Opinião

IA no Direito: estamos construindo pontes ou erguendo muros?

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26 de maio de 2025, 13h18

A rápida expansão do uso de ferramentas de inteligência artificial (IA) no cotidiano jurídico tem revelado, de forma cada vez mais evidente, as dificuldades que os operadores do Direito têm para lidar com conceitos oriundos de outros campos do conhecimento e para estabelecer um diálogo efetivo com esses saberes, evidenciando, na prática, o isolamento em que a área se encontra [1].

Reprodução
OAB Nacional aprovou recomendações para uso de inteligência artificial regenerativa na prática da advocacia

Diante desse cenário, vimos insistindo em um ponto que, embora incômodo para alguns, precisa ser apontado: o debate jurídico sobre IA tem sido conduzido com um nível de superficialidade preocupante que vem se refletindo não apenas às conversas informais, mas também nos diversos artigos, eventos, livros e discussões que buscam abordar o tema [2] [3].

O mais alarmante, porém, é que essa limitação de conhecimentos técnicos não tem inibido a produção de artigos, entrevistas e palestras recheadas de afirmações categóricas sobre como deve se dar o uso de IA no universo jurídico tomando por base apenas experiências mínimas ou pouco estruturadas [4].

As consequências desse fenômeno dentro do ambiente jurídico são inúmeras, mas pode-se destacar como a mais imediata delas o surgimento de uma série de políticas públicas e regulamentações que negligenciam conceitos básicos sobre o funcionamento dos LLMs ou, pior ainda, que interpretam esses conceitos de formas mirabolantes e descoladas da realidade levando a criação de obrigações impossíveis de serem cumpridas, discussões inócuas ou ideações pouco relevantes para a prática.

Spacca

Tal cenário não afeta apenas o universo jurídico, mas sim toda a sociedade e, em especial, os desenvolvedores de modelos e aplicações envolvendo IA que, confusos acerca de como implementar os conceitos vagos e pouco precisos estipulados pelos juristas acabam por serem inseridos em uma posição de paralisia assim que buscam consultar um operador do Direito para entender como, na prática, poderiam garantir que suas novas criações sigam o ordenamento jurídico brasileiro [5].

O efeito disso, em um mundo hiperconectado e rápido como o que vivemos é cruel e já conhecido: fuga de capital intelectual [6], incapacidade do nosso país de competir em larga escala a nível internacional com países como EUA e China [7], uma indústria de tecnologia atrofiada etc.

Longe de buscar afirmar que o direito é o grande ou o único causador das dificuldades do Brasil em competir a nível internacional [8] no mercado de produção ou refinamento de modelos de IA a dúvida que o presente texto busca levantar é a seguinte: Como o Direito poderia agir para incentivar esse desenvolvimento ou, ao menos, não soterrar ele abaixo de uma infinidade de normas e obrigações que sequer são tecnicamente viáveis? [9].

Sugestões

Por óbvio essa não é uma questão fácil de ser solucionada e seria bastante leviano acreditar que uma resposta como essa poderia ser dada em um texto tão curto. Não obstante essas dificuldades, abaixo elencar-se-ão algumas ideias que, na visão dos autores poderiam, ao menos, serem debatidas com um pouco mais de afinco pela comunidade jurídica para quem sabe, levar a um amadurecimento nos debates sendo propostos nos diversos círculos jurídicos:

1) Refletir sobre a importância do conhecimento técnico nas discussões sobre IA: Talvez seja útil considerar que, para discutir inteligência artificial com propriedade, é necessário algum grau de entendimento técnico que ultrapasse o básico. Juristas em geral, mas especialmente aqueles em posição de gestão e de produção de conteúdo, devem reconhecer que falar de IA exige estudo aprofundado. Opinar de forma taxativa sem conhecer os fundamentos técnicos dos modelos pode gerar desinformação e problemas de larga escala. Buscar aprender com quem desenvolve e pesquisa IA não é um luxo, é algo essencial [10];

2) Evitar uma Regulação Baseada no Medo: Para os que veem a IA com desconfiança pode ser proveitoso refletir sobre o equilíbrio entre proteção de direitos e fomento ao desenvolvimento tecnológico. Proteger direitos é crucial, mas isso não pode ser feito ao custo de inviabilizar completamente o desenvolvimento tecnológico no Brasil ou fomentar uma cultura de “algoritmofobia” [11];

3) Reconhecer as limitações das novas tecnologias: Para os que, por exemplo, veem os LLMs como solução para todos os problemas do direito, talvez seja importante lembrar que essas ferramentas têm suas limitações e operam com base em análises probabilísticas. Pode ser recomendável, portanto, que políticas de gestão baseadas em IA sejam desenhadas de maneira cuidadosa, evitando a perpetuação de vieses e preconceitos.;

4) Repensar a educação jurídica: No campo educacional, professores poderiam considerar a possibilidade de incluir conhecimentos interdisciplinares sobre IA e tecnologia sem medo de enfraquecer a formação dos alunos. Ao contrário, isso pode prepará-los melhor para uma sociedade em constante transformação.

Para concluir, é importante esclarecer que este texto não busca atacar a classe dos operadores do direito — da qual também fazemos parte — nem criticar qualquer agente específico. A intenção é fazer um apelo: precisamos ir além de cursos sobre “como escrever bons prompts” e dos cursos sobre “IA no Direito”, a sociedade necessita que nos tornemos melhores e mais qualificados e não temos tempo para fugir dessa responsabilidade.

O uso responsável de modelos de IA exige uma abordagem verdadeiramente multidisciplinar. A sociedade precisa que aprimoremos nosso diálogo com a área de tecnologia e isso não será possível enquanto permanecermos isolados em nossos escritórios e gabinetes.

 


Referências

EIGEN, Zev J. Algoritmofobia: superando seu medo de algoritmos e inteligência artificial. Boletim Revista dos Tribunais Online, vol. 8, out. 2020.

FERNANDEZ, Atahualpa. A (anti) interdisciplinaridade do direito: um “cemitério de ideias mortas”. Derecho y Cambio Social, [S. L.], v. 12, n. 41, p. 1-6, 1 out. 2015. ISSN 2224-4131.

GOMES, Helton Simões; CORTIZ, Diogo. Atrás de EUA e China, à frente da França: como Brasil entra no jogo da IA. Disponível aqui.

TENÓRIO, Igor; palestra transcrita por Rômulo Soares Valentini, Julgamento por computadores? As novas possibilidades da juscibernética no século XXI e suas implicações para o futuro do Direito e do trabalho dos juristas, 2017. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017, p. 72-73

ROCHA, Igor Moraes. Inteligência artificial, metáforas jurídicas e o risco da ignorância técnica. 2025. Disponível aqui.

VILICIC, Filipe. Fuga de cérebros: Brasil está perdendo talentos em inteligência artificial para exterior, diz ranking. 2025. Disponível aqui.

 

[1] FERNANDEZ, Atahualpa. A (anti) interdisciplinaridade do direito: um “cemitério de ideias mortas”. Derecho y Cambio Social, [S. L.], v. 12, n. 41, p. 1-6, 1 out. 2015. ISSN 2224-4131.

[2] ROCHA, Igor Moraes. Inteligência artificial, metáforas jurídicas e o risco da ignorância técnica. 2025. Disponível aqui.

[3] Justamente com esse cenário em mente publicamos recentemente uma introdução a alguns conceitos fundamentais de IA — o que é um modelo de linguagem, como funciona o aprendizado supervisionado, entre outros tópicos básicos com a intenção de demonstrar o quão distante ainda estamos de um debate juridicamente e tecnicamente qualifica. Para consultar o texto acesse aqui

[4] Um exemplo que ajuda a ilustrar essa dinâmica se encontra na figura do profissional do Direito — geralmente bem-intencionado — que decide explorar o campo da inteligência artificial, acessa uma ferramenta (como o ChatGPT) tem 2 ou 3 experiências e, a partir delas, conclui que a IA é uma tecnologia superestimada, que “alucina demais”, e que, portanto, não serve ao Direito ou, em outro cenário, que se trata de uma ferramenta salvadora e que resolverá todos problemas da prática jurídica.

[5] Para ilustrar o problema, considere que para um desenvolvedor receber a informação de que o modelo de IA que ele está criando deve “explicar como chegou às suas respostas em linguagem simples e respeitar direitos fundamentais.” soa tão abstrato e vago quanto seria para um médico ouvir que ele “precisa diagnosticar uma doença nunca antes documentada e sem ver o paciente”..

[6] VILICIC, Filipe. Fuga de cérebros: Brasil está perdendo talentos em inteligência artificial para exterior, diz ranking. 2025. Disponível aqui.

[7] GOMES, Helton Simões; CORTIZ, Diogo. Atrás de EUA e China, à frente da França: como Brasil entra no jogo da IA. Disponível  aqui.

[8] O que, por si só, seria uma afirmação leviana e que desconsideraria uma série de outros fatores de ordem política, social e econômica.

[9] Igor TENÓRIO, palestra transcrita por Rômulo Soares Valentini, Julgamento por computadores? As novas possibilidades da juscibernética no século XXI e suas implicações para o futuro do Direito e do trabalho dos juristas, 2017. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017, p. 72-73

[10] ROCHA, Igor Moraes. Inteligência artificial, metáforas jurídicas e o risco da ignorância técnica. 2025. Disponível aqui.

[11] EIGEN, Zev J. Algoritmofobia: superando seu medo de algoritmos e inteligência artificial. Boletim Revista dos Tribunais Online, vol. 8, out. 2020.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), coordenador de projetos de IA e Dados na Procuradoria Geral do Estado de São Paulo( PGE-SP), consultor de tecnologia e inovação no Direito, advogado e professor.

  • é graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Governador Valadares (UFJF-GV), pesquisador voluntário no Projeto Claudinha, voltado à criação de modelos de inteligência artificial aplicados ao Direito, integrante do Centro de Estudos de Direito Civil da UFJF-GV e participante do projeto de extensão AAção Cidadania, Juventude e Comunidade e presidente da Comissão Eleitoral do Centro Acadêmico dos Discentes de Direito da UFJF-GV.

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