As fundações no Direito alemão (parte 1)
19 de maio de 2025, 15h15
Antes da unificação da Alemanha, não se pode falar em consenso quanto às fundações. No século 19, progride-se na distinção entre sociedade empresária, grupos de pessoas e estabelecimentos dotados de personalidade jurídica para a realização de objetivos utilitários. Trata-se do momento de conhecidas teorias e opiniões doutrinárias acerca da natureza da personalidade jurídica, da ficção da personalidade moral (Savigny e Windscheid), da posse objetiva (Savigny) e subjetiva (Ihering), entre outras.
Desde a entrada em vigor do BGB em 1900, as fundações mantiveram-se praticamente intangíveis no Direito alemão por todo o século 20: uma forma de cooperação contratual para a persecução de objetivos gerais e suprapessoais, capaz de tornar os particulares que a integram titulares de direitos e obrigações decorrentes do funcionamento da fundação. É verdade, no entanto, que quanto maior o número de particulares integrantes da fundação maior será a dificuldade de persecução desses objetivos permanentes e de natureza suprapessoal.
Se determinados direitos de titularidade de um indivíduo eram passíveis de supressão da esfera de seus direitos especiais — a bem de uma organização independente, esta poderia ser reconhecida como titular autônoma desses direitos.
Sobre os doutrinadores do tema no século 20, destaca-se Heinrich Lehmann, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Colônia entre 1920 e 1948, para quem essa “transferência” de direitos do indivíduo para a organização estaria concebida de dois modos: (1) por várias pessoas que formam uma união de pessoas, a qual figurará no negócio jurídico como titular de direitos autônomos (associação); e (2) pela constituição de uma organização (“estabelecimento”) que independe de qualquer substratum (base) pessoal, dotada de personalidade jurídica e destinada a assegurar permanentemente a vontade do criador registrada na escritura constitutiva, ou seja, a Stiftung (fundação) [1].
Dotação patrimonial
Obviamente, uma organização constituída sob a forma de fundação estaria dotada de recursos patrimoniais, sem os quais seria inviável realizar seus fins. No Direito alemão, em regra, o fundador garantiria essa dotação no próprio ato da fundação, para que esta tivesse mais chances de reconhecimento pela administração pública, obtendo, assim, personalidade jurídica [2].
E a dotação patrimonial seria uma condição essencial do ato constituidor da fundação? Se isso fosse verdade, a fundação seria apenas o patrimônio destinado a concretizar um fim autônomo e a vontade do fundador expressa no ato de constituição. O Direito alemão, todavia, enxergou outras possibilidades, pois os ativos da fundação eram meios para se alcançar os objetivos desta, mas não representavam um objetivo suficiente por si só (afinal, o sujeito de direito não eram os bens da fundação, mas, sim, a organização criada para realizar os objetivos da fundação).

Nessa linha de raciocínio, conceitualmente, a fundação seria uma organização reconhecida como titular de direitos, autônoma, criada para a realização de um fim suprapessoal permanente e descrito no ato constitutivo (conforme vontade do fundador), organização essa que seria mais tendente a ser dotada de bens do que a se formar a partir de um grupo de pessoas. Aliás, a fundação seria distinta da associação exatamente pela falta de uma base de pessoas (eventualmente, se a fundação vier a beneficiar determinada categoria de pessoas, não serão seus membros e administradores, e sim os beneficiários/destinatários do proveito decorrente do funcionamento da fundação).
Membros e distinções
A fundação pode e deve recorrer à vontade de certos indivíduos, os quais, contudo, figurarão no negócio jurídico como integrantes de sua estrutura organizacional, bem como praticarão atos em nome da fundação e nos limites da competência que lhes for atribuída, os quais valerão como atos da pessoa jurídica (lembrando que os órgãos da fundação não são titulares de direitos e obrigações).
No artigo 80 e seguintes, o Código Civil alemão dispõe sobre as fundações propriamente ditas, com direitos autônomos, fazendo algumas distinções, como as fundações não independentes. As fundações “não independentes” (unselbständige Stiftungen) ou fiduciárias são as mais comuns, criadas quando a pessoa jurídica destina a dotação de patrimônio a uma fundação que se obriga a alocá-lo permanentemente na realização de um fim determinado. Caso a realização desse fim demandar maior tempo, as pessoas jurídicas de direito público (o Estado, os municípios e as universidades públicas, por exemplo) estarão incumbidas de criar a fundação pertinente.
Para esse tipo de fundação, são necessários alguns critérios: a transferência de bens é feita de modo que o patrimônio da fundação não se confunda com o patrimônio preexistente da pessoa jurídica nem se beneficie de uma administração separada, ficando a salvo dos direitos de credores do administrador); ou os bens são atribuídos ao administrador por escritura inter vivos ou testamento, sob a condição de destiná-los aos fins da fundação (portanto, é admissível certa confusão de bens).
Postas as considerações históricas acima, dar-se-á continuidade, nos próximos dias, ao estudo do tema das fundações na doutrina, na jurisprudência e na legislação alemãs, sobretudo no que diz respeito aos “debates reformadores quase permanentes” [3] iniciados a partir dos anos 2000.
* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
[1] LEHMANN, Heinrich. Les fondations en droit français. In: Travaux de la Semaine Internationale de Droit, t. III (Les fondations). Paris: Sirey, p. 21-36, 1937.
[2] Idem.
[3] WEITEMEYER, Birgit. El estado actual del derecho de fundaciones alemán. Disponível aqui. Acesso em: 27/4.2025.
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