Opinião

Responsabilidade civil médica: o que os tribunais estão realmente dizendo sobre hospitais e médicos

Autor

  • é advogado sócio do escritório de advocacia A. C. Burlamaqui Consultores mestre em Direito Civil Contemporâneo pela PUC-Rio especialista em Direito Civil Constitucional pela UERJ e autor do romance policial "Cartas Marcadas".

    Ver todos os posts

26 de maio de 2025, 15h17

A responsabilização civil por erro médico tem evoluído para muito além da análise meramente técnica da conduta do profissional de saúde. A jurisprudência brasileira tem consolidado um entendimento que desafia a antiga separação estanque entre responsabilidade subjetiva do médico e responsabilidade objetiva do hospital. Mais que uma questão de culpa, o debate gira em torno da arquitetura contratual que estrutura a prestação dos serviços de saúde.

Freepik
Juíza explicou que ações por eventuais erros médicos ocorridos na rede pública devem ser ajuizadas contra o Estado e não contra o médico

Nos tribunais superiores, é crescente o reconhecimento da responsabilidade solidária entre médicos e hospitais em casos de falhas na prestação do serviço. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) tem sido determinante nesse processo. O artigo 14 da norma prevê que os fornecedores respondem, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos na prestação dos serviços. Isso inclui não apenas falhas técnicas, mas também vícios informacionais, como a ausência de consentimento informado.

Essa lógica impõe ao hospital um duplo papel: prestador direto de serviços auxiliares (como infraestrutura, higienização e insumos) e responsável indireto por atos praticados por profissionais com os quais mantém relação de subordinação ou dependência econômica. A relação jurídica entre médico e hospital, portanto, passa a ser central para a análise de responsabilização solidária.

O Superior Tribunal de Justiça tem reafirmado que, quando o médico está vinculado ao hospital — seja por vínculo empregatício, seja por contrato de prestação continuada de serviços — ambos respondem conjuntamente pelos danos causados, desde que demonstrada a culpa do profissional. Já nos casos em que o hospital apenas cede estrutura e o médico atua como profissional autônomo, a instituição tende a ser exonerada da responsabilidade técnica, respondendo apenas por eventuais falhas nos serviços acessórios.

Do ponto de vista processual, essa configuração tem impacto direto na tramitação das ações judiciais. O STJ restringe a admissibilidade da denunciação da lide, mecanismo por meio do qual o réu busca trazer ao processo um terceiro potencialmente responsável, em demandas consumeristas, justamente para preservar a celeridade e a efetividade da tutela jurisdicional. Ainda assim, em casos excepcionais, o tribunal admite a análise casuística da questão, sobretudo quando o hospital é demandado por suposta falha de terceiro com o qual mantém vínculo jurídico.

Seguros e consentimento informado

Esse cenário tem repercussões relevantes também nas relações de trabalho no setor da saúde. A pressão por eficiência e mitigação de riscos tem levado hospitais a reverem seus contratos com médicos, adotando cláusulas que delimitam com mais precisão os campos de responsabilidade técnica, administrativa e jurídica. Em paralelo, cresce o número de profissionais que contratam seguros de responsabilidade civil, como forma de proteção patrimonial e, em muitos casos, como pré-requisito para atuação em instituições de maior porte.

Spacca

No campo preventivo, a exigência do termo de consentimento informado tem se tornado um divisor de águas. A sua ausência, ainda que o procedimento tenha sido tecnicamente correto, pode levar à condenação por danos morais, como já reconhecido em diversos acórdãos. O documento não é mera formalidade, mas expressão do dever de informação previsto no CDC e no Código de Ética Médica. A judicialização da Medicina, nesse ponto, não decorre de um suposto excesso de litigância, mas da omissão reiterada em comunicar riscos de forma clara e acessível.

Novos padrões

A consequência mais relevante dessa nova realidade não é apenas o aumento do número de demandas judiciais, mas a reestruturação dos próprios padrões de atendimento. Hospitais têm investido na padronização de protocolos clínicos, em auditorias internas e em programas contínuos de capacitação profissional — não como iniciativas de marketing institucional, mas como instrumentos de gestão de risco jurídico.

Ao deslocar o centro da análise jurídica do ato médico isolado para o conjunto das relações jurídicas que compõem o atendimento em saúde, os tribunais têm contribuído para um novo paradigma. Trata-se de uma medicina cada vez menos centrada na figura do médico como único responsável e mais orientada à estrutura organizacional da saúde como um sistema integrado de prestação de serviços. Essa é, talvez, a mudança mais estrutural em curso no campo da responsabilidade civil médica.

Autores

  • é sócio do escritório de advocacia A. C. Burlamaqui Consultores, mestre em Direito Civil Contemporâneo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), especialista em Direito Civil Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (RJ), membro da Comissão de Direito Médico da OAB-RJ e autor do romance policial Cartas Marcadas e de artigos jurídicos publicados em revistas especializadas.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!