Público & Pragmático

Da regulação do transporte rodoviário de passageiro no plano federal: ADIs 5.549 e 6.270

Autores

  • é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

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  • é advogada especialista em arbitragem e Processo Civil coordenadora de arbitragem e contencioso judicial no escritório Justino de Oliveira Advogados.

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  • é estagiária jurídica no escritório Justino de Oliveira Advogados e graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC).

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11 de maio de 2025, 8h00

No contexto brasileiro atual, necessário compreender como a questão da regulação no setor de transportes rodoviários de passageiros está sendo operada no país, sob a perspectiva das autorizações administrativas, principalmente após o julgamento conjunto das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) nº 5.549 e nº 6.270 pelo Supremo Tribunal Federal, que fixou a constitucionalidade da autorização administrativa como legítimo instrumento de outorga de serviços públicos.

Em primeiro lugar, a redação do artigo 3º da Lei 12.996/2014 alterou a sistemática das formas de prestação dos serviços de transporte coletivo prevista na Lei 10.233/2001. Dessa forma, a nova lei passou a prever que, nos casos de serviços de transporte terrestre coletivo regular interestadual e internacional de passageiros, as outorgas poderão ser realizadas mediante autorização, independentemente de prévia licitação.

Contudo, tais alterações foram objeto de polêmica por considerável parte da doutrina especializada. Logo, diante da relevância do tema e da ampla discussão provocada pela legislação retromencionada, a controvérsia sobre a constitucionalidade do referido dispositivo legal foi submetida ao Supremo Tribunal Federal, por meio das ações diretas de inconstitucionalidade 5.549 [1] e 6.270 [2].

No caso, discutia-se justamente a constitucionalidade do modelo inaugurado pelo artigo 3º da Lei nº 12.996/2014, à luz do disposto nos artigos 37, caput e inciso XXI, e 175, caput, da Constituição, sob o argumento de que o transporte coletivo de passageiros deveria submeter-se ao regime dos serviços públicos subordinados à sistemática do artigo 175 da CRFB/1988 mediante realização de certame licitatório.

Nesse cenário, ao propor a ação direta de inconstitucionalidade em face dos dispositivos da Lei 12.996/2014 que alteraram o regime do transporte rodoviário, a PGR suscitou em sua exordial a seguinte interpretação à luz da Carta Magna de 1988:

“Consoante o art. 175 da Constituição da República, cabe ao poder público prestar serviços públicos, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, mediante licitação e na forma da lei. Consagrou o dispositivo constitucional a imprescindibilidade de prévio procedimento licitatório para delegação, por concessão ou permissão, de serviços públicos a particulares. Em se tratando de serviço de transporte interestadual e internacional de passageiros, a competência para realizar o procedimento licitatório e conceder a outorga é exclusiva da União, nos termos do art. 21, XII, e, da Constituição de 1988.”

Observa-se que a argumentação não está equivocada no que se refere à obrigatoriedade de procedimento licitatório prévio à delegação de serviços públicos via regime de concessão e permissão; entretanto, em nosso entendimento, a inadequação dessa fundamentação não cabe no regime de autorização. Isso porque o artigo 175 da Constituição trata tão somente das duas primeiras modalidades de delegação do serviço público ao particular, e tal entendimento foi referendado pelo relator ministro Luiz Fux no julgamento conjunto das ADI 5.549 e 6270:

Ab initio, deve-se notar que o artigo 175 da Constituição não trata de autorização, mas tão somente de concessão e permissão, modalidades de outorga a que se impõe o prévio procedimento licitatório. Por essa razão, somada à previsão constitucional de prestação do TRIIP por meio de autorização, tem-se claro que o dispositivo constante do art. 175 não se aplica à presente hipótese.”

Spacca

Pelo exame das motivações das requerentes das ADIs e da sustentação oral realizada no dia 15 de março de 2023 pelo então procurador-geral da República, Antônio Augusto Brandão de Aras, percebe-se que a PGR entendia que a norma constitucional atribuiu ao legislador originário a escolha entre os regimes de concessão, permissão ou autorização, não podendo ser a legislação interpretada restritivamente, inclusive por ser a Constituição dotada de interpretação sistêmica.

Além da necessidade de respeito ao interesse público e do combate à formação de monopólios e oligopólios (frise-se a tendência histórica de concentração no mercado de transporte rodoviário interestadual), a PGR reanalisou o caso à luz de critérios como a essencialidade da proteção do consumidor e a preservação do meio ambiente.

Em caso de violação de tais preceitos, defenderam a cassação do ato autorizativo, permitindo que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) intervenha com o objetivo de fazer cessar o abuso de direito.

Então, por 7 votos a 4, o colegiado do Supremo Tribunal Federal decidiu que é constitucional o regime autorizatário no setor de transporte rodoviário. Deste modo, segundo o relator, ministro Luiz Fux, também são constitucionais as alterações na legislação que permitem que serviços interestaduais de transporte coletivo de passageiros sejam prestados sem licitação, mas mediante autorização [3].

 

Válido dizer que, apesar do recente julgamento das ADIs 5.549 e 6.270, a temática não é novidade no Supremo Tribunal Federal. Citamos como exemplo o posicionamento do então ministro Celso de Mello, relator no julgamento da ADPF 81:

“Não mais subsiste o fundamento de ofensa ao art. 175, caput, c/c o art. 21, XII, e, ambos da Constituição, pois, naqueles casos em que a delegação unilateral assumir a forma administrativa da autorização, tonar-se-á desnecessária a prévia licitação para efeito de outorga da exploração de serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros (Brasil, STF, Arguição De Descumprimento De Preceito Fundamental 81. Relator Min. Celso de Mello. Julgamento: 23/10/2015).”

Liberdade para o legislador

Ante as alegações apresentadas, o instituto da autorização administrativa vem sendo objeto de releituras que o colocam em uma posição de legítimo instrumento jurídico para delegação de serviços públicos aos particulares.

Apesar dessa nova tendência – que encontra eco no entendimento da Suprema Corte, pois em um contexto de Estado Regulador, destaca-se a centralidade de se tratar o tema sob uma perspectiva que considere o plano fático e as consequências de determinados posicionamentos e decisões.

São três as maneiras de interpretar a previsão constitucional de autorização no serviço público: a primeira sugere que o artigo 175 da Constituição Federal não menciona a autorização como uma modalidade de delegação, mas isso não exclui sua aplicabilidade a qualquer serviço público; a segunda interpreta que a inclusão da autorização como forma de delegação conflita com o artigo 175, inviabilizando seu uso para delegação de serviços a particulares e; por fim, a terceira visão afirma que a autorização poderia permitir que certos serviços listados nos artigos 21 e 233 sejam prestados sob um regime de direito privado, típico de atividades econômicas (Oliveira; Cunha Ferraz, 2003 apud. Grotti, 2003[4]).

Diante de tais entendimentos, surge o regime de assimetria regulatória em um contexto no qual o agravamento de crises econômicas intensifica a perda do protagonismo do Estado em relação à prestação de serviços relevantes para a coletividade, fazendo com que a titularidade monopolística estatal perca um lugar de exclusividade no que diz respeito à execução de serviços públicos3, e abre janelas de oportunidade para um regime diverso, à luz da inovação e dos avanços tecnológicos, mediante revisitação aos moldes tradicionais de execução (Binembojm, 2017, p. 1274[5]).

Assim, pode-se concluir que a Constituição da República, ao permitir, em seu artigo 21, XII, a utilização do instrumento de autorização na prestação de serviços públicos por particulares, optou por oferecer ao legislador uma liberdade de conformação, a fim de verificar qual é o instrumento mais adequado em cada caso para delegar ao particular a exploração do serviço. Essa escolha, conforme apontam Couto e Silva (2002), não deve ser vista como uma falha do legislador, mas sim como uma intenção de conferir maior flexibilidade à União em relação a atividades econômicas de interesse coletivo.

 


[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 5.549, Relator Ministro Luís Fux. Distrito Federal. Brasília, DF, 29 de março de 2023. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=768157260.

[2] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direita de Inconstitucionalidade 6.270, Relator Ministro Luís Fux. Distrito Federal. Brasília, DF, 29 de março de 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15358470447&ext=.pdf.

[3] A previsão constitucional de prestação do TRIIP por meio de autorização (Art. 21, XI, “e”) afasta a incidência do artigo 175 da Constituição Federal, que impõe prévio procedimento licitatório especificamente às modalidades de outorga que pressupõem a excludência em razão da contratação pela Administração com determinado particular (BRASIL, STF, 2023).

[4] OLIVEIRA, Gustavo Justino de; CUNHA FERRAZ, Pedro da. Dilemas regulatórios na prestação do serviço de transporte coletivo rodoviário interestadual e internacional de passageiros: a autorização de serviço público na Lei n.º 10.233/01 ante as inovações tecnológicas que impactam o setor de transportes. In. TOJAL, Sebastião Botto de Barros (Coord.). Direito e infraestrutura: rodovias e ferrovias, 20 anos da Lei n.º 10.233/2001. Belo Horizonte: Fórum, 2021, v.2., p. 104-105. PDL 494/2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2265679.

[5] BINENBOJM, Gustavo. Assimetria regulatória no setor de transporte coletivo de passageiros: a constitucionalidade do art. 3º da Lei nº 12.996/2014. Revista de Direito da Cidade, [S. l.], v. 9, n. 3, p. 1268–1285, 2017. DOI: 10.12957/rdc. 2017. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/download/29544/21084.

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  • é professor doutor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor, advogado especialista em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • é advogada especialista em arbitragem e Processo Civil, coordenadora de arbitragem e contencioso judicial no escritório Justino de Oliveira Advogados.

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