Opinião

A legalidade ou não da inversão da cláusula penal

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  • é doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS) juiz de Direito do Estado de Sergipe e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT).

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15 de maio de 2025, 6h33

O propósito deste artigo é discutir a legalidade ou não da inversão da cláusula penal, a partir do julgamento pela 2ª Seção do STJ do REsp 1.631.485/DF [1], de 8 de maio de 2019, em sede de recurso repetitivo, que resultou no Tema 971, com a seguinte tese firmada, verbis:

“No contrato de adesão firmado entre o comprador e a construtora/incorporadora, havendo previsão de cláusula penal apenas para o inadimplemento do adquirente, deverá ela ser considerada para a fixação da indenização pelo inadimplemento do vendedor. As obrigações heterogêneas (obrigações de fazer e de dar) serão convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial.”

Da relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, o recurso especial foi provido em parte, com voto divergente da ministra Maria Isabel Gallotti e, desde então, o Tema 971 tem sido alvo de críticas.

A inversão da cláusula penal significa dizer que em um contrato celebrado entre A e B, a cláusula penal que é prevista para eventual inadimplemento de A é aplicada a B.

A polêmica central é a seguinte: em um contrato de compra e venda imobiliária, a cláusula penal, até então inserida em desfavor do comprador/devedor, poderá também ser imposta em desfavor do vendedor/credor? Ou melhor, é possível estender a aplicação de uma multa contratual, originariamente incidente apenas em caso de atraso no pagamento das parcelas pelo comprador, também à hipótese de atraso na entrega do imóvel pela construtora? [2].

Cláusula penal

A cláusula penal é uma figura jurídica ligada ao direito das obrigações e vem sendo usada e desenvolvida por mais de dois mil anos [3], cuja ancestralidade histórica é atribuída à stipulatio poenae do direito romano primitivo [4], a qual tinha como “objetivos garantir a execução da obrigação principal e atribuir o dever de reparação ao devedor, na hipótese de inexecução do avençado” [5].

Também denominada de pena convencional ou multa contratual, é definida na doutrina clássica (Clóvis Bevilacqua) como “um pacto acessório, em que se estipulam penas ou multas, contra aquele que deixar de cumprir o ato ou o fato, a que se obrigou, ou, apenas, o retardar” [6].

Na doutrina moderna (Caio Mario da Silva Pereira), é definida como “uma cláusula acessória, em que se impõe sanção econômica, em dinheiro ou outro bem pecuniariamente estimável, contra a parte infringente de uma obrigação” [7].

A cláusula penal possui natureza jurídica contratual, porquanto se trata de uma obrigação acessória do contrato principal [8], pois visa a reforçar o vínculo contratual e estabelecer uma indenização convencional, uma vez que sua causa tem raiz no receio do inadimplemento do contrato [9].

Funções da cláusula penal

Duas funções são ínsitas à cláusula penal: função coercitiva, pois serve de reforço à obrigação principal, como um meio de intimidação ao devedor; função ressarcitória, pois serve como um instrumento de indenização, visto que pré-avalia o quantum das perdas e danos que o contratante terá que pagar, caso se torne inadimplente, ou seja, converte em res certa aquilo que é incerto[10].

Spacca

O objeto da cláusula penal é a promessa de uma pena convencional, quer dizer, uma promessa do devedor ao seu credor de lhe pagar uma prestação no caso de inadimplemento absoluto ou moral [11].

Geralmente, a cláusula penal é fixada em dinheiro, mas nada impede que seja convencionada em prestação de outra natureza, como a entrega de uma coisa, a realização de um ato ou serviço, ou a abstenção de um fato, podendo ser entabulada com a obrigação principal (uno actu), a que adere, ou em ato posterior, “em instrumento apartado, desde que antes da violação da relação obrigacional” [12], não se exigindo, para a sua celebração, emprego de palavras tradicionais (cláusula penal, pena convencional ou multa).

Espécies de cláusula penal

À luz de sólida doutrina [13], duas são as espécies de cláusula penal — a compensatória e a moratória — sendo que a primeira se refere à hipótese de inexecução completa da obrigação, e a segunda, às hipóteses de descumprimento de alguma cláusula especial ou simplesmente de mora. Assim, na hipótese de cláusula penal compensatória, ela se converte em benefício do credor, que opta livremente entre a exigência da pena e o cumprimento da obrigação, tornando-se uma via alternativa para o credor. Já na hipótese de cláusula penal moratória, assiste ao credor o direito de exigir conjuntamente a multa e o desempenho da obrigação principal.

Conforme doutrina dominante [14], a concepção da cláusula penal existe e funciona, desde sempre, em desfavor do devedor e não do credor, diferente, pois, do que foi decidido pelo Tema 971, de forma heterodoxa.

O caso julgado diz respeito a um contrato de promessa de compra e venda de um imóvel adquirido na planta e que, a despeito da adimplência do adquirente, a incorporada não entregou o bem no prazo ajustado. Com isso, o comprador ajuizou demanda indenizatória e, entre os pedidos, pugnou pela inversão da cláusula penal moratória, tendo sido deferido esse pedido pelo juízo a quo. A construtora apelou, argumentando pela inexistência de previsão legal de multa moratória a favor do adquirente, tendo o apelo sido provido parcialmente e, nesse ponto, afastada a inversão da cláusula penal. Após, o adquirente interpôs Recurso Especial nº 1.614.721/DF, que foi afetado em sede de recurso repetitivo.

Incidência da Lei dos Distratos

O primeiro ponto que enfatizo se relaciona à questão de ordem suscitada no julgamento, pertinente à incidência ou não da Lei dos Distratos (Lei 13.786/2018), vigente desde de 28 de dezembro de 2018 — que criou uma espécie de cláusula penal moratória legal [15] — mas que não foi aplicada aos processos em curso (o caso sub judice), por força da regra da proibição de retroatividade de leis, consectário do princípio da segurança jurídica implícito na Carta Magna [16], em respeito ao direito adquirido (artigo 5º, XXXVI, Constituição, artigo 6º, II, Lindb) dos contratantes em litígio.

Na origem, vê-se que as partes entabularam uma promessa de compra e venda imobiliária consumerista, mediante contrato de adesão, que não é uma categoria contratual de per si (propriamente dita), e, sim, uma modalidade de contratação padronizada, homogênea e massificada, com predisposição rígida e unilateral das cláusulas [17] e incidência nas searas civilística e consumerista.

Construtor e incorporador são categorias jurídicas distintas, mas, com frequência, as atividades coincidem, como foi o caso do julgamento, de sorte que ambos respondem solidariamente, sendo o incorporador o principal garantidor do empreendimento no seu todo, por ser fornecedor de produtos ou serviços (artigo 3º, CDC), isto é, devedor de uma obrigação de fazer e de dar [18] (a construção e a entrega do imóvel), enquanto o adquirente é o consumidor standard, o destinatário final do produto/imóvel (artigo 2º, caput, CDC), sendo devedor da obrigação de pagar.

No caso exposto, os contratantes são partes desiguais, aplicando-se in totum o CDC e, no julgado, há palavras-chave que merecem destaque: equilíbrio contratual, reciprocidade, cláusula moratória ressarcitória, impossibilidade de cumular com lucros cessantes, omissão do contrato, abusividade, obrigações heterogêneas, arbitramento judicial.

Tema 971

Sob minha ótica, a ratio decidendi do Tema 971 está equivocada, conforme as razões seguintes:

A uma, porque não se acha explícita, na tese firmada, sobre qual espécie de cláusula penal está a referir-se, se compensatória ou moratória.

A duas, porque a cláusula penal invertida é uma figura não prevista em lei e sequer foi entabulada no contrato celebrado, não obstante sua gênese seja essencialmente contratual [19]. Trata-se da criação de um negócio jurídico pelo Estado-juiz, em desacordo com o sistema do civil law.

A três, porque a cláusula penal, em sendo um negócio jurídico, deve ser entabulada antes do inadimplemento da obrigação assegurada, por ser uma promessa de prestação futura [20], somente exigível se houver inadimplemento culposo da obrigação assim garantida [21]. Jamais, portanto, pode ser criada após o descumprimento da obrigação.

A quatro, porque ignora a natureza jurídica das prestações contratadas, isto é, do lado do adquirente, tem-se uma obrigação pecuniária (de pagar) e, de parte da incorporadora, uma obrigação de fazer (entrega do bem), sendo consideradas obrigações heterogêneas, as quais necessitam ser convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial, ampliando ainda mais o litígio [22].

A cinco, porque, a pretexto de alcançar o equilíbrio contratual, ainda que omisso o contrato, a multa incidente apenas ao adquirente é fundamental não só para atender aos interesses da incorporadora, como também ao conjunto dos adquirentes, uma vez que a redução da poupança coletiva pode inviabilizar o empreendimento, haja vista que a incorporação é uma atividade complexa, a partir da aquisição do terreno, aprovação, construção e entrega da obra [23].

A seis, porque, em um contrato de adesão, inexiste uma reciprocidade de obrigações completa e absoluta, visto que o aderente tão apenas aceita as cláusulas impostas pelo incorporador, de sorte que a simples inversão é inconcebível, pois desnatura o contrato, não obstante possa a cláusula ser declarada nula, por ser abusiva (artigo 51, CDC) [24] ou até mesmo revisionado o contrato em si, por fato superveniente (artigo 6º, V, CDC).

A sete, porque a sua inversão pode se revelar gravosa para o adquirente, em razão da precípua função reparatória adotada (pré-fixação de perdas e danos), tornando impossível a cobrança de prejuízo suplementar (lucros cessantes, por exemplo), em detrimento do princípio da reparação integral do dano (artigo 6º, VI, CDC).

A oito, porque há o risco de a aplicação da inversão da cláusula penal alcançar multas previstas em contratos paritários, como os contratos civis e empresariais (artigo 421-A, CC), deturpando a noção da cláusula penal e gerando insegurança jurídica.

E, por último, porque a cláusula penal moratória, que tem nítida função coercitiva, com a sua inversão passa a ter uma preferencial função ressarcitória, subvertendo-se assim a sua vocação originária.

Portanto, entendo que o Tema 971 detém uma heterodoxia, num claro exemplo de “decisionismo judicial”.

 


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Segunda Seção). Recurso Especial 1.614.721/DF. Recurso Especial representativo de controvérsia. Compra e venda de imóvel na planta. Atraso na entrega. Novel lei n. 13.786/2018. Contrato firmado entre as partes anteriormente à sua vigência. Não incidência. Contrato de adesão. Omissão de multa em benefício do aderente. Inadimplemento da incorporadora. Arbitramento judicial da indenização, tomando-se como parâmetro objetivo a multa estipulada em proveito de apenas uma das partes, para manutenção do equilíbrio contratual. No caso concreto, recurso especial parcialmente provido. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, 22 mai. 2019. Disponível aqui.

[2] ROSENVALD, Nelson. Cláusula penal: a pena privada nas relações negociais. 3. ed. São Paulo: Foco, 2023, p. 290.

[3] SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula penal e sinal. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 11.

[4] ROSENVALD, Nelson. Cláusula penal: a pena privada nas relações negociais. 3. ed. São Paulo: Foco, 2023, p. 5.

[5] COSTA NETO, Moacyr da.  Da cláusula penal punitiva como instrumento de ajuste em contratos incompletos e relacionais. São Paulo; Dialética, 2024, p. 35.

[6] BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Edição histórica: Rio de janeiro: Rio, 1958, p. 54, v. 4.

[7] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 145, v. 2.

[8] RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral das obrigações. 30.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.262, v. 2.

[9] CARVALHO SANOS, J. M. de. Código civil brasileiro interpretado: direito das obrigações, 11. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986, p. 300, v. 11.

[10] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das obrigações. 1ª parte. 32.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.337, v. 4.

[11] ROSENVALD, Nelson. Cláusula penal: a pena privada nas relações negociais. 3. ed. São Paulo: Foco, 2023, p. 51.

[12] ROSENVALD, Nelson. Cláusula penal: a pena privada nas relações negociais. 3. ed. São Paulo: Foco, 2023, p. 35.

[13] LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil: obrigações em geral. 5.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989, p. 154. v. 2.

[14] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 14.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2022, p. 851.

[15] ABELHA, André; GOMIDE, Alexandre Junqueira. Breves críticas apriorísticas sobre as teses proferidas pelo STJ sobre a cláusula penal nos contratos imobiliários. Migalhas. 30 mai. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 17 mar. 2025.

[16] HORA NETO, João. A força normativa da boa-fé objetiva. Paraná: Thoth, 2024, p. 260.

[17] NOVAIS, Aline Arquette Leite. A teoria contratual e o código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 100.

[18] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 448.

[19] GIRARDI, Fernanda; CANTALI, Rodrigo. A inversão da multa contratual. Valor Econômico, 10/04/2019. Disponível aqui.

[20] SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Cláusula penal e sinal. Rio de Janeiro: GZ, 2019, p. 145.

[21] LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil: obrigações em geral. 5.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989, p. 153. v. 2.

[22] GUIMARÃES, Vynicius Pereira. A inversão da cláusula penal como mecanismo interventivo nos contratos de incorporação imobiliária: considerações acerca do tema 971 do Superior Tribunal de Justiça. Civilistica.com. Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 1–23, 2019. Disponível aqui.

[23] BICALHO, Rodrigo Cury. Distratos imobiliários: A lei, a jurisprudência atual e os reais impactos do desfazimento contratual. Migalhas. 23 fev. 2023. Disponível aqui.

[24] GUIMARÃES, Vynicius Pereira. A inversão da cláusula penal como mecanismo interventivo nos contratos de incorporação imobiliária: considerações acerca do tema 971 do Superior Tribunal de Justiça. Civilistica.com. Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 1–23, 2019. Disponível aqui.

Autores

  • é doutor em Direito pela UFBA, professor-associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Sergipe, desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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