Os descontos nas aposentadorias do INSS configuram crime de ódio?
11 de maio de 2025, 8h00
O Brasil acompanha notícias diárias do maior esquema de apropriação de valores de pessoas aposentadas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ou de seus pensionistas.

O site g1 é o que melhor esclarece a cronologia da fraude. Nele, vale citar que, entre 2016 e 2018, “surge o primeiro escândalo envolvendo entidades que faziam esse desconto em grande quantidade sem autorização. Em 2017, os descontos eram da ordem de R$ 41 milhões. No ano seguinte, esse número chegou a quase R$ 200 milhões”. [1]
Em 2019 foi proposta a Medida Provisória 871/2019, com a proposta da criação de um Programa Especial para Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade, tendo sido convertida na Lei 13.846 daquele ano, lei esta ainda em vigor, muito embora parcialmente revogada. [2]
A Lei 13.846 não apresentou resultados e os descontos foram aumentando com o passar dos anos. Uma pequena parcela de aposentados formulava reclamações, sem resultados. Ano passado, “um levantamento feito pela Controladoria-Geral da União (CGU) apontou que beneficiários do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) registraram, no primeiro semestre de 2024, 742.389 reclamações contra descontos associativos indevidos”. [3] A mesma notícia revela que a CGU repassou tais informações ao INSS, sem que houvesse qualquer resultado, que foram feitas 742.389 reclamações contra descontos associativos indevidos e que 6,54 milhões de beneficiários tiveram algum tipo de desconto em folha.
Exposta a calamitosa situação, a AGU excluiu quatro entidades investigadas pela Polícia Federal e a CGU e propôs ação cautelar pedindo o bloqueio de R$ 2,56 bilhões em bens de 12 entidades e de seus dirigentes, além de outras medidas. [4]
Esta breve síntese é suficiente para que se tenha uma ideia da gravidade dos fatos.
Crimes de ódio
Na lição de Cristiano Zanin Martins e Graziella Ambrósio, “crime de ódio é aquele que envolve a seleção intencional de uma vítima com base no preconceito de um criminoso contra o status real ou percebido da vítima. Ele pode se basear em gênero, opção sexual, raça, nacionalidade, características físicas, religião e crenças, inclusive opiniões políticas”. [5]
Os crimes de ódio, portanto, distinguem-se dos comuns porque são direcionados contra um grupo específico, com características próprias e determinadas. Um bom exemplo disto são os absurdos xingamentos em campos de futebol contra jogadores de cor negra, como ocorrido no jogo Cerro Porteño contra o Palmeiras, 7 de maio passado, quando um torcedor do time paraguaio foi filmado imitando um macaco na arquibancada do Estádio Nueva Olla. [6]
Várias condutas estão tipificadas como crime de ódio na legislação brasileira, como, por exemplo, o fato de alguém impedir a ascensão funcional de um empregado por ser asiático (artigoo 4º, § 1º, inciso II, da Lei 7.716, de 1989).
Descontos e os crimes de ódio
Os aposentados são idosos e, por isso, merecem proteção especial na Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, que no seu artigo 4º explicitamente proíbe que sofram qualquer espécie de discriminação. A esta modalidade de tratamento depreciativo dá-se o nome de etarismo, ou seja, preconceitos e discriminação existentes contra pessoas idosas. Tal fato é preocupação do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, principalmente no que toca ao mercado de trabalho de idosos. [7]
Crimes que atingiram pelo menos 742.389 pessoas que reclamaram, certamente mais de 1 milhão de aposentados e pensionistas, não podem ser vistos como simples casos de estelionatos previstos no art. 171 do Código Penal.
Na verdade, eles foram praticados através do desprezo à capacidade das vítimas de reagirem, na suposição preconceituosa de se tratarem de brasileiros ou viúvas incapazes de acompanhar a evolução de seus rendimentos. Etarismo puro, cumulado com o anseio do lucro fácil.
Dir-se-á que a equiparação não é possível, porque inexiste previsão explícita do etarismo constituir crime de ódio. Mas o argumento não resiste à interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal na ação direta de inconstitucionalidade por omissão nº 26, que, suprindo a ausência de previsão legal, assim decidiu:
Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica , por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”). [8]
O mesmo raciocínio pode ser utilizado para o caso sob análise. É preciso uma ação concentrada e eficiente no tratamento deste caso. Um dever do Ministério Público Federal, que não tem tido maior protagonismo neste caso.
Conclusão
A resposta ao título da coluna é: sim. As fraudes perpetradas contra as vítimas mais indefesas da sociedade, idosos com dificuldades de acesso a informações (o INSS não atende pessoalmente, mas só pelo telefone 135), praticada por anos seguidos, não pode ficar resumida a centenas de ações penais perdidas em varas federais atulhadas de processos e com forte tendência a perderem-se na impunidade da prescrição.
A Constituição dispõe que o bem de todos e o combate à discriminação é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (artigo 3º, inc. IV). Isto não pode resumir-se a trabalhos acadêmicos recheados de citações doutrinárias, mas deve revelar-se na prática concreta de atos de todos brasileiros.
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[1] g1. INSS: da lei de 1991 ao escândalo de 2025, relembre a cronologia da fraude. Disponível em: https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2025/05/06/inss-de-1991-a-2025-a-linha-do-tempo-dos-descontos-a-aposentados.ghtml. Acesso em 09 de maio de 2025.
[2] BRASIL. Lei 13.846 de 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13846.htm. Acesso em 09 de maio 2025.
[3] g1. Fraude no INSS: aposentados registraram, no 1º semestre de 2024, 742 mil reclamações sobre descontos indevidos. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/04/29/fraude-no-inss-742-mil-aposentados-apontaram-descontos-indevidos-no-1o-semestre-de-2024.ghtml. Acesso em 09 de maio de 2025.
[4] Folha de São Paulo. 9 de maio de 2025, A-13. Governo vê 1 entidades como núcleo da fraude do INSS e exclui Contag e sindicato de irmão do Lula.
[5] MARTINS, Cristiano Zanin e AMBRÓSIO, Graziella. Crime de ódio por motivação política. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 28 jul. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-28/zanin-ambrosio-crime-odio-motivacao-politica/. Acesso em 09 de maio de 2025.
[6] GloboEsporte. Torcedores do Cerro Porteño fazem gestos racistas para a torcida do Palmeiras; veja vídeo. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/times/palmeiras/noticia/2025/05/08/torcedor-do-cerro-porteno-faz-gesto-racista-para-a-torcida-do-palmeiras-veja-video.ghtml. Acesso em 09 de maio 2025.
[7] BRASIL. Govbr. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Entenda como o etarismo contribui para a exclusão de pessoas idosas do mercado de trabalho formal. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2024/junho/entenda-como-o-etarismo-contribui-para-a-exclusao-de-pessoas-idosas-do-mercado-de-trabalho-formal. Acesso em 10 de maio de 2025.
[8] STF. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26, relator Min. Celso de Mello. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240. Acesso em 10 de maio de 2025.
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