Primeira suspensão cautelar de mandato parlamentar: novo poder disciplinar na Câmara
24 de maio de 2025, 6h33
No último dia 6 de maio, pela primeira vez, a Câmara dos Deputados aplicou o instituto da suspensão cautelar do exercício do mandato parlamentar. Em 2024, por meio da mudança do seu Regimento Interno [1], quando Arthur Lira (PP-AL) ainda estava no comando da Casa, a Mesa Diretora passou a ter a atribuição de propor que deputados sujeitos à representação por quebra de decoro de autoria da própria Mesa sejam suspensos cautelarmente (artigo 15, inciso XXX, RICD).

O deputado federal Gilvan da Federal (PL-ES)
A primeira aplicação dessa suspensão de forma cautelar foi ao deputado Gilvan da Federal (PL-ES), após a representação nº 1 de 2025 da Mesa Diretora, apresentada em 30 de abril, e por uma decisão do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar no dia 6 de maio [2].
O caso concreto é emblemático dos corriqueiros eventos de desrespeito entre deputados e deputadas nas sessões das comissões da Casa Parlamentar. No dia 29 de abril de 2025, durante os trabalhos da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Gilvan da Federal proferiu uma fala grave e indecorosa contra a ministra Gleisi Hoffmann. Na mesma sessão, Gilvan se envolveu em acalorada discussão com o também deputado federal Lindbergh Farias (PT-PB).
As respostas da Mesa Diretora e do conselho foram ágeis. No parecer do relator Ricardo Maia (MDB/BA), a suspensão cautelar foi defendida como adequada, necessária e proporcional. Em análise ao parecer que pela primeira vez analisa um caso de suspensão cautelar de mandato, estão presentes os tradicionais brocardos jurídicos de fumus boni iuris e periculum in mora como os requisitos para a aplicação deste novo procedimento parlamentar.
Por sua vez, a defesa técnica apresentada pelo deputado suspenso recorreu a paralelismos com o processo penal, indicando que a representação da Mesa seria uma espécie de denúncia inepta, por ser genérica e não ter especificado a conduta típica e indecorosa do parlamentar. A falta de justa causa e a ausência de provas também foram teses defensivas. Como derradeiro argumento, arguiu-se que houve a retratação espontânea do parlamentar (um pedido de desculpas do deputado Gilvan da Federal proferido no plenário, assumindo que havia exagerado).
Resposta imediata
Inicialmente, o voto do relator apresentado em 5 de maio foi pela aprovação da suspensão do mandato por seis meses. O deputado Cabo Gilberto (PL-PB) apresentou voto em separado, defendendo a aplicação da censura escrita como a espécie de penalidade adequada ao caso. No dia 6, após a discussão, o Conselho aprovou, por 15 votos favoráveis, tendo quatro contrários, a suspensão por um tempo menor ao indicado no primeiro voto do relator, restando uma suspensão por três meses. Com esse prazo, o suplente não é convocado.
Como visto, o rito é sumaríssimo. Pelo texto do Regimento Interno, a Mesa Diretora tem cinco dias úteis a contar do conhecimento do fato que deu razão à representação para oferecer a suspensão. Por sua vez, o Conselho de Ética tem três dias úteis para referendar ou não. Caso não cumpra o prazo, a Mesa pode submeter a suspensão ao plenário, nas condições de votação ostensiva e maioria absoluta. O Regimento prevê que tanto o recurso quanto o envio da Mesa para o plenário serão feitos imediatamente na sessão subsequente.
No mérito, os atos parlamentares de representação da Mesa, defesa técnica do deputado e voto do relator misturam razões criminais, de processo penal e de processo civil. As justificativas que defendem o novo instituto se referem à tutela do bem jurídico “integridade ética da Casa” e “honra objetiva da Câmara dos Deputados”.

Desde sua criação, nos trâmites da Resolução nº 11 de 2024, a ideia é que essa penalidade na forma cautelar sirva como reação imediata aos excessos cometidos na Câmara dos Deputados, tornando-se um instrumento de “moralização” do Parlamento. Na origem do instituto no ano passado, a alteração regimental e sua aprovação em regime de urgência foram impulsionadas pelo episódio conflituoso entre os deputados André Janones (Avante-MG) e Nikolas Ferreira (PL-MG) em junho de 2024. Em menos de dois dias, o projeto de Resolução foi proposto, discutido, votado e aprovado.
Na prática, como de fato ocorreu no primeiro caso, em menos de uma semana, um parlamentar da Câmara dos Deputados submetido à representação de autoria da Mesa Diretora teve o exercício do seu mandato suspenso. Em contrapartida às acusações de lentidão do Poder Legislativo, a suspensão cautelar nasce como uma ameaça e se concretiza como uma pena quase instantânea.
É verdade que existe recurso, mas em um Parlamento sem nenhum partido com maioria das cadeiras e com um presidente da Câmara que aceitou a representação, parece pouco provável que um parlamentar queira enfrentar o plenário e o capital político da liderança da Mesa. No caso, foi justamente essa a decisão de Gilvan da Federal.
Consequências drásticas
A suspensão cautelar de um mandato coloca em debate o risco aos direitos políticos e não por acaso a proposta inicial foi chamada de “AI-5 do Lira”. Em menos de sete dias, é possível que um deputado pratique uma conduta imputada como indecorosa, seja representado, seu processo, relatado e a decisão, ao final, seja homologada pela própria Mesa que o representou, suspendendo por seis meses o exercício do seu mandato.
É claro que os mandatos parlamentares não são intocáveis, ainda que possam ser sagrados ao funcionamento da democracia moderna por meio da representação popular. Na doutrina do Direito Parlamentar, são modos individuais de perda antecipada de mandato recall, renúncia, infringência às incompatibilidades, procedimento incompatível com o decoro parlamentar, perda ou suspensão dos direitos políticos, decisão da Justiça Eleitoral, condenação criminal, falta às sessões da Casa Legislativa, licença por mais de 120 dias para tratar de interesses particulares [3].
No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição de 1988 prevê as possibilidades de perda do mandato em seu artigo 55. O próprio Regimento Interno da Câmara dos Deputados e o Código de Ética e Decoro Parlamentar disciplinam as condutas e as censuras aplicáveis às hipóteses de abuso das prerrogativas parlamentares.
No entanto, o texto da Constituição de 1988 não incorpora a hipótese de suspensão de mandato parlamentar, muito menos de forma cautelar. De forma oposta, o contraditório e a ampla defesa constituem direitos fundamentais expressos na norma constitucional.
A preservação do exercício dos mandatos parlamentares é uma constante preocupação na história do Estado de Direito [4]. Contra eventuais leituras que alarguem as hipóteses constitucionais de perda de mandato, é importante lembrar que o livre exercício do mandato eletivo é um dos princípios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral [5].
Os mandatos parlamentares são cruciais ao funcionamento do Estado democrático de Direito e possuem um duplo vínculo, um popular, porque depende da vontade do povo, e outro partidário, pois compete aos partidos uma função de intermediação com o eleitorado [6].
As consequências da suspensão são drásticas para o titular do mandato parlamentar, com meses sem salário, sem verba de gabinete e sem acesso ao uso das emendas parlamentares. Por outro prisma, a suspensão cautelar pode representar o crescimento de um poder disciplinar dentro da Câmara dos Deputados, sob o comando da Mesa Diretora e de seu Presidente.
Não é demais dizer que há o avanço de um Parlamento entrincheirado em seus cargos de poder e direção, com práticas regimentais que podem desafiar e, principalmente, desequilibrar o jogo político. A falta de previsão constitucional para uma suspensão de mandato não pode passar despercebida, principalmente se aplicada de forma cautelar.
O próprio Código de Ética e Decoro Parlamentar dispõe no seu artigo 14 que a suspensão e a perda de mandato são de competência do Plenário da Câmara dos Deputados, o que se distancia de uma decisão tomada por 21 membros do Conselho de Ética [7].
Após a suspensão de Gilvan da Federal, o Ato da Mesa nº 180 de 7 de maio de 2025 trouxe previsões da atuação da Corregedoria Parlamentar e da Mesa Diretora no processo de suspensão cautelar do exercício do mandato parlamentar. O mais grave deste novo dispositivo é a previsão de apenas um dia útil para recurso ao plenário.
Obviamente, não se trata de defender as falas e as condutas que sem dúvida ferem o decoro parlamentar, mas sim de suspeitar que um rito sumaríssimo (sem a ampla defesa e o contraditório garantidos com tempo razoável) que atinja o exercício do mandato parlamentar possa avançar os limites da Constituição.
Nesse sentido, é bom lembrar que a proposta de texto original que objetivou criar a suspensão cautelar, com a redação da Mesa ainda sob o comando de Lira, previa a possibilidade de suspender diretamente o mandato e com o uso ad referendum pelo Presidente da Casa.
Se por um lado, os debates desrespeitosos durantes as comissões parecem revelar que a construção de consensos dentro do Parlamento está cada vez mais distante, por outro, nas últimas eleições à presidência da Câmara, Arthur Lira (PP/AL) e Hugo Motta (Republicanos/PB) foram reeleito e eleito, respectivamente, com mais de noventa e oitenta por cento dos votos dos 513 deputados e deputadas.
O novo instituto do Direito Parlamentar brasileiro é mais um indicativo da concentração de poderes na Presidência da Câmara, ainda que a atual redação do Regimento Interno exija que a representação seja pela Mesa.
Na arena política democrática, não há Parlamento sem disputa de poder. Como afirma Desiree Salgado, “É o Parlamento a arena da discussão pública, o lugar do debate robusto e acessível a todos, da apresentação de argumentos e de contra-argumentos, de deliberação sobre a vontade do Estado” [8]. E no desenho constitucional brasileiro de 1988, também não há poder ilimitado. O controle do abuso do poder e das prerrogativas é inerente à forma republicana, mas todos os poderes devem ser controlados, inclusive aqueles da Mesa Diretora e da Presidência da Câmara dos Deputados.
[1] Resolução nº 11/2024
[3] CALIMAN, Auro Augusto. Mandato parlamentar. Aquisição e perda antecipada. São Paulo: Atlas, 2005, p. 62.
[4] REALE, Miguel. Decôro parlamentar e cassação de mandato eletivo. Revista de Direito Público, São Paulo, n. 10, out./dez. 1969, p. 87.
[5] SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral. 2010. Tese de Doutorado em Direito – Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de Doutorado em Direito do Estado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, p.
[6] SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral. 2010. Tese de Doutorado em Direito – Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de Doutorado em Direito do Estado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, p. 149.
[8] SALGADO, Eneida Desiree. Princípios constitucionais estruturantes do direito eleitoral. 2010. Tese de Doutorado em Direito – Programa de Pós-Graduação em Direito, Curso de Doutorado em Direito do Estado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, p. 298.
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