Opinião

Qual Defensoria Pública está pedindo passagem? Reflexões sobre o 19 de Maio

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19 de maio de 2025, 16h20

Diante das evoluções tecnológicas de seu tempo, que permitiram missões espaciais, inclusive com direito a caminhada em solo lunar, a filósofa Hannah Arendt levantava um curioso questionamento há mais de 60 anos [1]: a conquista do espaço pelo homem, aumenta ou diminui a sua estatura? Em outras palavras, a humanidade se torna maior ao expandir os seus domínios para além de nosso planeta ou é apequenada ao se observar de um ponto distante da galáxia vagando em um pálido ponto azul?

A pensadora também indagava se o desenvolvimento da ciência, que conduziu à conquista do espaço terrestre e à invasão do espaço sideral, teria mudado as noções dos conceitos de “vida”, “homem”, “ciência” e “conhecimento” a tal ponto que elas deixariam de possuir sentido para os cidadãos daquele século vinte.

Permitindo a ousadia de trazer uma inquietação similar para uma instituição do sistema de justiça de nosso tempo, a pergunta que proponho a fazer nesse início do texto é: a Defensoria Pública aumenta ou diminui a sua estatura quando programas computacionais revolucionam a forma de acesso à justiça, possibilitando a elaboração de teses e petições jurídicas de forma infinitamente mais veloz do que permitiria a capacidade humana? Em outras palavras, a Defensoria Pública se torna maior quando defensores públicos não precisam mais escrever cada palavra dentro de um processo de assistência jurídica ou se apequena justamente por esse motivo?

As noções de “acesso à justiça”, “processo decisório”, “julgamento” e “assistência jurídica” permanecem as mesmas desde que a Defensoria Pública passou a ter previsão no texto constitucional há quase quarenta anos? Ou estão se modificando tanto, que teremos que reaprender o real significado de tais noções com as novas gerações de defensores e defensoras que chegarão nessa instituição no futuro?

Para responder a esses questionamentos, é importante não perdermos de vista o fato de que toda a revolução tecnológica que estamos vivenciando — com a disseminação dos mecanismos de inteligência artificial para consumo em massa —, apesar da aceleração das cadeias de produtividade em todo o mundo, não alterou em nada certos aspectos da nossa realidade.

Os nossos celulares são capazes de enumerar em segundos todas as sentenças da corte interamericana de direitos humanos que culminaram em condenações de Estados-partes em casos de violência de gênero, mas isso não impende que a cada seis horas uma mulher seja assassinada em nosso país pelo simples fato de ser mulher [2].

Defensoria em tempos de tecnofeudalismo

Enquanto os leitores leem este texto, seus celulares captam cada palavra escrita, processam essas palavras enquanto códigos algorítmicos e quando o texto se encerrar, é provável que propagandas vendendo pacotes de programas de IA sejam mostradas nos próximos cliques em seus aparelhos. Mas podemos ler um tratado sobre racismo estrutural em nossos celulares e mesmo assim certamente nenhum código algorítmico vai se encarregar de mostrar na tela de nossos aparelhos que uma pessoa negra é morta a cada doze minutos no Brasil [3].

Não importa o quão avançados nos consideremos em termos científicos, nosso país deve levar quase 116 anos para que pessoas negras tenham acesso às mesmas oportunidades que pessoas brancas [4]; 80 anos para que mulheres tenham salário igual aos homens [5]; 2.180 anos para titularizar todos os territórios quilombolas com processos no Incra [6] e, ainda, uma quantidade incomensurável de anos para demarcar as mais de 200 terras indígenas que estão em espera [7].

Spacca

Importante sempre lembrar que a Defensoria Pública é uma instituição de acesso à justiça concebida dentro de uma janela histórica-política de um país cuja formação enquanto nação se assenta em pilares de subjugação de grande parte da população, com efeitos sentidos até os dias de hoje. Tais pilares consistem no regime escravocrata que vigorou por quatro séculos; na colonização genocida dos povos indígenas; na subjugação física, institucional, jurídica e cultural de mulheres; na violência sistêmica dirigida contra pessoas LGBTQIA+ e na abissal desigualdade social.

E se olharmos em volta, é facilmente percebível o quanto a revolução digital, que opera mais um ciclo de virada tecnológico, em nada contribuirá para a diminuição dos níveis de desigualdade ou para o aperfeiçoamento da distribuição de bens sociais. É justamente o oposto, pois o que observamos é um agigantamento dos conglomerados econômicos, que, ao reviver lógicas feudais de acumulação de renda e concentração de poder nas mãos de poucos, contribui para a reconfiguração das dinâmicas sociais em uma linha que vem sendo identificada por certos estudiosos como tecnofeudal [8].

Além do acentuamento de desigualdades e concentração de renda, esse mundo pós pandêmico forja um novo cidadão, o empreendedor de si mesmo [9], que tem todos os setores da vida monetizados. Não apenas a moradia, saúde, educação, segurança e lazer, mas vivenciamos também a monetização das áreas mais recônditas de nossas esferas privadas: nosso ócio, estado de espírito e pensamentos. Basta darmos uma rápida olhada no que nós, e nosso círculo de amigos, costumamos postar nas redes sociais para inevitavelmente concordamos com essa constatação. Assim, uma nova subjetividade se forma, sendo o niilismo uma marca. Na falta de crença na realidade, valores como verdade tornam-se relativos [10].

Redesenho da Defensoria

Então, nas comemorações relativas ao dia 19 de maio, dia da Defensoria Pública, vale a pena refletirmos sobre o tipo de instituição de acesso à justiça e de promoção de direitos humanos que precisa ser formatada para dar conta destes novos tempos e estes novos indivíduos.

Há cerca de 14 anos atrás, a Lei Complementar 132/2009 operou transformações copernicanas no eixo da Defensoria Pública, passando de um modelo de prestação de assistência jurídica para um modelo institucional de promoção de direitos humanos. A partir dessa virada normativa, um grupo de defensores públicos e pesquisadores publicou uma obra seminal chamada Uma Nova Defensoria Pública Pede Passagem, indicando as repercussões da Lei Complementar 132/2009 sobre o perfil, as perspectivas e a estruturação da Defensoria Pública, bem como sinalizando atuações possíveis da instituição à luz da nova realidade normativa.

Diante dos desafios atuais, resta cada vez mais nítido que a Defensoria Pública somente se fortalece e aumenta consideravelmente sua estatura quando une os dois polos apontados nos parágrafos acima, isto é, quando consegue delinear um caminho institucional em que a prestação de assistência jurídica, aprimorada pelos aparatos tecnológicos mais avançados, se conecta às questões sociais mais urgentes do mundo vigente, questões essas complexas, estruturais e, sobretudo, coletivas.

No contexto contemporâneo, os processos históricos de exploração, exclusão e subalternização de certos grupos e identidades são potencializados pelos fenômenos da financeirização e da corrosão do pacto social. Dentro desse cenário, as atuações encampadas pela Defensoria Pública, quando implicam em tentativas de rompimento desses processos, tornam-se inevitavelmente incômodas e, justamente por isso, muitas vezes desencadeiam reações de retaliação e tentativas de silenciamento. Mas a pergunta que não podemos perder de vista é: incômodas para quem?

Demarcar terras indígenas griladas certamente gera incômodos; assim como exigir alimentação digna a pessoas presas; uma política de fiscalização eficaz do sistema de saúde; a titularização de terras quilombolas em áreas disputadas por projetos de grandes resorts; a preservação de assentamentos de reforma agrária vilipendiados por empreendimentos minerários, tudo isso é incômodo e precisa mesmo ser.  Afinal, a persistente busca pelo consenso quando se está em jogo a violação de direitos fundamentais de grupos e identidades historicamente marginalizados é não apenas uma visão equivocada de acesso à justiça e promoção de direitos humanos, é uma visão reprodutora de violências.

Para que tais atuações sejam possíveis e de fato eficazes, não podemos perder de vista que a independência funcional é um pilar essencial no exercício profissional de qualquer defensor ou defensora pública, não à toa previsto na Constituição. É a independência funcional que mantém a estabilidade do solo institucional, assegurando ao defensor, ou defensora, que é seguro caminhar com firmeza no exercício regular de sua profissão. Portanto, a transigência com a independência funcional implica na depredação e sabotagem do próprio futuro da instituição.

Considerando a lição de Herrera Flores, de que toda instituição é o resultado jurídico/político/econômico e/ou social de uma determinada forma de entender os conflitos sociais [11], as novas lógicas de dominação contemporâneas impõem o delineamento não apenas de um novo modelo de atuação, mas de uma nova imaginação jurídico-política institucional.

Dentro dessa imaginação jurídico-política, a preservação da independência funcional e a atuação em rede com a sociedade civil continuam sendo pressupostos fundamentais. Mas a identificação das formas — cada vez mais sofisticadas — de captura do Estado pelos grandes conglomerados econômicos, bem como o reconhecimento da própria captura da Defensoria Pública por interesses políticos de ocasião, desconectados de compromissos com a efetiva proteção de direitos fundamentais, e a consequente contraposição a esses movimentos, são diretrizes que devem guiar os passos dados por defensores e defensoras públicas no exercício de suas atribuições.

Para além da identificação dos processos de captura, uma nova imaginação jurídico-política institucional por parte da Defensoria Pública passa, certamente, pelo fomento de percepções que enxerguem o potencial de um redesenho institucional sustentado pela integração de ferramentas tecnológicas apropriadas, desde que essa postura não descambe em ilusões sobre qualquer tipo de “solucionismo tecnológico”. Tal redesenho deve ser capaz de fortalecer as estruturas de atuações coletivas em direitos humanos, de ampliar a capacidade dos defensores públicos na análise de problemas complexos e estruturais, viabilizando a realização de diagnósticos mais precisos e, por consequência, produções técnicas mais qualificadas e com maior possibilidade de impacto sobre a realidade.

Retomando as inquietações apresentadas no início do texto, é possível constatar que as noções de “acesso à justiça”, “processo decisório”, “julgamento” e “assistência jurídica” realmente passaram por transformações significativas ao longo dos últimos quarenta anos. Isso se evidencia, sobretudo, no momento em que tecnologias baseadas em inteligência artificial passam a produzir decisões vinculativas e com força de autoridade, operando por meio de sistemas de linguagem controlados por grandes corporações tecnológicas — o que revela uma mudança substancial nos procedimentos de aplicação do direito. Mas, se por um lado tais conceitos se modificaram, por outro lado, as noções de desigualdade, pobreza, violência de gênero, racismo, xenofobia e injustiça permanecem as mesmas e estão mais latentes do que nunca.

Quando em 2011, uma geração inteira de defensores púbicos pediu passagem para uma nova Defensoria Pública, certamente imaginavam que o bilhete dessa passagem seria apenas de ida, sem possibilidades de retrocessos, considerando a mudança legal e constitucional então conquistada. Então, o que desejo nesta data é que os atuais defensores e defensoras públicas de nosso país tenha sabedoria, força e fibra para seguir nessa estrada, mesmo sabendo que ela não tem fim. Um dia, daqui a 40 anos, uma nova geração de defensores e defensoras públicas contarão a história do nosso presente. A depender das nossas escolhas de hoje, essa nova geração terá motivos para se orgulhar e ainda celebrar o dia 19 de maio.

 


[1] ARENDT, Hannah. A conquista do espaço e a estatura humana. In Entre o Passado e o Futuro. Editora perspectiva, 3ª ed., 1957.

[2] Informação disponível em https://www.camara.leg.br/radio/programas/962678-as-vitimas-de-feminicidio-uma-mulher-morta-a-cada-seis-horas/. Acesso em 12/05/2025.

[3] Informação disponível em https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes. Acesso em 13/05/2025.

[4] Informação disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/11/brasil-pode-levar-quase-116-anos-para-atingir-equilibrio-entre-negros-e-brancos.shtml. Acesso em 12/05/2025

[5] Informação disponível https://www.ipea.gov.br/portal/categorias/45-todas-as-noticias/noticias/2462-mulheres-ganham-76-da-remuneracao-dos-homens. Acesso em 12/05/2025.

[6] Informação disponível em https://www.terradedireitos.org.br/noticias/noticias/no-atual-ritmo-brasil-levara-2188-anos-para-titular-todos-os-territorios-quilombolas-com-processos-no-incra/23871. Acesso em 12/05/2025.

[7] Informação disponível em https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/por-que-demarcacao-de-terras-indigenas-nao-avanca-entenda. Acesso em 12/05/2025

[8] VAROUFAKIS, Yanis. Tecno Feudalismo. O que matou o capitalismo. Editora Planeta, 2025.

[9] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo. Ensaio sobre a Sociedade Neoliberal. Boitempo, 2023.

[10] BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. A ascensão da política antidemocrática no ocidente Editora Politeia, 2023.

[11] HERRERA FLORES, J. A reinvenção dos direitos humanos. Fundação Boiteux, Florianópolis, 2009.

Autores

  • é defensora pública federal há 15 anos, atual defensora nacional de Direitos Humano (2023-2025), mestra e doutora em teorias jurídicas contemporâneas pela UFRJ.

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