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Controle de convencionalidade: além do Judiciário, uma obrigação de Estado

22 de maio de 2025, 18h17

Por Elder Maia Goltzman

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O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem empreendido um esforço institucional significativo para fomentar uma análise mais acurada dos temas de direitos humanos no âmbito do Poder Judiciário. Tal iniciativa reveste-se de inegável importância, considerando o lastimável histórico do Estado brasileiro, que acumula mais de uma dezena de condenações proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, um cenário que se inaugurou em 2006 com o emblemático caso Damião Ximenes Lopes vs. Brasil. Apenas no mês de novembro de 2024, o país foi novamente responsabilizado em duas ocasiões distintas: no Caso da Silva e no Caso Comunidades Quilombolas de Alcântara [1].

Entre as medidas implementadas pelo CNJ com o intuito de fortalecer a proteção dos direitos humanos em território nacional, destacam-se a Resolução nº 582, de 20 de setembro de 2024, que instituiu o Fórum Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+; a Resolução nº 490, de 8 de março de 2023, que estabeleceu o Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial; e a Resolução nº 492, de 17 de março de 2023, que determinou a obrigatoriedade de o Poder Judiciário adotar as diretrizes do protocolo com perspectiva de gênero em todos os julgamentos [2].

Contudo, é fundamental sublinhar que a salvaguarda dos direitos humanos constitui uma obrigação intrínseca ao Estado brasileiro, decorrente das convenções e tratados internacionais sobre a matéria que foram devidamente incorporados ao nosso ordenamento jurídico. Destarte, mesmo na ausência de normativas específicas do CNJ para impulsionar essa temática no seio da magistratura, a responsabilidade estatal permaneceria inalterada. E emprega-se o termo “Estado” em sua acepção mais ampla, porquanto uma atuação imbuída da observância dos direitos humanos não se restringe a um único Poder e seus membros, mas abrange a totalidade dos atores estatais, independentemente da função ou cargo que exerçam.

Corroborando essa assertiva, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no paradigmático Caso Dominicanos e Haitianos Expulsos vs. República Dominicana, asseverou que “no âmbito de sua jurisdição, todas as autoridades e órgãos de um Estado Parte na Convenção têm a obrigação de exercer o ‘controle de convencionalidade’” [3].

Nessa perspectiva, os membros do Poder Legislativo, no exercício da crucial tarefa de elaboração das leis, devem imperiosamente considerar o arcabouço normativo de direitos humanos vigente no plano doméstico.

Se a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, em seu artigo 1.1, estabelece que “os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”, torna-se axiomaticamente vedado ao Brasil aprovar legislação que institua salários inferiores para as mulheres, a título de exemplo.

Essa obrigação de observar o controle de convencionalidade permeia toda a atuação legislativa, desde a concepção do projeto de lei até sua aprovação final, garantindo a compatibilidade da norma interna com os compromissos internacionais assumidos pelo país.

Etapas

Para uma compreensão mais aprofundada da internalização dessas normas, é pertinente rememorar que, para a maioria da doutrina especializada [4], um tratado internacional sobre direitos humanos percorre um itinerário específico antes de sua plena incorporação ao ordenamento jurídico nacional, compreendendo as seguintes fases: a) negociação; b) assinatura; c) ratificação; e d) incorporação. Cada uma dessas etapas possui nuances e implicações relevantes para a exigibilidade da norma no plano interno e, consequentemente, para a obrigação de todos os atores estatais.

Spacca

Durante a primeira fase, concernente às negociações, os chefes do Poder Executivo ou seus representantes legais, como os plenipotenciários [5], participam ativamente de debates preliminares, rodadas de discussão aprofundadas, seminários especializados, simpósios e uma variedade de outros eventos direcionados à estruturação e ao amadurecimento do texto do tratado. As negociações podem se estender por um período considerável, por vezes anos, a depender da complexidade intrínseca ao tema e do número e das particularidades dos Estados-nações envolvidos.

É notório que diversos tratados sequer alcançam sua finalização, permanecendo inconclusos na fase de negociações em face dos inúmeros obstáculos enfrentados, como ilustrado pela malograda tentativa de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Embora o caso da Alca envolva questões econômicas, ele serve como um exemplo de como complexas negociações internacionais podem enfrentar impasses significativos. No âmbito dos direitos humanos, essa complexidade se acentua devido à sensibilidade dos temas envolvidos e às diferentes concepções culturais e jurídicas dos estados.

Quando a temática central versa sobre direitos humanos, uma miríade de assuntos revela-se extremamente sensível, tornando a progressão das discussões rumo à assinatura uma tarefa árdua e desafiadora. Não raro, um único Estado-nação enfrenta dificuldades internas para alcançar um consenso sobre as intrincadas questões em debate, como se observa no controverso campo dos direitos reprodutivos e da interrupção da gravidez.

Ampliar o debate para o cenário internacional, envolvendo sociedades com ideologias, vieses e sistemas de pensamento distintos, eleva exponencialmente o grau de dificuldade e as potenciais intempéries. Contudo, em contrapartida a esses desafios, impõe-se pontuar a natureza universal e inalienável dos direitos humanos.

Conforme pondera o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), “os direitos humanos são universais e inalienáveis. Todas as pessoas em todo o mundo têm direito a eles. Ninguém pode voluntariamente desistir deles. Nem outros podem tirá-los dele ou dela” [6]. Dessa forma, mesmo que o processo de negociação represente um obstáculo considerável, esforços contínuos e diligentes devem ser envidados para superar as divergências e alcançar um consenso em prol da proteção dos direitos fundamentais.

A segunda fase crucial é a assinatura do tratado. Nesse momento solene, o Estado manifesta perante seus pares o compromisso formal de seguir as premissas debatidas de boa-fé, assumindo uma obrigação de conduta que o impede de adotar medidas internas que frustrem por completo a finalidade almejada pelo instrumento internacional.

Adicionalmente, uma vez aposta a assinatura no texto do tratado, quaisquer modificações unilaterais de seu conteúdo tornam-se juridicamente inviáveis, na medida em que a assinatura confere estabilidade à redação normativa acordada entre as partes. Essa estabilidade é fundamental para garantir a previsibilidade e a segurança jurídica das obrigações assumidas, impactando diretamente a forma como os atores estatais deverão internalizar e aplicar as disposições do tratado.

A terceira etapa, de suma importância, é a ratificação, que consubstancia a aceitação definitiva do tratado no âmbito do direito internacional. A ratificação é um ato privativo do presidente da República, conforme o artigo 84, VIII, da Constituição. No entanto, para o Brasil, a autorização do Congresso é fundamental, pois compete a ele deliberar sobre tratados que gerem encargos significativos ao patrimônio nacional (artigo 49, I, CF).

Essa autorização é formalizada por um Decreto Legislativo, demonstrando a relevância do controle democrático sobre as obrigações internacionais que impactam diretamente nosso ordenamento jurídico e a atuação de todos os poderes.

É fundamental ponderar que a autorização concedida pelo Congresso Nacional não vincula de maneira absoluta o presidente da República, porquanto a ratificação configura um ato eminentemente político e discricionário do chefe do Executivo. Isso significa que, sem a prévia autorização do Congresso, o presidente encontra-se impedido de depositar o instrumento formal de ratificação perante o organismo internacional competente.

Todavia, mesmo diante da concessão da autorização legislativa, o presidente somente procederá ao depósito do instrumento de ratificação após uma detida análise da conveniência e da oportunidade política de tal ato. Caso decida pela ratificação, a convenção passa a ser exigível no plano jurídico externo, estabelecendo obrigações para o Estado brasileiro perante a comunidade internacional; caso contrário, ou seja, se optar por não ratificar, nenhuma obrigação jurídica internacional é estabelecida. Tampouco existe um prazo mínimo estipulado para que a ratificação ocorra, a menos que o próprio texto do tratado disponha de maneira diversa, estabelecendo prazos específicos para a manifestação da vontade dos Estados partes.

A principal consequência jurídica da ratificação consiste em conferir validade jurídica ao tratado no âmbito externo, ou seja, nas relações estabelecidas com os demais Estados que também manifestaram sua adesão ao texto por meio da ratificação. É comum que as convenções internacionais exijam um número mínimo de ratificações para que possam efetivamente entrar em vigor no plano internacional, estabelecendo um marco temporal a partir do qual as obrigações assumidas pelas partes se tornam exigíveis [7]. Essa entrada em vigor no plano externo é o pressuposto para que o tratado possa gerar efeitos no ordenamento jurídico interno dos Estados partes, impactando a atuação de seus agentes.

Por derradeiro, tem-se a quarta e última etapa desse processo, aqui denominada de incorporação. A incorporação do tratado ao direito doméstico brasileiro é formalizada por meio de decreto emanado do presidente da República. A partir da publicação desse decreto presidencial no Diário Oficial da União, a convenção internacional passa a ostentar validade jurídica no âmbito interno e torna-se de observância compulsória por todos os agentes públicos e privados em território nacional. É nesse momento que as disposições do tratado se integram plenamente ao ordenamento jurídico brasileiro, vinculando a conduta de todos os atores estatais.

Superioridade jurídica

As convenções de direitos humanos que forem aprovadas pelo Congresso mediante o quórum qualificado previsto no § 3º do artigo 5º da Constituição (três quintos dos votos de cada Casa, em dois turnos de votação) passam a integrar materialmente o próprio texto constitucional brasileiro, adquirindo status de norma constitucional. As demais normas de direitos humanos que forem aprovadas sem a observância desse quórum qualificado, consoante a famigerada decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 466.343-SP, possuem status supralegal, posicionando-se hierarquicamente acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição. Essa decisão do STF confere uma especial relevância aos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, reforçando a obrigação de todos os atores estatais de observá-los.

Destarte, as convenções de direitos humanos que são incorporadas ao ordenamento jurídico nacional passam a integrar o direito doméstico em uma posição de inegável superioridade jurídica: ou são equiparadas a normas constitucionais, integrando o bloco de constitucionalidade, ou ostentam o status de normas supralegais, situando-se hierarquicamente apenas abaixo da Carta Magna. Por conseguinte, o respeito à convencionalidade não configura uma mera liberalidade ou um favor concedido pelo Estado brasileiro e seus agentes, mas sim uma obrigação jurídica com sólido substrato normativo.

Todos os poderes da República e todos os seus respectivos agentes devem ter a clareza de que o desrespeito a tais normas implica um desprezo direto ao próprio direito pátrio. Nenhum agente público, em sã consciência, realizaria um procedimento de contratação administrativa em flagrante desrespeito às regras estabelecidas na legislação licitatória. Seria minimamente aceitável permitir que a conduta dos agentes estatais contradiga frontalmente as normas de direitos humanos que se encontram em plena vigência no Brasil? A resposta óbvia é não.

A necessária mudança de paradigma em direção ao conhecimento aprofundado dos tratados que integram o nosso bloco normativo não constitui um chamado facultativo, mas sim uma obrigação imperativa que deve ser internalizada e cumprida por todos. E essa obrigação não se restringe ao Poder Judiciário, mas a todo e qualquer servidor público em sua acepção mais ampla, abrangendo todos aqueles que, em nome do Estado, exercem funções que podem impactar os direitos fundamentais dos cidadãos. A efetivação do controle de convencionalidade por todos os atores estatais é, portanto, um imperativo para a consolidação de um Estado democrático de Direito comprometido com a proteção integral dos direitos humanos.

 


[1] Todas as condenações do Brasil estão reunidas aqui

[2] Existem diversas outras iniciativas, como a Recomendação nº 123/2022, a Resolução nº 364/2021, a criação do O Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos e do Observatório de Direitos Humanos, etc.

[3] Trecho retirado da página 159 da sentença que pode ser consultada na íntegra aqui

[4] Por todos, indica-se a obra do querido amigo Paulo Henrique Gonçalves Portela, intitulada Direito Internacional Público e Privado, que já está em sua 17ª edição.

[5] Valério Mazzuoli os define como indivíduos devidamente habilitados a praticar atos internacionais em nome dos Estados que representam (Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Forense, 2019).

[6] UNICEF. O que são direitos humanos? s.d. Texto disponível aqui.

[7] Pode-se ilustrar esta hipótese com o art. 89 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, o qual prevê que “1. A presente Convenção entrará em vigor no trigésimo dia que se seguir à data do depósito do trigésimo quinto instrumento de ratificação ou adesão.

2. Para cada Estado que ratificar a Convenção ou a ela aderir após o depósito do trigésimo quinto instrumento de ratificação ou adesão, a Convenção entrará em vigor no trigésimo dia após o depósito, por esse Estado, de seu instrumento de ratificação ou adesão.