Opinião

Dia nacional da Defensoria Pública: compromisso com justiça para todas e todos

Autores

  • é defensora pública de entrância final da Defensoria Pública do Estado do Ceará doutoranda em Direito pela Universidade de Fortaleza mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte professora de Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito e autora de Obras Jurídicas.

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  • é defensora pública do estado da Paraíba diretora da Escola Superior da Defensoria Pública da Paraíba membra do Coletivo Defensores Pela Democracia e aoautora do livro Litigância Estratégica na Defensoria Pública.

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19 de maio de 2025, 13h19

Celebra-se hoje (19/5) o Dia Nacional da Defensora e do Defensor Público. Mais que uma data protocolar, trata-se de momento propício à reflexão crítica sobre o papel institucional da Defensoria Pública no enfrentamento das desigualdades estruturais que atravessam o Brasil. Em um país marcado por profundas assimetrias sociais, raciais, territoriais e de gênero, a Defensoria Pública não pode ser reduzida à mera prestadora de serviços jurídicos individuais: é instrumento de justiça social e transformação coletiva.

Divulgação

A Constituição da República de 1988 — em seu artigo 134 — atribuiu à Defensoria Pública a missão de assegurar orientação jurídica, promoção dos direitos humanos e defesa, em todos os graus, dos necessitados. Tal previsão, inserida no rol das cláusulas pétreas, conecta-se diretamente à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), ao princípio do acesso à justiça (artigo 5º, XXXV) e ao direito à assistência jurídica integral e gratuita (artigo 5º, LXXIV). Não se trata de faculdade estatal: é dever constitucional indeclinável.

Entretanto, esse dever vem sendo reiteradamente negligenciado. Segundo o Atlas do Acesso à Justiça, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2021), mais de 70% da população brasileira não dispõe de condições econômicas para custear um processo judicial. Ainda assim, as Defensorias permanecem subfinanciadas e com cobertura territorial insuficiente. Dados da Anadep (2023) revelam que aproximadamente 40% das comarcas brasileiras seguem sem a presença institucional da Defensoria Pública. A ausência se dá, sobretudo, em territórios periféricos, comunidades tradicionais, áreas rurais e zonas de alta vulnerabilidade, perpetuando o ciclo de exclusão.

Tal lacuna institucional agrava-se nos contextos de violências interseccionais, como as audiências de violência doméstica em que mulheres permanecem desassistidas por ausência de Defensoria Pública. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024), houve aumento expressivo das agressões contra mulheres e das medidas protetivas concedidas.

A pesquisa Visível e Invisível – 2025 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2025) traçou o perfil dessas vítimas: majoritariamente mulheres entre 25 e 34 anos (43,6%), com escolaridade incompleta (33,6% com ensino fundamental e 39% com ensino médio completo) e autodeclaradas pretas e pardas (41,5% e 35,2%, respectivamente). Um perfil que escancara a sobreposição de vulnerabilidades – de gênero, raça e classe – e que exige resposta institucional sensível, articulada e contínua da Defensoria Pública.

A presença da Defensoria Pública como assistente qualificada da mulher é fundamental para garantir acolhimento, evitar a revitimização, coibir a violência institucional e assegurar a efetividade dos seus direitos. Essa atuação se coaduna com o objetivo central da Lei Maria da Penha, que busca deslocar a mulher da condição de vítima para o protagonismo. No entanto, tal protagonismo só é viável quando a assistência prestada é completa, contínua e interligada às demais esferas da proteção — judicial, extrajudicial, psicossocial e institucional. Atuação simbólica, fragmentada ou desarticulada apenas reafirma as barreiras já impostas pelo ciclo da violência.

Spacca

Nesse cenário de omissão do Estado, proliferam propostas que romantizam soluções precárias, como o modelo da advocacia dativa. Exemplo disso é o Projeto de Lei nº 4.676/2024, que pretende obrigar a nomeação de advogados dativos em processos cíveis e criminais sempre que a Defensoria Pública estiver ausente.

Tal proposta não apenas deturpa o dever constitucional do Estado, mas representa verdadeira tentativa de esvaziamento institucional. A advocacia dativa pode ter caráter subsidiário e excepcional, em regiões remotas onde a Defensoria ainda não chegou, mas jamais deve ser tratada como política pública estrutural. Se a Defensoria não consegue atender à demanda, o problema é orçamentário — não funcional.

Assimetria compromete missão

O Supremo Tribunal Federal já reconheceu esse desvio. Na ADI 4.163/SP, o ministro Cezar Peluso asseverou: “qualquer política pública que desvie pessoas ou verbas para outra entidade, com o mesmo objetivo, em prejuízo da Defensoria, insulta a Constituição da República” (BRASIL, STF). O uso de recursos públicos para manter modelos paralelos, em detrimento da Defensoria, além de ineficiente, é inconstitucional.

O modelo dativo, além disso, é tecnicamente limitado. Carece de atuação estratégica, não dispõe de equipes interdisciplinares, não tem estrutura para litígios complexos, nem exerce controle social. Sua atuação é individual, desarticulada e sem perspectiva interseccional. Não realiza educação em direitos, nem participa da formulação de políticas públicas. Não transforma realidades — apenas remenda injustiças.

A Defensoria Pública, por outro lado, articula o micro e o macro. Atua no processo individual, mas também nos litígios estruturais: combate o racismo institucional, o feminicídio, o superencarceramento, as violações contra pessoas em situação de rua, LGBTQIA+, indígenas e comunidades tradicionais. É ponte entre o Estado e os grupos invisibilizados. Atua com especializações, promove litigância estratégica, participa do desenho e do controle de políticas públicas, além de desenvolver ações de conscientização cidadã.

Para que essa atuação seja efetiva, a Defensoria precisa ser fortalecida. Segundo a pesquisa “Justiça e Orçamento”, as Defensorias Públicas recebem uma fatia bem menor do orçamento do Executivo do que os outros Poderes, ou seja, “o governo dá dinheiro a mais para quem deve fiscalizar e julgar abusos e omissões do próprio governo”. Essa assimetria viola a paridade de armas e compromete a missão constitucional da Defensoria.

É imperativo reconhecer que não há justiça social sem Defensoria Pública fortalecida. E não há Estado Democrático de Direito quando o acesso à justiça é privilégio de poucos. Como afirmou o ministro Herman Benjamin: “os milhões de vulneráveis do Brasil […] não têm outra instituição para protegê-los individualmente que não seja a Defensoria Pública” (Benjamin, 2025).

Neste 19 de maio, a celebração deve se converter em compromisso político: de governadores, parlamentares e da sociedade civil. É hora de romper com a histórica invisibilidade orçamentária imposta à Defensoria Pública, permitindo a configuração de uma instituição forte, respeitada e presente em todo país. Porque um país que nega justiça aos pobres, está negando sua própria democracia.

 


Referências (ABNT – NBR 6023:2018):

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 5 out. 1988.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.163, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 07 maio 2012. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 9 abr. 2025.

INSTITUTO JUSTA. Justiça e orçamento em 16 estados. São Paulo: Instituto Justa, 2024. Disponível em: https://www.justa.org.br/wp-content/uploads/2024/01/Justica-e-Orcamento-em-16-estados.pdf. Acesso em: 08 abr. 2025.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024. São Paulo: FBSP, 2024. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/. Acesso em: 9 abr. 2025.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil – 2025. São Paulo: FBSP, 2025. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/visivel-e-invisivel/. Acesso em: 9 abr. 2025.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Atlas do acesso à justiça. Brasília: IPEA, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br. Acesso em: 9 abr. 2025.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS DEFENSORAS E DEFENSORES PÚBLICOS (ANADEP). Relatório da situação das Defensorias Públicas Estaduais. Brasília: ANADEP, 2023. Disponível em: https://www.anadep.org.br. Acesso em: 9 abr. 2025.

BENJAMIN, Herman. Palestra proferida no evento “Defensoria Pública e os direitos fundamentais dos vulneráveis”. Brasília, abr. 2025.

CÁTEDRAS. PL que obriga a nomeação de advogado dativo a mulheres vítimas de violência doméstica avança na Câmara. 8 abr. 2025. Disponível em: https://www.catedras.com.br/2025/04/08/pl-que-obriga-a-nomeacao-de-advogado-dativo-a-mulheres-vitimas-de-violencia-domestica-avanca-na-camara/. Acesso em: 9 abr. 2025.

Autores

  • é defensora pública do estado do Ceará, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, doutora em Direito pela Universidade de Fortaleza, professora efetiva – Classe 10 – Nível 3 da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e ex-diretora da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Ceará.

  • é defensora pública do estado da Paraíba, diretora da Escola Superior da Defensoria Pública da Paraíba, membra do Coletivo Defensores Pela Democracia e aoautora do livro Litigância Estratégica na Defensoria Pública.

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