Alocação de riscos nos contratos administrativos: desafios e perspectivas sob a Lei 14.133
25 de maio de 2025, 8h00
A sanção da Lei nº 14.133/2021 representou um marco normativo para as contratações públicas ao consolidar um regime jurídico mais moderno e alinhado às boas práticas nacionais e internacionais. Como uma grande caixa de ferramentas para a gestão contratual, a lei trouxe novos mecanismos e aperfeiçoou antigos. Entre eles, a matriz de alocação de riscos é concebida como um instrumento para garantir maior previsibilidade, segurança jurídica e eficiência na gestão dos contratos administrativos.
Embora não seja uma inovação propriamente dita, uma vez que já era encontrada na Lei das PPP, na Lei do RDC e na Lei das Estatais, foi com a nova Lei de Licitações que o tema ganhou maior notoriedade no contexto dos contratos administrativos em geral.
Mais do que um mecanismo de repartição de responsabilidades, a matriz influencia diretamente a formação de preços, reduz assimetrias informacionais e busca mitigar a incompletude contratual, desafios historicamente presentes nas contratações públicas.
A teoria econômica dos contratos há muito se debruça sobre os efeitos da incompletude contratual na dinâmica das relações negociais. Sabe-se que a ausência de previsibilidade nos contratos não apenas impacta a sua precificação, mas também interfere na estrutura de incentivos e desincentivos das partes.
A relação contratual é permeada por diferentes graus de informação entre contratante e contratado, o que pode conduzir a um comportamento oportunista caso os riscos não sejam distribuídos de maneira eficiente. A matriz de riscos, ao organizar essa distribuição de maneira explícita, atua como um mecanismo de equilíbrio de informações, alinhando expectativas e tornando a relação mais cooperativa.
Contudo, a ampliação do nível de detalhamento dos contratos para disciplinar de maneira mais exaustiva as responsabilidades das partes pode aumentar os custos administrativos, burocráticos e de negociação (os custos de transação), comprometendo a própria eficiência que se busca alcançar. Isso implica reconhecer que a completude é um ideal inatingível em contratos complexos, o que impõe a busca pelo equilíbrio entre a regulação detalhada dos riscos e os custos adicionais que esse detalhamento pode gerar.
A matriz de riscos não é uma panaceia, mas sim um instrumento de racionalização das contratações públicas. Seu real valor reside na capacidade de estruturar incentivos adequados, promovendo condutas desejáveis e desestimulando comportamentos oportunistas. A previsibilidade quanto à distribuição de riscos pode converter jogos não cooperativos em cooperativos, na medida em que reduz os incentivos para a litigiosidade e melhora a alocação de recursos no longo prazo.
Apesar disso, é possível reconhecer alguns desafios (entre muitos outros) para a implementação eficaz desta ferramenta.
Em primeiro lugar, é importante que parâmetros metodológicos adequados sejam observados na construção da matriz de riscos. A forma como os riscos são alocados em um contrato influencia diretamente o custo, o tempo, a qualidade da execução e o potencial de disputas, atrasos e reclamações. Quando os riscos não são distribuídos de maneira racional, o impacto se manifesta de diferentes formas, seja no aumento dos preços contratuais, na insegurança jurídica ou na dificuldade de gestão da execução.
Especificamente no que se refere ao custo do contrato, estudos de Zaghloul e Hartman (Construction contracts and risk allocation, 2002), no mercado de construção civil do Canadá, constataram que a utilização de cláusulas de isenção de responsabilidades pelos contratantes, sejam públicos ou privados, com a transferência de riscos não gerenciáveis ao contratado, resultou em um acréscimo de 8 a 20% no valor dos contratos. Ainda segundo os autores, essa transferência de responsabilidades tem como “custos ocultos” a restrição de concorrência nas licitações, a potencialização de disputas e, principalmente, a criação de uma relação adversa entre as partes.
Para evitar essas distorções, o artigo 103, § 1º, da Lei nº 14.133/2021 estabelece que a alocação dos riscos contratuais deve ser “eficiente”, impondo um dever de racionalidade na distribuição de responsabilidades entre as partes. A literatura sobre gerenciamento de projetos há muito reconhece que a regra de ouro para uma alocação eficiente é atribuir cada risco à parte que melhor pode gerenciá-lo.
Contudo, essa diretriz nem sempre é suficiente ou facilmente aplicada. Um mesmo evento pode ter origens distintas e ser atribuído a diferentes agentes, dependendo do contexto. A falta de clareza na identificação das causas pode gerar ambiguidade na alocação das responsabilidades.

O Acórdão nº 2429/2024, do Plenário do Tribunal de Contas da União, bem ilustra essa dificuldade. No caso, a administração, ao licitar a construção de obra ferroviária, indicou em anteprojeto quatro jazidas para o fornecimento de brita, mas os materiais dessas origens mostraram-se inadequados durante a execução. O tribunal entendeu que, apesar de a matriz de riscos alocar ao contratado a responsabilidade pela adequação dos materiais, erros grosseiros nas condições de contorno fornecidas pela administração podem viciar a formação de vontades no edital e gerar um desequilíbrio contratual.
Neste julgamento, ao comentar sobre a recorrência de contratações integradas ou semi-integradas com condições de contorno equivocadas ou imprecisas providas pela administração, o ministro Benjamin Zymler observou como a alocação de riscos tem sido frequentemente distorcida, transferindo aos particulares incertezas sobre as quais não têm gerência: “Ainda que os licitantes não tenham qualquer controle sobre essas circunstâncias e mesmo que, em razão disso, não possuam elementos para aferir a probabilidade e o impacto dessa incerteza, as matrizes de risco têm alocado tal incerteza para os particulares. Ao se considerar essa distribuição de riscos, a licitação pode ter como resultado não a melhor vantagem, mas a ‘melhor sorte’, a partir da proposta do licitante que mais aposte que os estudos providos pela administração estão corretos”.
Alternativas viáveis
Para que a matriz de riscos cumpra sua função, a distribuição dos riscos deve ser baseada em critérios objetivos e metodologias predefinidas. Não por outra razão o artigo 103, § 6º, da Lei nº 14.133/2021 prevê que “poderão ser adotados métodos e padrões usualmente utilizados por entidades públicas e privadas, e os ministérios e secretarias supervisores dos órgãos e das entidades da administração pública poderão definir os parâmetros e o detalhamento dos procedimentos necessários a sua identificação, alocação e quantificação financeira”. A ausência de critérios claros gera insegurança jurídica e pode resultar na transferência inadequada de riscos, comprometendo a execução eficiente do contrato.
Intimamente relacionado a isso está o desafio em reconhecer situações em que, ao invés de transferir ou assumir inteiramente o risco, compartilhá-lo passa a ser uma alternativa viável para reduzir distorções e tornar os contratos mais equilibrados.
Existem diferentes formas de se compartilhar riscos. Uma delas é a repartição da responsabilidade para implementar medidas preventivas (quando for o caso) e para responder a eventuais impactos financeiros, evitando que uma das partes seja excessivamente onerada. Outra é definir diferentes exposições ao risco: a Federal Highway Administration, dos Estados Unidos (Guide to risk assessment and allocation for highway construction management, 2006), traz o exemplo do risco de condições climáticas excepcionalmente severas, em que a resposta ao evento pode ser a extensão de prazos sem compensação financeira — hipótese em que o contratado arcar com os custos adicionais, mas a administração assume o risco do atraso do projeto.
Uma terceira forma de compartilhamento é a definição de bandas, estratégia já utilizada em alguns contratos de concessão no Brasil para o risco de demanda. Neste modelo, o particular assume integralmente os impactos da materialização do risco até certo ponto, cabendo à administração a responsabilidade pelos excedentes (sendo possível estabelecer diversas bandas). Esse método permite estabelecer, com objetividade, quando um evento ainda deve ser tratado como ordinário e quando se torna extraordinário, trazendo mais previsibilidade e permitindo uma precificação mais precisa do contrato.
Independentemente do modelo adotado, é essencial que o contrato estabeleça regras para evitar comportamentos oportunistas e garantir que as partes busquem sempre a mitigação dos riscos.
Por fim, outro desafio é relacionado à correta quantificação dos riscos na etapa de planejamento da contratação, um dos aspectos mais sensíveis na modelagem da matriz de riscos, pois influencia diretamente a precificação do contrato e a competitividade do certame.
No âmbito das licitações, há a preocupação de que a formação dos preços dos contratos seja compatível com os “valores de referência do mercado” (inclusive para evitar caracterização de sobrepreço), os quais, em geral, são baseados em tabelas referenciais. Contudo, a transferência de riscos impacta diretamente a formação dos preços: quanto maior o risco atribuído ao contratado, maior o acréscimo no valor da proposta.
É neste contexto que se insere o artigo 103, § 3º, da Lei nº 14.133/2021, que expressamente prevê que a alocação dos riscos contratuais deve ser quantificada e refletida no valor estimado da contratação. Isso impõe à administração o dever de analisar os efeitos da transferência de riscos e garantir que o valor estimado do contrato contemple adequadamente os riscos repassados ao particular.
Se esse balanceamento não for realizado corretamente, abre-se margem para efeitos adversos graves, como a diminuição da competitividade, afastando concorrentes que percebem a alocação de riscos como excessiva; a seleção de aventureiros, que aceitam as condições sem mensurar corretamente os impactos; e o estímulo a comportamentos oportunistas, que comprometem a execução contratual.
A dificuldade central está na mensuração dos riscos e na ausência de diretrizes normativas específicas para sua quantificação e adequada inserção no orçamento estimado do contrato e nas propostas. No âmbito federal, a Instrução Normativa Seges/ME nº 65/2021 prevê regulamentação complementar sobre esses aspectos, mas, até o momento, não há diretrizes publicadas que padronizem a forma como os riscos devem ser identificados, quantificados e incorporados à estimativa do contrato e nas propostas.
Em conclusão, a correta alocação e quantificação dos riscos é uma condição essencial para garantir a eficiência das contratações públicas. Para que a matriz de riscos cumpra sua função como instrumento de governança contratual, é necessário o avanço na normatização do tema, garantindo que sua aplicação vá além de um mero requisito formal. Sem diretrizes claras, as contratações públicas continuarão vulneráveis a distorções de preços, insegurança jurídica e falhas na execução.
O desafio não está apenas em prever riscos nos contratos, mas em garantir que sua alocação e precificação sejam feitas de forma técnica, racional e equilibrada, assegurando previsibilidade, estabilidade e confiança aos envolvidos.
Este texto foi originalmente publicado em fevereiro de 2025 na 9ª edição do Boletim IBDiC, uma iniciativa do Instituto Brasileiro de Direito da Construção. Meus agradecimentos ao IBDiC pelo espaço de discussão e ao professor Gustavo Justino de Oliveira pela oportunidade de contribuir nesta coluna.
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