A unificação das eleições e o risco de apagão institucional nos municípios
19 de maio de 2025, 8h00
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 12/2022, de autoria do senador Jorge Kajuru, atualmente em debate no Senado, tem suscitado intensos debates no meio político e acadêmico. Após distintas emendas apresentadas, uma das propostas mais controversas visa acabar com a possibilidade de reeleição para cargos do Poder Executivo e estabelecer a coincidência das eleições em um único pleito quadrienal, a cada cinco anos. Apesar do discurso em torno da “eficiência” e da “redução de custos”, esse projeto evidencia-se, na prática, como um dos mais severos ataques à autonomia dos municípios desde a promulgação da Constituição de 1988.
O Brasil é organizado, sob o ponto de vista político e administrativo, como uma República Federativa. Nesse sistema, além da União e dos Estados-membros, os municípios representam o terceiro nível de organização, responsável por administrar as questões mais próximas aos cidadãos. A Constituição de 1988 conferiu aos municípios um papel de significativa relevância na estrutura do Estado, atribuindo-lhes competências específicas e prerrogativas que, até então, não tinham sido formalizadas de maneira tão clara na história constitucional brasileira. O artigo 18, por exemplo, garante autonomia e atribuições próprias aos entes municipais, reconhecendo-os como atores autônomos na implementação de políticas públicas e na governança local.
Contudo, apesar das garantias constitucionais, na prática, essa autonomia é constantemente limitada. O principal entrave reside na fragilidade financeira dos municípios, que frequentemente enfrentam insuficiência de recursos próprios, limitações de arrecadação e dependência de transferências federais. Essa realidade reflete-se na escassez de espaço decisório efetivo e na capacidade de atuação plena das administrações municipais, restringindo sua autonomia funcional e financeira — elementos essenciais para a realização de uma gestão verdadeiramente independente e eficiente.
Silenciamento
Sob a justificativa de simplificação do processo eleitoral e de combate à corrupção, a PEC 12/2022 propõe uma alteração estrutural que pode, na verdade, aprofundar a fragilidade do federalismo brasileiro. Ao eliminar a possibilidade de reeleição para cargos do Executivo, a proposta minimiza a renovação de lideranças e, ao estabelecer eleições unificadas de todos os cargos em um único pleito, limita de forma significativa a visibilidade de questões e lideranças locais. Essa coincidência de eleições, prevista para ocorrer a cada cinco anos, tende a centralizar o foco nas disputas federais, relegando as pautas municipais a um segundo plano ou até mesmo à invisibilidade.
Na prática, esse modelo diminui o controle social e o debate público sobre temas locais, o que é um passo perigoso para a saúde da democracia. Municípios e seus cidadãos perdem passo a passo um canal direto de representação e fiscalização. As lideranças comunitárias, que construíram vínculos de proximidade com a população e representam as demandas específicas de suas regiões, podem ser silenciadas diante de um processo eleitoral de grande escala, altamente nacionalizado e padronizado.
Ademais, há preocupações sobre o impacto dessa mudança na estabilidade administrativa dos municípios mais vulneráveis. A alternância de poder, que muitas vezes representa uma janela de renovação e de renovação de ideias, pode se tornar uma fonte de instabilidade crônica na gestão municipal, dificultando a continuidade de políticas públicas essenciais.
O desenho do federalismo brasileiro, segundo a Constituição de 1988, reconhece os municípios como entes federativos autônomos, dotados de prerrogativas próprias e responsabilidades constitucionais. Essa autonomia é vital para incentivar a diversidade de experiências, atender às demandas específicas de diferentes regiões e promover uma gestão mais próxima da população. Submeter os municípios ao calendário eleitoral da União e dos estados — de forma integral e obrigatória — representa, na contramão desse princípio, uma tentativa de uniformização e centralização que compromete essa autonomia, além de distorcer as prioridades locais.

A priorização das pautas nacionais e estaduais, ao invés de valorizar as especificidades municipais, reduz a capacidade de autonomia local e enfraquece os mecanismos de participação cidadã na gestão da cidade. Em regiões com problemas específicos, como desemprego, desigualdade social, acesso à saúde e infraestrutura, a centralização e a concentração de interesses reforçam a distância entre governantes e populações.
Simplismo
Outro aspecto negligenciado pela proposta refere-se ao impacto operacional e financeiro significativo que a unificação eleitoral acarretará.
A narrativa de que a unificação traria “economia” de recursos, por sua vez, revela-se simplista diante das reais dificuldades operacionais. O aumento de demandas e a necessidade de processos logísticos, administrativos e tecnológicos mais complexos podem, ao contrário, aumentar o custo total do calendário eleitoral, prejudicando a própria credibilidade do sistema eleitoral, que demanda recursos eficazes para garantir a lisura, integridade e segurança do voto.
Inobstante isso, a experiência mostra que o custo da democracia não deve ser visto apenas em números financeiros, mas também na qualidade e na legitimidade dos processos eleitorais, que garantem participação ampla e efetiva.
A proposta de “simplificar” e “moralizar” a política subestima a importância do fortalecimento das instituições democráticas e dos debates locais. Ao instituir uma lógica de centralização, ela pode produzir efeitos colaterais mais nocivos do que os problemas que pretende solucionar. Diminui a possibilidade de troca de experiências bem-sucedidas no âmbito municipal, invisibiliza lideranças regionais e limita a diversidade de opções para os eleitores.
Além disso, ressaltar a autonomia dos municípios não é mera formalidade jurídica; é uma garantia institucional para a convivência democrática, para a descentralização do poder e para a efetiva participação cidadã. Submeter os entes locais ao calendário eleitoral nacional ou estadual, sem levar em consideração suas particularidades, ampliará a distância entre os governantes e suas comunidades, aumentando o risco de aumento da abstenção, especialmente entre os setores mais vulneráveis e vinculados às questões do dia a dia municipal.
Pacto ameaçado
Se o objetivo declarado é aprimorar a qualidade da representação política e combater o desgaste da confiança nas instituições, o caminho não passa pela centralização das eleições ou pela limitação de mandatos. Pelo contrário, deve-se investir na valorização das lideranças locais, no fortalecimento das instituições democráticas, na maior transparência na gestão pública e na ampliação dos mecanismos de participação popular.
O fortalecimento das câmaras municipais, a melhoria da fiscalização, a ampliação da educação política e o incentivo à participação cidadã são ações que contribuem para uma democracia mais sólida, inclusiva e legítima. Reformas que visem ao aperfeiçoamento do sistema eleitoral devem respeitar e valorizar as especificidades do federalismo brasileiro, reforçando a autonomia municipal e promovendo uma cultura política de maior participação e responsabilidade.
Nossa democracia ainda está em fase de consolidação, e a cultura de participação política deve crescer e se fortalecer com o tempo. As eleições representam o momento mais importante da relação entre cidadãos e seus representantes, e sua realização periódica é vital para garantir o funcionamento do sistema democrático. Restringi-las ou centralizá-las sob argumentos de eficiência ou economia, sem levar em conta os impactos políticos, sociais e institucionais, pode tornar o modelo brasileiro mais autoritário e menos participativo.
A autonomia municipal, garantida pela Constituição de 1988, deve ser preservada e aprofundada. Para que a democracia seja verdadeiramente fortalecida, é preciso investir em instituições, em cidadania e em uma gestão pública descentralizada, que reconheça a papel fundamental dos municípios na construção de um país mais justo, participativo e integrado. Centralizar demais o processo eleitoral ou impor prazos uniformes sem considerar a diversidade do Brasil é, no fim, um caminho que ameaça o próprio pacto federativo e a qualidade da nossa democracia.
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