Opinião

Segurança pública também é competência federal: das melhorias na PEC do ministro Lewandowski

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  • é doutor em Direito pela Uerj com pós-doutorados em Direito pela UFRJ e pela UFPE professor da UFRJ e da Escola do Parlamento pesquisador e autor de livros e artigos nas áreas de federalismo e Teoria do Direito.

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23 de maio de 2025, 6h30

A proposta de emenda constitucional apresentada pelo ministro Ricardo Lewandowski representa uma inflexão relevante no tratamento constitucional da segurança pública no Brasil. Em linhas gerais, a PEC busca redesenhar a arquitetura federativa da segurança pública por meio de um duplo movimento: ao mesmo tempo em que reforça a centralidade normativa e estratégica da União, preserva e até amplia os espaços de execução compartilhada e cooperativa entre os entes federativos. Trata-se, portanto, de uma tentativa de corrigir omissões constitucionais históricas e consolidar institucionalmente práticas já consolidadas, como o funcionamento do Susp e o papel das guardas municipais.

Reprodução/YouTube

A centralização propositiva da União é equilibrada com mecanismos de controle, financiamento e cooperação, de modo a mitigar riscos autoritários locais e promover maior racionalidade no sistema. O texto da PEC também se propõe a resolver impasses hermenêuticos sobre competências legislativas e administrativas ao inserir dispositivos expressos nos artigos 21, 22, 23, 24 e 144 da Constituição. Ainda que a redação de alguns trechos suscite dúvidas quanto à técnica legislativa, a proposta avança ao reconhecer formalmente instituições até então marginalizadas na ordem constitucional e ao estabelecer novos freios e contrapesos institucionais nas políticas de segurança pública.

Constitucionalização do Susp

A PEC propõe uma maior centralização estratégica e normativa na União, ao mesmo tempo que reafirma a execução descentralizada e federativa da segurança pública. Também fortalece a cooperação federativa, define melhor o papel das guardas municipais, e reforça os mecanismos de controle interno e externo sobre as forças de segurança. A proposta também corrige uma falha original do texto da Constituição: insere a menção ao termo segurança pública como competências comum e concorrente nos artigos 23 e 24, respectivamente.

Apresento aqui algumas mudanças que poderão ser trazidas com a aprovação da emenda constitucional.

Instituído pela Lei nº 13.675/2018, o Sistema Único de Segurança Pública passará a ser previsto constitucionalmente, dando maior segurança jurídica e estabilidade às normas que o compuser. Para tanto a União receberá duas competências privativas, em dois novos incisos no artigo 21. O inciso XXVII estabelece que cabe a ela formular a política e o plano nacional de segurança pública e defesa social, incluindo o sistema penitenciário, com participação de todos os entes federativos e da sociedade civil.

Por sua vez, o novel inciso XXVIII prescreve a competência privativa para coordenar o Sistema Único de Segurança Pública e Defesa Social e o sistema penitenciário, assegurando integração, cooperação e interoperabilidade com os entes subnacionais. A PEC ainda insere no artigo 21 um parágrafo único, que evidencia que a atribuição destas competências privativas à União não exclui as competências comuns e concorrentes dos demais entes nem afetam a subordinação das polícias aos governadores.

Como o artigo 23 trata de competências administrativas, aquelas nas quais o poder público, por meio de programas e ações buscam efetivar suas obrigações constitucionais, normalmente relacionadas à efetividade de algum direito fundamental, a PEC também evidencia que é dever conjunto de todos os entes federativos “prover os meios necessários à manutenção da segurança pública e da defesa social”, em conformidade com o novo inciso XIII a ser incluído.

Ainda que dentre as competências administrativas, para fins de alumiação no entendimento sobre responsabilidades na atuação em segurança pública, entendo a inclusão do inciso XIII no artigo 23 ser mais relevante do que as alterações no artigo 21. Elas não chegam a ser contraditórias.

Normas gerais e atecnia na redação

A PEC, porém, tem problemas na redação das alterações propostas para as competências legislativas. Explico a seguir

A respeito das competências privativas da União, previstas no artigo 22, a PEC faz duas mudanças.

Spacca

A primeira é a substituição da atual redação do inciso XXII, “competência da polícia federal e das polícias rodoviária e ferroviária federais”, por “competência da polícia federal, da polícia viária federal e da polícia penal federal”. Unificar as duas polícias previstas, a rodoviária e a ferroviária e uma única, a viária, é uma resolução prática em razão da não implementação da polícia ferroviária federal conforme a previsão original de 1988.

O que ocorrerá é a ampliação do campo jurídico de atuação da atual polícia rodoviária federal, que atuará também em ferrovias e em hidrovias. Também a nova redação enumera o poder que a União tem de legislar sobre sua própria polícia penal — o que é uma obviedade, mas clareza textual não atrapalha.

A segunda é a inclusão do inciso XXXI, cujo texto até o momento é: “normas gerais de segurança pública, defesa social e sistema penitenciário”. Esta é uma redação que apresenta uma atecnia semelhante ao que ocorre nos incisos XXI, XXIV e XXVII. Se a União é competente para legislar privativamente sobre alguma matéria, isso exclui a competência de outro entes federativos. Por outro lado, a expressão “normas gerais” na gramática do sistema federativo brasileiro perfaz a ideia de alguma uniformidade nacional, porém também que entes subnacionais possuam competência para criar normas mais específicas a partir destas normas gerais. É o que é revelado pela leitura dos quatro parágrafos do artigo 24 que, ainda que se trate de competências competentes, deve guardar harmonia com o artigo 22.

Onde está a contradição da PEC neste ponto? Justamente na inclusão do XVII no artigo 24: “segurança pública e defesa social”. Se a aprovação se der nestes termos, União, estados e Distrito Federal terão competência concorrente para legislar sobre esta matéria e nela, assim como em todas as outras previstas neste artigo, a União, em conformidade com seu §1º, pode estabelecer normas gerais, restando aos estados e Distrito Federal suplementar a legislação federal (§2º) e podendo legislar conforme suas particularidades (§3º) até que uma lei federal superveniente em sentido contrario retire a eficácia das leis estaduais (§4º).

O §1º do artigo 24 determina que a União é competente para legislar sobre normas gerais. Na gramática constitucional, significa que estados e Distrito Federal são para emitir leis de modo a atender suas especificidades. A previsão do inciso XXXI a ser incluso no artigo 22 é, portanto, muito além de redundante, contraditória: se a União pode emitir normas gerais sobre alguma matéria, ela não tem competência privativa. Se tem competência privativa, não tem o porquê emitir “normas gerais”, já que entes subnacionais não podem legislar a mesma matéria em suas particularidades. Há uma evidente contraditoriedade e, diferentemente do que ocorre nas competências administrativas, nas legislativas há a excludência: estados somente podem legislar na concorrência da União em conformidade com a legislação federal, caso já exista (seriam as normas gerais). Porém, se a competência for privativa da União, o estado não podem legislar. Os dois dispositivos normativos que poderão ser inclusos com a PEC são contraditórios.

Entendo, neste caso, que inclusão do inciso XXXI no artigo 22 deveria ser descartada em detrimento do artigo 24, XVII. A segurança pública deve ser uma competência legislativa concorrente. Não há necessidade alguma de criar uma competência privativa para a União para criar contradição dentro do texto constitucional.

Órgãos de segurança pública nas modificações do art. 144

A proposta de emenda constitucional reformula significativamente o artigo 144 da Constituição ao reconhecer expressamente a polícia viária federal (na nova redação do inciso II, substituindo a “polícia rodoviária federal” e com a revogação do inciso III, “polícia ferroviária federal”) e as guardas municipais (com a inclusão do inciso VII) como órgãos de segurança pública. Estas modificações não são pretensamente simbólicas: objetivam conferir maior densidade institucional a esses entes, refletindo sua atuação concreta nos territórios.

A polícia viária federal passa a ter sua atuação ampliada para além do patrulhamento de rodovias, podendo ser mobilizada em caráter emergencial para proteção de bens federais, apoio a forças estaduais, ou em situações de calamidade pública, conforme os novos §§ 2º-A e 2º-B. Contudo, a PEC preserva a separação de funções ao vedar à polícia viária federal a apuração de infrações penais, competência exclusiva da polícia federal e das polícias civis.

As guardas municipais, por sua vez, passam a contar com um novo desenho constitucional. A proposta reconhece sua natureza civil e delimita seu campo de atuação prioritário — a proteção dos bens, serviços e instalações dos municípios (com a nova redação do § 8º) —, mas admite expressamente que possam exercer funções de segurança urbana, inclusive o policiamento ostensivo e comunitário (§ 8º- B). Essa previsão constitucionaliza uma prática que, embora consolidada em diversos municípios, não tinha previsão normativa clara, o que perfaz insegurança jurídica. Ao mesmo tempo, a PEC busca estabelecer freios institucionais ao atribuir às guardas, prescrevendo que Ministério Público exerça o controle externo (§ 8º-A), além de prever a obrigatoriedade da instituição de ouvidorias autônomas, responsáveis por receber manifestações da população e encaminhá-las aos órgãos competentes (§ 14).

Outro ponto de destaque na reformulação do artigo 144 diz respeito à criação de mecanismos de controle e de financiamento das políticas de segurança pública. A PEC determina a criação de corregedorias com autonomia funcional (§§ 12 e 13), fortalecendo o controle interno sobre a conduta de agentes de segurança. Além disso, cria os Fundos Nacional de Segurança Pública e Penitenciário (§ 11), com destinação vinculada às políticas da área e vedação expressa ao contingenciamento de recursos. Essa arquitetura institucional busca conjugar maior integração entre os entes federativos para tornar o sistema mais eficiente e, portanto, menos vulnerável a interferências políticas localizadas ou a práticas abusivas no exercício da força estatal.

Em conclusão, a proposta de Lewandowski não resolve todos os desafios do sistema federativo de segurança pública, mas aponta para uma evolução normativa coerente com os princípios do Estado democrático de direito. Ao buscar equilíbrio entre coordenação nacional e autonomia local, a PEC promove um modelo mais integrado e transparente, em que a segurança pública deixa de ser apenas um campo de disputa entre entes e passa a ser, cada vez mais, uma responsabilidade partilhada, dotada de institucionalidade, planejamento e controle.

Autores

  • é professor doutor do curso de Direito da UEPB, Campus 3, doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ, com pós-doutorados em Direito pela UFRJ e pela UFPE, pesquisador na área de federalismo, é líder do Grupo de Pesquisa CNPq – Monroe, pesquisador sênior do Centro de Estudos Constitucionais em Federalismo e autor do livro Federalismo e Estado Federal: Teoria, História e Dogmática Constitucional.

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