É hora de revogarmos a Súmula Vinculante n° 24 do STF
13 de maio de 2025, 8h00
Razões da Súmula Vinculante n° 24 do STF
Secretário Municipal da Fazenda foi processado e condenado pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e sonegação fiscal. Fatos: desviou recursos do município (andava com o talão de cheques da Prefeitura no bolso) depositando em conta de terceiro, responsável pela administração de sua propriedade rural. Cheques depositados custearam insumos agrícolas e, inclusive, viagem de uma amiga para a Europa. A imputação do crime fiscal foi justificada porque ele não declarou os valores que desviou do município em seu imposto de renda. Non olet pecunia sed sanguis (“o dinheiro não tem cheiro, mas o sangue sim”), um princípio arcaico do direito tributário que diz que toda renda, lícita ou ilícita, deve ser submetida à tributação. O exemplo normalmente citado é o do cafetão, que deve recolher imposto sobre o proveito patrimonial resultante da exploração da prostituição.
A ação penal foi proposta em 2001, juntamente com ação de improbidade administrativa destinada à reparação do erário. Nesta, foi decretada medida cautelar sobre a propriedade rural, cuja avaliação superava o valor desviado. Além disso, também foi instaurado processo de constituição do crédito tributário. Os três processos (penal, cível e fiscal) tramitaram em conjunto. O criminal foi julgado procedente em primeiro grau em relação às três imputações. Ao tempo em que tramitava a apelação criminal, sobreveio decisão do então Conselho de Contribuintes determinando a suspensão da exigibilidade do crédito tributário enquanto não solucionada a reparação de danos na ação de improbidade. Argumento: o Estado não pode obter a reparação total do valor desviado e também cobrar tributo sobre o valor. Caso o total arrecadado com a venda dos bens bloqueados não cobrisse o valor total do desvio, aí, sim, o tributo seria incidente sobre tal parte, já que considerada renda. Bens levados a leilão. Valor arrecadado cobriu o dano. Lançamento fiscal anulado. Non olet corretamente relativizado.
Tudo isso foi documentado e anexado à apelação criminal, a fim de que o crime de sonegação fiscal fosse revisto. Tribunal manteve a condenação pelos três crimes. Quanto ao crime fiscal, foi dito que as instâncias penal e administrativa seriam independentes, razão pela qual o juízo criminal não estaria vinculado à decisão da autoridade fiscal. Na prática, alguém foi condenado por sonegar um tributo que não era devido.
Casos como esse permearam a jurisprudência brasileira na virada do século. O descompasso de coerência entre decisões criminais e fiscais que se debruçavam sobre o mesmo ilícito atingiu níveis alarmantes de arbítrio. A primeira guinada na solução do problema veio com o julgamento do HC 81.611 pelo STF, em 2003. O leading case trancou ação penal ao argumento de que a ausência de constituição definitiva do crédito tributário acarretava a falta de justa causa para a ação penal. Alguns precedentes julgados pelo STF no mesmo sentido levaram à publicação da Súmula Vinculante n° 24 em 2009: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
O enunciado foi comemorado na época como um instrumento de contenção do arbítrio judicial. As consequências processuais foram amplas: ações penais e inquéritos propostos antes da constituição definitiva foram anuladas, assim como prisões, buscas e apreensões, interceptações telefônicas etc. A partir de então, a persecução penal por crime fiscal só poderia iniciar após definitivamente constituído o crédito tributário. Isso gerou um curioso vácuo de jurisdição criminal em matéria fiscal, levando as agências penais que atuavam no segmento a mudar o foco da seletividade penal empresarial: os crimes da Lei n° 7.492/86 assumiram um protagonismo que até então não existia.
Equívoco dogmático da Súmula Vinculante n° 24 do STF
Tanto o HC 81.611 quanto a Súmula Vinculante n° 24 basearam-se numa premissa de dogmática penal equivocada. Não se sabia, ao certo, como classificar a constituição definitiva do crédito tributário na estrutura do crime fiscal. Houve precedentes que falavam em momento consumativo; outros, em condição objetiva de punibilidade. A súmula dá a entender que o esgotamento da instância administrativa seria essentialia delicti: “não se tipifica”.

As consequências penais e processuais foram as mais variadas: a reiteração de supressão de diversos tributos deixou de caracterizar continuidade delitiva, pois o lançamento definitivo é que assumiria o papel de momento consumativo. A prescrição penal só fluiria a partir da constituição final do crédito. Cautelares processuais penais (pessoais, reais ou probatórias) só eram válidas se posteriores ao lançamento etc.
A verdade é que o enunciado, comemorado inicialmente por parte da doutrina, vem hoje revelando problemas dogmáticos e processuais insolúveis. Se os verbos nucleares do artigo 1° da Lei n° 8.137/90 são “suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social”, como aceitar-se, dentro desses limites semânticos, que tais condutas ocorram com o esgotamento da instância administrativa (um tempo de crime que não está sob o controle do titular da conduta)? Por que valer-se de uma categoria dogmática equivocada e superada (crimes materiais x formais) [1] para limitar o alcance da súmula a apenas parte dos crimes fiscais? Se a supressão ou redução de tributo sob a modalidade de substituição tributária também deve ser apurada em processo administrativo fiscal, por que razão os crimes do artigo 2°, II, da Lei n° 8.137/90 e artigo 168-A do CP escapariam do enunciado? Porque são crimes “formais”… É sério isso?
Em suma, é um equívoco considerar-se o encerramento de um processo administrativo como consumação de um delito fiscal. E nem mesmo poderíamos salvar a solução realocando a questão para uma condição objetiva de punibilidade: não há previsão legal para tanto. Mesmo que houvesse, não seria justificável.
O resultado final disso é que, hoje, discute-se apenas autoria numa ação penal em que se imputa crime fiscal. O juiz criminal lava as mãos para a materialidade. Se o administrador decidiu pelo lançamento, então não cabe ao judiciário reabrir a questão. Se o legista atestou a morte de alguém, o juiz criminal não pode dizer o contrário, ainda que o cadáver apareça caminhando na audiência. Que dizer da imputação da majorante do artigo 12, I, da Lei n° 8.137/90 quando, no curso da ação penal é constatado um flagrante excesso de lançamento? Eu, juiz, vou ter que entrar nessa questão? No way…
Mas o pior de tudo é ver as gambiarras que as agências penais montam para contornar a Súmula Vinculante n° 24. A falsidade ideológica ou material arroladas nos incisos do artigo 1° da Lei n° 8.137/90 são ressuscitadas como delitos autônomos, para justificar o início da persecução penal antes do processo administrativo fiscal. Isso sem falar, conforme já denunciado por aqui [2], nos estratagemas de transformar o crime fiscal em estelionato ou lavagem de dinheiro. Seria o mesmo que processar alguém por lesão corporal seguida de morte quando a ação penal que imputa homicídio for suspensa por alguma razão. Parece brincadeira, mas não é.
É fácil perceber que a Súmula Vinculante n° 24 apenas realocou a responsabilidade pelo arbítrio. Antes, éramos obrigados a conviver com decisões judiciais arbitrárias (condenações criminais sem crédito tributário devido); hoje, somos obrigados a chancelar, na jurisdição criminal, algumas decisões administrativas arbitrárias (crédito tributário constituído em situações ou dimensões questionáveis).
Instâncias são independentes?
No futebol de várzea, havia uma regra de cultura que dizia: bola prensada é da defesa. Ninguém sabia de onde partiu essa regra, mas todos repetiam. É mais ou menos o que ocorre quando a jurisprudência cita o suposto princípio de que “as instâncias são independentes” para justificar que o juízo criminal não está vinculado a qualquer outro tipo de decisão, judicial ou administrativa. A bola é da defesa.
Tive a oportunidade de aprofundar essa questão de forma detalhada em estudo específico [3]. Aqui, só cabe resumir o assunto. O ordenamento jurídico deve ser visto a partir da unidade do ilícito. Um mesmo ilícito pode situar-se aquém ou além dos diversos círculos concêntricos que individualizam cada área do saber jurídico. Um ilícito administrativo também pode ser um ilícito civil. Um ilícito civil também pode caracterizar um ilícito penal. As condições dogmáticas e processuais dadas para cada área podem variar segundo as condições de exigência de reconhecimento desse ilícito.
Ainda assim, uma coisa é certa: o núcleo essencial do ilícito, naquele limite que ele se revela comum a todas as áreas do ordenamento jurídico, tem de ser tratado de forma coerente por todos elas. Isso é uma exigência básica de direito material, que não se confunde com a forma dinâmica como cada ordenamento jurídico disciplina os diversos tipos de processo sobre esse ilícito. Existem ordenamentos jurídicos que determinam que o processo administrativo deva ficar sobrestado caso o ilícito apurado também tenha natureza criminal, até a solução final a ser dada pelo processo penal. É uma estratégia processual interessante para prevenir uma decisão administrativa arbitrária em face de uma decisão criminal, que possui exigências dogmáticas bem mais rigorosas.
Mas, no Brasil, praticamente não há regra disciplinando a harmonização de processos de natureza diversa que se debruçam sobre o mesmo ilícito [4]. Isso nos faz compreender que, sob esse aspecto, as instâncias são efetivamente independentes, ou seja, é possível termos processos de natureza diversa apurando o mesmo ilícito. Mas veja-se que essa possibilidade é uma consequência meramente processual. O fato de termos dois ou três processos de natureza distinta, apurando a responsabilidade sobre um ilícito fático comum, não autoriza que, sob a lógica da unidade do ilícito, cada um desses processos possa dizer o que bem entender. Deve ser buscado um critério de coerência entre todas essas decisões. Infelizmente, não temos disciplina legal tratando do assunto, e isso gera distorções.
Minha hipótese é a de que o juiz criminal não está, via de regra, adstrito à conclusão da esfera administrativa ou cível. Mas tais conclusões configuram um robusto elemento de convicção que somente pode ser contraditado com base em fundamentação juridicamente válida. Há um universo de situações que se abrem a partir dessa premissa. Seria bom finalmente levarmos o assunto a sério para enfrentá-las.
Sim, as instâncias são independentes. Mas o objeto do ilícito é único.
Que destino deveria ser dado à Súmula Vinculante n° 24?
Revogação. Simples assim. A consumação de um crime de trânsito não depende do julgamento final do processo administrativo. Com muita frequência, dirigentes de instituições financeiras são processados pelo Banco Central para a apuração de condutas que também caracterizam crimes de gestão fraudulenta ou temerária (artigo 4° da Lei n° 7.492/86). A solução daquele processo não caracteriza momento consumativo ou condição de procedibilidade da jurisdição criminal. O mesmo pode ser dito em relação a erros médicos, danos ambientais e todos aqueles delitos que também geram a instauração de processos de natureza diversa, que se debruçam sobre o mesmo ilícito.
É uma pena que não tenhamos uma disciplina legal para harmonizar todas essas decisões. Mas parece um erro grosseiro conferir tratamento diverso apenas para crimes fiscais, uma vez que a lógica é exatamente a mesma em todas essas situações. Eu diria que a Súmula Vinculante n° 24 tem suas raízes ocultas na seletividade do poder punitivo, tão denunciada pela criminologia crítica. Algo bem parecido com o tratamento legal diverso para a reparação de danos quando o crime é fiscal (extinção da punibilidade) ou patrimonial (redução da pena). Importante lembrar que o carro chefe da jurisdição criminal empresarial no início do século eram os crimes fiscais (depois migrou para Lei n° 7.492/86 e, hoje, sedimentou-se na Lei n° 9.613/98 [5]).
A Súmula Vinculante n° 24 tem um enunciado que parte de premissas dogmáticas penal e processual equivocadas. O seu objetivo era, de certa forma, louvável: reduzir o segmento judicial de arbítrio. Mas, hoje, já temos dados suficientes para concluir que o referido arbítrio só mudou de mão.
Então, é preferível reconhecermos o equívoco teórico do enunciado, porém levando em consideração as lições históricas que aprendemos ao tempo em que a jurisdição criminal atuou de forma narcísica nos delitos fiscais.
[1] Para detalhes desse equívoco, v.: SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito Penal Econômico – Parte Geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, pp. 183-184.
[2] Amir Mazloum e Walid Mazloum. Persistente afronta à Súmula Vinculante nº 24 do STF: https://www.conjur.com.br/2024-mai-29/persistente-afronta-a-sumula-vinculante-no-24-do-supremo/#:~:text=S%C3%BAmula%2024,do%20lan%C3%A7amento%20definitivo%20do%20tributo.%20%E2%80%9D
[3] V. SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito Penal Econômico – Parte Geral, cit., pp. 270-275.
[4] Uma exceção a ser lembrada: arts. 92 e 93 do CPP.
[5] Essa migração será objeto de um artigo à parte.
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