Assembleias cidadãs: um caminho para as democracias na era da IA?
25 de maio de 2025, 13h25
No último mês, o Supremo Tribunal Federal recebeu o professor Lawrence Lessig, da Faculdade de Direito da Universidade Harvard, para palestra sobre impactos da inteligência artificial na democracia [1]. Em sua fala, o catedrático destacou que o modelo de negócios de redes sociais baseado em engajamento e movido por inteligência artificial acaba por exacerbar as vulnerabilidades presentes na democracia representativa tal como estruturada na maior parte das sociedades ocidentais na atualidade.

Dentre as maiores dificuldades impostas por essas inovações está a criação de realidades paralelas e autoconstruídas (bespoke realities, nos termos de Renée Diresta [2]), nas quais qualquer fato pode ser reinterpretado para afirmar o que as pessoas pertencentes a minha mesma realidade acreditam. Com segmentos da população vivendo em realidades distintas, gera-se uma crescente polarização que afeta a capacidade de geração de consensos necessários para o funcionamento adequado do regime democrático.
Diante desse cenário, Lessig defende a necessidade de pensarmos formas de proteger a nossa democracia ou diminuir a sua vulnerabilidade em relação ao modelo de negócios por engajamento movido por inteligência artificial [3]. Umas das formas abordadas por ele é a criação de “assembleias cidadãs” [4], espaços deliberativos formados por um grupo aleatório e representativo de pessoas comuns que teriam acesso a informações e exposições de um determinado tema sob diversas perspectivas e, a partir disso, tomariam uma decisão.
O sistema prescinde de características típicas da democracia representativa, como a autorização expressa e a accountability vertical — as quais, na representação eleitoral, se dá por meio do voto [5]. Ele se afasta também de outros mecanismos de participação direta, como referendos e plebiscitos, os quais estão abertos a toda população. Isso porque, ainda que se trate de forma de participação direta (sem representantes escolhidos e autorizados), há uma limitação àqueles escolhidos aleatoriamente somada a uma preocupação com a representação em sua dimensão sociológica ou demográfica. As assembleias devem, por exemplo, ter a mesma proporção de homens e mulheres existentes na sociedade, de pessoas de cada origem étnico racial, religião e outras categorias que se entenda necessárias de serem levadas em consideração.
Apesar de, a princípio, uma assembleia cidadã poder abordar qualquer questão de interesse público, Lessig defende que seria interessante que fosse relegado a elas temas que as instâncias representativas não conseguem abordar ou não conseguem abordar de maneira eficaz [6]. Assim, as assembleias seriam uma forma de atuação complementar à vontade democrática expressa pelos poderes eleitos.
Debates na Irlanda e na França
A ideia já conta com experiências no âmbito internacional. Na Irlanda, já foram realizadas quase dez assembleias nesse formato desde 2015, inclusive quanto a temas voltados para a pauta de costumes e com difícil construção de consenso em um mundo polarizado, como o casamento para pessoas do mesmo sexo e a descriminalização do aborto [7].

Dentro do modelo optado pelos irlandeses, após a deliberação pela assembleia cidadã, foram realizados referendos colocando ao público geral a mesma questão decidida pelo colegiado. Em ambos os casos, os referendos confirmaram as decisões das assembleias. Chama atenção, inclusive, que os referendos atingiram percentuais pela aprovação do casamento homoafetivo de a descriminalização do aborto similares àqueles que tinham sido atingidos dentro da assembleia cidadã.
Também a França tem tido experiências tanto no âmbito nacional como local [8]. No âmbito nacional, em 2019, o governo francês convocou uma assembleia cidadã sobre as mudanças climáticas, com o objetivo de permitir a elaboração de propostas de medidas estruturantes voltadas a diminuir as emissões de gases estufa pelo país. Ao final, foram entregues 149 propostas para que fossem submetidas ao Parlamento ou a referendo [9].
Como se vê, a proposta de adoção de assembleias cidadãs, segue, por um lado, uma tendência presente nas últimas décadas de ruptura de uma divisão estanque entre participação direta e a democracia representativa por meio do desenvolvimento de espaços que misturam representação e participação. Tendência essa em que o Brasil tem tradição, já que vivenciou a institucionalização, desde 1988, de inúmeros mecanismos participativos profícuos em mesclar essas duas formas de legitimação democrática, como os conselhos gestores de políticas públicas e as conferências nacionais. Por outro, traz novos desafios teóricos e práticos quanto à legitimidade das decisões tomadas nesse formato, o grau de vinculação que deliberações nesse modelo poderiam ter e qual seria a viabilidade jurídica de implementar tal mecanismo no ordenamento jurídico brasileiro.
Apesar das inúmeras questões práticas e teóricas que podem advir de uma proposta como essa, o cenário de crise de legitimidade dos mecanismos representativos e de recessão democrática no âmbito global e nacional fazem com que não se possa prescindir da reflexão acerca de novas formas de recuperar ou renovar a qualidade das democracias.
[1] Para assistir a íntegra da palestra, ver aqui.
[2] DI RESTA, Renee. Invisible rulers: The People Who Turn Lies into Reality. Nova York: PublicAffairs, 2024.
[3] Para exposição sucinta das principais ideias, ver LESSIG, Lawrance. Protected Democracy. In: The Digitalist Papers. Disponível aqui.
[4] Lawrance Lessig chama o fenômeno de “citizen assemblies” ou de “protected assembly”. Jim Fishkin, por sua vez, chama esse mecanismo de “deliberative polls” (FISHKIN, James. When the People Speak: Deliberative Democracy and Public Consultation. In: Oxford University Press, 2009).
[5] Sobre a construção do conceito de representação democrática e suas características históricas, v. PITKIN, Hannah. Representação: palavras, instituições e idéias. In: Lua Nova, 2006, n° 67, pp. 15-47.
[6] Para exposição sucinta das principais ideias, ver LESSIG, Lawrance. Protected Democracy. In: The Digitalist Papers. Disponível aqui.
[7] Ibidem.
[8] A cidade de Paris tem adotado o modelo de assembleia cidadã. Para informações sobre o funcionamento, veja-se aqui.
[9] As informações sobre a assembleia estão disponíveis aqui.
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