Opinião

STJ é realmente o tribunal da cidadania: julgamento do Tema 1.198

10 de maio de 2025, 11h24

Vara Única de Cândido Mendes (MA), março de 2025. Foram identificadas 551 ações iguais pelo Poder Judiciário, todas propostas pelo mesmo advogado em 2024. Todas buscando a aposentadoria rural.

Declarações de residência com formatação idêntica, procurações outorgadas com assinaturas em nome de terceiros sem cumprimento das formalidades legais, além de documentos oficiais do INSS com endereços discrepantes.

Não para por aí: todos os autores alegavam residir no povoado Barão de Tromai, zona rural de Cândido Mendes, que tem 1.878 habitantes. Ou seja: cerca de 1/3 da população de todo um povoado seria composta por indivíduos aptos a se aposentarem ou a receberem pensão por morte.

Este tema sempre precisou ser enfrentando, mas não de uma forma fechada, e sim com diálogo, parcimônia e democracia, procurando conciliar todos os interesses envolvidos.

É por isso que o Superior Tribunal de Justiça, ao enfrentar o tema, demonstrou que realmente é o Tribunal da Cidadania.

Explico.

Demonstração de autenticidade da postulação

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que, diante de indícios de litigância predatória, o magistrado poderá determinar que a parte autora emende a petição inicial, demonstrando o direito de agir e a autenticidade da postulação.

Além disso, ressaltou-se que essa exigência deve ser fundamentada e observar a razoabilidade do caso concreto.

A decisão, tomada por maioria de votos, ocorreu no julgamento do Tema 1198, de relatoria do ministro Moura Ribeiro, que trata dos recursos repetitivos e busca definir os limites do poder geral de cautela dos magistrados diante da litigância predatória — agora, abusiva.

A decisão decorre do julgamento do Recurso Especial nº 2.021.665/MS, em sede de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR). Iniciado em fevereiro do ano passado, sob a relatoria do ministro Moura Ribeiro, o julgamento foi retomado com o voto-vista do ministro Luis Felipe Salomão, que acompanhou a tese proposta pelo relator.

A controvérsia reside, assim, no aparente tensionamento entre, de um lado, a segurança jurídica, a razoável duração do processo e a boa-fé processual, e, de outro, os direitos fundamentais de acesso à justiça, contraditório, devido processo legal e ampla defesa.

Acesso à Justiça de forma responsável

Embora o ordenamento jurídico assegure a segurança jurídica (artigo 5º, XXXVI, da Constituição), a duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, da Constituição) e imponha a boa-fé como dever processual (artigo 5º do CPC), também garante o amplo acesso à Justiça, incluindo suas instâncias recursais (artigo 5º, XXXV, da Constituição), bem como o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV, da Constituição).

Entretanto, o acesso à Justiça deve ocorrer de forma responsável e razoável, sob pena de comprometer o próprio funcionamento do sistema judiciário. A criação de demandas fraudulentas por meio de artifícios configura abuso e, por isso, deve ser identificada e combatida.

E foi com esta lente que o Superior Tribunal de Justiça analisou o caso concreto, valorizando todas as posições envolvidas. Durante o julgamento, houve o reconhecimento do caráter excepcional da litigância abusiva no Judiciário, ressaltando que o fenômeno deve ser combatido com fundamentação adequada pelo magistrado, tanto na condução do processo quanto no exercício do poder geral de cautela.

A mera existência de demandas repetitivas ou em massa não configura, por si só, um abuso ou prática predatória, mas a distinção entre esses fenômenos é essencial, pois a litigância em massa, muitas vezes, decorre da própria natureza coletiva dos conflitos subjacentes e nem sempre possui caráter abusivo.

Combate à litigância abusiva

O combate à litigância abusiva é uma das questões de maior relevância para o Poder Judiciário. Em 2023, o STJ promoveu uma audiência pública para debater o tema de forma aprofundada, reunindo representantes de diversos segmentos da Justiça.

Em relevante contribuição, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, no ano passado, a Recomendação CNJ 159/2024, estabelecendo diretrizes para a identificação, o tratamento e a prevenção da litigância predatória no âmbito do Judiciário.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil
fachada do STJ

O ato normativo orienta que a caracterização da litigância abusiva deve considerar condutas ou demandas desprovidas de fundamentação, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, indevidamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou contrárias ao dever de mitigação de prejuízos, entre outros aspectos. Segundo o CNJ, dependendo da extensão e dos impactos causados, tais demandas podem configurar litigância predatória.

Assim, caso existam indícios de litigância abusiva por meio de ações infundadas, o magistrado pode solicitar ao advogado documentos adicionais que corroborem minimamente o pedido. Entretanto, essa medida deve ser adotada com fundamentação adequada e observância ao princípio da razoabilidade.

A tese fixada foi a seguinte:

O juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, que a parte autora emende a inicial, apresentando documentos capazes de lastrear mimimamente as pretensões deduzidas.

Ao apresentar a tese, o STJ buscou evidenciar a necessidade de equilibrar a legitimidade dos processos de massa com a ocorrência de eventuais abusos por parte de advogados.

Consumidores impactados

O potencial de impacto para os consumidores é significativo, pois tais processos decorrem de demandas relacionadas a planos de saúde, fornecimento de energia, telefonia, previdência social e outras questões em que o desrespeito à legislação e aos direitos do consumidor ocorre de forma generalizada.

Contudo, mesmo com as defesas apresentadas por todos os lados, o STJ tomou o cuidado em destacar que a apuração sobre a eventual má-fé ou infração cometida por procuradores compete privativamente ao Conselho Federal da OAB, que, caso identifique irregularidades, deverá decidir sobre a aplicação da sanção cabível no âmbito do processo disciplinar.

Ademais, é fato que os poderes conferidos ao procurador no contrato de mandato devem ser interpretados com base na autonomia da vontade e no princípio da autodeterminação, não sendo, como regra, passíveis de revisão judicial. Exceções a essa regra incluem a realização de negócios ilícitos ou contrários aos bons costumes.

Novamente, o STJ mostrou sua grandeza, pois reconheceu a mudança e exclusão do termo “litigância predatória”, cuja utilização generaliza de forma arbitrária a atuação dos profissionais do direito, adotando a litigância abusiva.

Violação às prerrogativas da advocacia

Equiparar advogados e advogadas que atuam com seriedade em conflitos de natureza coletiva àqueles que agem de má-fé representa uma violação injusta às prerrogativas da advocacia. Nesse contexto, a tese representa uma conquista tanto para a advocacia quanto para a cidadania.

Com a definição da tese, podem voltar a tramitar os processos que estavam suspensos à espera da fixação do precedente qualificado. O entendimento deverá ser observado pelos tribunais de todo o país na análise de casos semelhantes.

Exigências judiciais excessivas, bem como o de eventuais equívocos decisórios, é uma realidade inerente ao funcionamento do Sistema de Justiça. Contudo, que tais riscos devem ser controlados de forma casuística, sem que se transformem em impedimento à implementação de boas práticas na condução processual por parte do Judiciário.

São nessas situações que o STJ confirma o caráter de defesa da cidadania e do Estado democrático de direito. É, sem dúvida, o Tribunal de Cidadania.

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