Opinião

Valor indicado na inicial da ação de indenização por dano moral é 'à vera' ou 'café com leite'?

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10 de maio de 2025, 6h02

Na minha adolescência tinha futebol todos os dias na casa dos meus pais. Jogávamos em duplas, das 16h até o anoitecer. Fui um craque incompreendido (perna de pau), mas jogava “à vera” — ou achava que jogava. A dupla, no entanto, poderia virar trio, desde que o terceiro integrante fosse “café com leite”, mantendo-se o equilíbrio da disputa.

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O ponto de partida para qualquer discussão a respeito de “como atua” o valor apontado no pedido de indenização (ou de compensação, para alguns) por dano moral (“à vera” ou “café com leite”) é o seguinte: formular pedido certo (expresso) e determinado (que delimita a qualidade ou a quantidade do que se deseja) é a regra (artigos 322 e 324 do CPC).

São exceções à certeza: os pedidos de correção monetária, de juros legais ou de inclusão das parcelas que vencerem no curso do processo — quando a obrigação for de trato sucessivo. Nessas situações, o Código admite que o pedido seja implícito (§ 1º do artigo 322 e artigo 323 do CPC).

Já a determinação apresenta as seguintes exceções: nas ações universais — que versam sobre universalidades de bens (v.g., pedido de restituição do acervo de uma biblioteca); quando não for possível determinar, desde logo, as consequências do ato ou do fato (v.g., pedido de indenização formulado por vítima de acidente que necessita de tratamentos futuros); e quando a determinação do valor ou do objeto depender de ato que deva ser praticado pelo réu (pedido condenatório em ação de prestação de contas).  São esses os casos de pedido genérico (indeterminado), segundo o Código (§ 1º do artigo 324 do CPC).

O pedido de indenização por danos morais pode perfeitamente se encaixar em uma das hipóteses previstas no § 1º do artigo 324 do CPC (v.g., ofensa contínua a direito da personalidade). No entanto, é importante esclarecer que a dificuldade em definir um valor não torna, por si só, o autor incapaz de apontar, desde já, o valor desejado, exceto quando este realmente depender de algum evento futuro.

A complexidade em quantificar o valor adequado para indenizar o dano moral é algo que persiste no futuro. Isso é diferente do desconhecimento das consequências do ato ou do fato no momento da propositura da ação, que se refere apenas ao presente — momentaneamente o autor não dispõe dos elementos para quantificar a indenização.

Xeque-mate?

Na vigência do CPC anterior, o STJ consolidou o entendimento de que, em ações de indenização por dano moral, o autor poderia fazer pedido genérico e atribuir um valor qualquer à causa (por exemplo: “1 mil reais”). Na prática, o eventual valor apontado pelo autor no pedido era considerado mera sugestão, referência ou estimativa. Caberia ao juiz determinar o montante adequado.

Também antes do CPC atual, o STJ editou a Súmula 326, cujo teor é o seguinte:

“Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca.”

Essa súmula tem como pressuposto o entendimento de que o pedido em ação de indenização por dano moral é apenas uma estimativa, razão pela qual somente o réu sucumbe quando condenado ao pagamento de qualquer valor.

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No entanto, o CPC vigente trouxe uma regra que não existia no Código revogado: o inciso V do artigo 292 determina que na ação indenizatória fundada em dano moral o valor da causa é o valor pretendido. Xeque-mate no pedido genérico e na Súmula 326?

O STJ tem mantido o entendimento de que o valor apresentado no pedido é um mero indicativo referencial, não configurando sucumbência recíproca se o juiz fixar valor inferior ao sugerido (AgInt no REsp 2.115.158/CE; REsp 1.837.386/SP; AgInt no REsp 1.854.487/DF; AgInt no REsp 2.045.249/RJ; AgInt no AREsp 1.904.364/SP).

Penso que o tema merece maior reflexão.

Se o valor da causa é o valor do pedido (inciso V do artigo 292 do CPC), o valor do pedido é o valor da causa: se uma coisa é igual a outra, a outra é igual a uma.

Além disso, quando o autor formula um pedido genérico, subtraindo do réu a possibilidade de debater o valor, e o juiz retira uma quantia da cartola, há clara afronta ao contraditório substancial (influência e não surpresa) do inciso LV do artigo 5º da CF e dos artigos 7º, 9º e 10 do CPC e à cooperação do artigo 6º do CPC.

Ressalte-se que a garantia do contraditório deve abranger não só a existência do débito (“an debeatur”), mas também o seu valor (“quantum debeatur”).

Caso o autor faça pedido genérico de indenização por dano moral, ainda que travestido de simples sugestão, entendo que o juiz deve conceder o prazo para a complementação da inicial, sob pena de indeferimento (artigo 321 e inciso II do § 1º do artigo 330 do CPC).

Por outro lado, penso que a concessão de valor superior ao que foi pedido — e não apenas sugerido — representará a prolação de uma sentença ultra petita (artigos 141 e 492 do CPC).

Ademais, se o pedido de indenização por dano moral não é um mero indicativo referencial, a Súmula 326 do STJ não tem razão de existir. É preciso atribuir consequência ao insucesso parcial, ainda que este diga respeito ao valor.

Note que o pedido determinado viabiliza o interesse recursal em caso de fixação de valor inferior ao pretendido. Não se pode dizer o mesmo quanto ao pedido genérico. Como falar em interesse recursal quando o autor, por exemplo, “entrega” a fixação do valor “ao prudente arbítrio do juiz”?

Estratégia

Alguém pode argumentar que a jurisprudência a respeito do valor indenizatório do dano moral é imprecisa, arbitrária ou lotérica, devido à ausência de parâmetros legais — apesar da existência de parâmetros jurisprudenciais e doutrinários (sistema bifásico, sistema trifásico etc.). Cabe ao autor, então, ponderar sobre os riscos de formular um pedido que apresente um valor com baixa probabilidade de êxito integral.

A verdade é que o pedido genérico tem servido como estratégia para o autor reduzir o valor da taxa judiciária estratégia em razão da redução do valor da causa estratégia e escapar de verbas decorrentes de uma eventual sucumbência parcial, violando o princípio da isonomia ou da paridade de armas (caput do artigo 5º da CF e artigo 7º do CPC).

A propósito, entendo que a fixação dos honorários deve seguir os parâmetros do § 2º do artigo 85 do CPC. A apreciação equitativa do § 8º do artigo 85 do CPC deve ser aplicada apenas quando a condenação ou o proveito econômico for de valor inestimável ou irrisório, ou o valor da causa for muito baixo (§ 6º-A do artigo 85 do CPC e tese repetitiva 1.076).

Ao contrário do que pensam alguns (v.g., AgInt no REsp nº 1.884.984/SP; AgInt no REsp 1.854.487/DF), o valor não se torna inestimável porque o dano moral diz respeito a condutas que ofendem direitos da personalidade sem conteúdo patrimonial.

O valor indicado na inicial de indenização por dano moral não é “café com leite.” Demandar exige responsabilidade e o demandado não pode ser o único a arcar com os riscos de um valor incerto.

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