimento

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27 de maio de 2025, 20h41

No último dia 8 de maio, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do Recurso Extraordinário nº 609.517/RO, com repercussão geral reconhecida (Tema 936), que discute a obrigatoriedade da inscrição do advogado público nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.

O ministro Cristiano Zanin, relator do RE nº 609.517/RO, votou no sentido de negar provimento ao recurso, propondo a tese de que “é inconstitucional, por violar o art. 131 da CF/1988, a exigência de inscrição do Advogado Público nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil para o exercício das atividades inerentes ao cargo público”. Seu entendimento foi acompanhado pelos ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Flávio Dino. O ministro Luiz Fux deu provimento parcial ao recurso, nos termos do seu voto. Divergiram os ministros Edson Fachin, André Mendonça, Nunes Marques, ao defenderem a compulsoriedade da inscrição do advogado público na OAB. O julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Dias Toffoli, e a ministra Cármen Lúcia ainda não votou.

Este breve texto busca contribuir para o debate sobre a essencialidade da Ordem dos Advogados do Brasil na arquitetura institucional brasileira e refletir por que a inscrição dos advogados públicos nos quadros da OAB é indispensável à coerência constitucional do Estado Democrático de Direito.

A OAB como instituição constitucional

A OAB não é “apenas” um conselho profissional. Ainda que exerça o importante papel de entidade de classe – como o registro, a fiscalização e a disciplina do exercício da advocacia –, sua missão vai muito além. O artigo 133 da Constituição estabelece que “o advogado é indispensável à administração da justiça(…)”. E, se o advogado é assim definido, é porque a sua atuação transcende interesses específicos: ele é instrumento de realização da justiça e de defesa dos direitos fundamentais.

A Ordem dos Advogados do Brasil, nesse contexto, é muito mais que um órgão de classe: é uma instituição com dimensão constitucional que atua em nome da sociedade civil na defesa da ordem jurídica e dos valores democráticos. É, por exemplo, a única entidade de fiscalização profissional com legitimidade ativa para ajuizar ações diretas de inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade (artigo 103, VII, da CF), dispensada, inclusive, de demonstrar pertinência temática – possui legitimidade ativa universal, conforme jurisprudência pacífica do STF.

Além disso, como observou a Advogada da União Flávia Santiago Lima, em interessante artigo intitulado “O papel constitucional da OAB na ‘pátria dos advogados’” [1], os termos “Conselho Federal da OAB”, “advocacia” e “OAB” aparecem 42 vezes no texto da Constituição de 1988 – número expressivo que denota a densidade institucional da Ordem dos Advogados do Brasil na estrutura constitucional brasileira.

Advocacia pública: parte da advocacia, não à parte da advocacia

A advocacia pública está inserida no rol das funções essenciais à Justiça e tem a missão de concretizar direitos fundamentais – “Os procuradores municipais integram a categoria da Advocacia Pública inserida pela Constituição da República dentre as cognominadas funções essenciais à Justiça, na medida em que também atuam para a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito” (RE 669.663/MG). Essa função é absolutamente compatível com a razão de ser da OAB. Mais do que compatível, é convergente. Ao analisar o capítulo IV da Constituição, inserido do Título IV “Da Organização dos Poderes”, que trata das funções essenciais à Justiça como essenciais à própria estruturação dos Poderes na nova compleição constitucional inaugurada em 1988, Diogo de Figueiredo Moreira Neto[2] explica o sentido uno da advocacia no texto constitucional:

“Devolvendo-se o poder à sociedade, resulta consequente que, também, paralelamente à diversificação das categorias de interesse e de seus polos de exercício, multiplicaram-se e especializaram-se as funções de controle: preventivas e repressivas; fiscalizatórias, postulatórias e corretivas; parlamentares, administrativas e judiciárias. Toda essa complexificação substantiva e formal, exigiu a extensão do princípio da defesa técnica, para que se pudesse manter a igualdade de oportunidade, a plenitude do direito de defesa e a observância do devido processo legal – tudo constitucionalmente assegurado. (…)

Dessa colocação, resulta que as funções essenciais à justiça se constituem num conjunto de atividades políticas preventivas e postulatórias através das quais interesses juridicamente reconhecidos são identificados, acautelados, promovidos e defendidos por órgãos tecnicamente habilitados, sob garantias constitucionais.

Todas essas funções competem à advocacia aqui tomada em seu sentido amplo, envolvendo atividades preventivas (consultoria) ou postulatórias (representação); privada ou pública. (…)”

A unidade da advocacia é princípio estruturante. Não existe advocacia pública apartada da advocacia. Assim como não há advocacia privada dissociada da advocacia. Ambas são expressões de uma mesma profissão, com identidade jurídica comum, embora com especificidades funcionais.

Spacca

A advocacia, portanto, é nacional.

Observe-se que a Lei Federal nº 8.906, de 04 de julho de 1994, não por acaso, dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. É dizer, essa lei não trata apenas da Ordem dos Advogados do Brasil. Trata também, e acertadamente, da advocacia. É uma lei de regência impositiva à advocacia nacional, disciplinando, de forma geral, direitos, deveres e prerrogativas dos seus profissionais – advogados públicos e advogados privados.

A inscrição dos advogados públicos na OAB, nesse contexto, representa muito além de um dever. É pertencimento institucional. É ela que conecta os advogados públicos a sua origem, ao seu DNA: a advocacia. É pertencimento e conexão à sua comunidade jurídica, ao seu espaço plural de diálogo, de defesa de prerrogativas e de fortalecimento democrático. Em tempos de complexidade institucional e desafios à democracia, essa conexão é fundamental. A inscrição obrigatória, portanto, evita o isolacionismo da advocacia pública e impede a desconexão ao seu sentido existencial, que reside em ser uma função indispensável à efetivação dos direitos fundamentais.

Assim, e com respeito aos que pensam diferente, não há conflito entre a Constituição e o artigo 3º da Lei 8.906/94. Ao contrário, há complementaridade. A inscrição do advogado público na OAB não nega a sua vinculação a um regime jurídico administrativo próprio, mas sim reforça, nas linhas acima traçadas, sua natureza profissional e sua vinculação às regras éticas, técnicas e deontológicas da advocacia nacional.

Nesse sentido, a teor do disposto no artigo 5º, XIII da Constituição, o exercício de qualquer profissão, direito fundamental assegurado a todos os brasileiros, está delimitado “às qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Sendo a advocacia uma profissão (gênero), pode ser exercida por meio de carreira de Estado (advocacia pública), de forma autônoma ou por vínculo contratual privado (espécies). Há também que se atentar que não existe submissão facultativa às condições para o exercício profissional, ou à fiscalização pela entidade criada por lei para essa finalidade, além da disparidade entre os profissionais a que tal condição levaria. Não se trata apenas do aspecto associativo, âmbito da autonomia da vontade, mas de um regime jurídico de direitos e deveres atinentes ao exercício da profissão, normas de ordem pública e caráter cogente contidas na Lei federal 8.906/94, cuja raiz é a Constituição.

O próprio Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 2.652/DF, de relatoria do ministro Maurício Corrêa, entendeu que os advogados públicos, ainda que submetidos a regimes estatutários próprios, estão igualmente sujeitos ao Estatuto da Advocacia e da OAB.

Nesse julgado, o Pleno do STF, de forma unânime, afastou aplicação de multa estabelecida no Código de Processo Civil vigente à época (CPC de 1973) aos advogados públicos: “(…) dar interpretação ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil conforme a Constituição Federal e declarar que a ressalva contida na parte inicial desse artigo alcança todos os advogados, com esse título atuando em juízo, independentemente de estarem sujeitos também a outros regimes jurídicos”.

Por uma questão de didática e pela importância do julgado e sua pertinência temática, transcrevemos trechos dos memoriais da Associação Nacional das Procuradoras e dos Procuradores Municipais (ANPM), elaborados pelo escritório Souza Neto e Tartarini Advogados e apresentados para colaborar no debate do julgamento do RE nº 609.517/RO:

“9. Importante pontuar, por fim, que por ocasião da ADI 2652/DF, de relatoria do Ex. Min. Maurício Corrêa, este Eg. Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, julgou procedente o pedido para fins de, empregando interpretação conforme ao artigo 14, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 1973, estabelecer que os advogados públicos não se submetem à imposição de multa prevista na dita legislação, justamente por estarem sujeitos ao Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. Transcreve-se a ementa da ADI 2652/DF:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO AO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 14 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, NA REDAÇÁO DADA PELA LEI 10358/2001. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Impugnação ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil, na parte em que ressalva “os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB” da imposição de multa por obstrução à Justiça. Discriminação em relação aos advogados vinculados a entes estatais, que estão submetidos a regime estatutário próprio da entidade. Violação ao princípio da isonomia e ao da inviolabilidade no exercício da profissão. Interpretação adequada, para afastar o injustificado discrímen. 2. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente para, sem redução de texto, dar interpretação ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil conforme a Constituição Federal e declarar que a ressalva contida na parte inicial desse artigo alcança todos os advogados, com esse título atuando em juízo, independentemente de estarem sujeitos também a outros regimes jurídicos.(ADI 2652, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 08-05-2003, DJ 14-11-2003 PP-00014  EMENT VOL-02132-13 PP-02491- Grifou-se)

10. A ratio decidendi da ADI 2652/DF é a sujeição dos advogados públicos – tanto quanto dos demais advogados – ao estatuto da OAB, e em razão disso inaplicável a sanção prevista no Código de Processo Civil. Se é assim e nessa exata medida, imperativo a inscrição dos advogados públicos nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil para o exercício de suas funções públicas.

11. Por oportuno, esclarecedor e didático o voto do Ex. Min. Maurício Corrêa na citada ADI 2652/DF:

Com efeito, seria mesmo um absurdo concluir que o legislador tenha pretendido excluir da ressalva os advogados sujeitos a outros regimes jurídicos, além daquele instituído pelo Estatuto da OAB, como ocorre, por exemplo, com os profissionais da advocacia que a exercem na condição de servidores públicos. Embora submetidos à legislação específica que regula tal exercício, também devem observância ao regime próprio do ente público contratante. Nem por isso, entretanto, deixar de gozar das prerrogativas, direitos e deveres dos advogados, estando sujeitos à disciplina própria da profissão (Estatuto da OAB, artigos 3º, §1º; e 18º)”.

Reflexões finais

A obrigatoriedade da inscrição dos advogados públicos na OAB não é uma mera formalidade administrativa, tampouco uma faculdade. Trata-se de um imperativo democrático e institucional. Trata-se de uma exigência que decorre e é inerente à própria atividade que ela exerce – advocacia –, guardando relação de pertinência com seu propósito existencial: “a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito”.

E, se ainda nos faltassem palavras conclusivas, recordamos os versos do cordel de Mariane Bigio, sob o título “A Essencialidade da Advocacia Pública Municipal para as Cidades”, apresentado na abertura do XVII Congresso Brasileiro de Procuradoras e Procuradores Municipais, realizado em novembro de 2022, no Recife:

“(…)

E também a OAB
Casa da Advocacia
É nosso espaço de luta,
De encontro e de parceria

(…)”

Ali está o espírito que nos guia: somos parte de uma só advocacia. Uma advocacia que se reconhece na OAB, que nela encontra identidade, defesa e pertencimento.

 


[1] LIMA, Flávia Santiago. O papel constitucional da OAB na pátria dos advogados. Jota. Disponível em: https://www.jota.info/colunas/observatorio-constitucional/o-papel-constitucional-da-oab-na-patria-dos-advogados. Acesso em: 18/05/2025, 14:30h

[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais; Revista de informação legislativa, v. 29, n. 116, p. 79-102, out./dez. 1992 | Revista de direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, n. 45, p. 41-57, 1992 | Revista de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, n. 14, p. 41-56, jan./mar. 1993. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/175998. Acesso em 22/05/2025, 10:40h.

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