Justo Processo

O esvaziamento das garantias fundamentais: reflexões sobre e o AgRg no RHC 200.123-MG (parte 2)

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10 de maio de 2025, 8h00

Na primeira parte deste artigo, examinamos as implicações jurídicas da (in)admissibilidade da confissão informal, com destaque para os riscos de retrocesso no tratamento das garantias processuais. Esta segunda parte se dedica a aprofundar a discussão sobre os limites constitucionais ao ingresso de agentes estatais em residências particulares.

A inviolabilidade do domicílio é uma garantia constitucional de primeira grandeza, insculpida no artigo 5º, inciso XI, da Constituição, que protege a intimidade, a vida privada e a honra, além de resguardar o direito ao sossego e à tranquilidade, tanto em âmbito individual quanto familiar, contra intervenções arbitrárias do Estado, exigindo, como regra, autorização judicial para ingresso forçado no interior da residência, salvo nas estritas hipóteses legais de flagrante delito, desastre ou para prestar socorro.

A interpretação dessa garantia constitucional foi delineada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 603.616/RO (Tema 280 da Repercussão Geral) [1], com base, precisamente, nos princípios da excepcionalidade e na exigência de máxima efetividade. Na ocasião, fixou-se a seguinte tese: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados”.

Nessa esteira, é fundamental fincar que o conceito de flagrante não pode ser artificialmente ampliado para legitimar práticas invasivas não autorizadas. O reconhecimento judicial de situações de flagrância deve observar critérios rigorosos, sob pena de se converter em instrumento de banalização de garantias fundamentais. Assim, a inviolabilidade do domicílio, como expressão do direito à privacidade e à liberdade individual, não pode ser relativizada com base em declarações frágeis, sem respaldo probatório idôneo, colhidas à margem das formalidades legais e sem controle judicial prévio.

Além das hipóteses de flagrante delito, é possível ainda o ingresso no domicílio mediante autorização do morador. Essa autorização, contudo, deve ser voluntária, inequívoca e, preferencialmente, formalizada de modo a permitir o controle posterior da legalidade da medida. Ainda que não se exija, em todos os casos, o registro escrito ou audiovisual do consentimento, sua ausência impõe ao Estado o ônus de demonstrar, com segurança e clareza, que o ingresso se deu com o assentimento válido e consciente do residente, sob pena de violação à garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar.

Nesse passo, a alegação genérica pelos policiais de que houve autorização verbal para ingresso em domicílio do acusado, sem qualquer registro idôneo do ato, não se revela suficiente para afastar a incidência da cláusula de inviolabilidade do domicílio.

Zona de tensão

Spacca

Não foi, contudo, esse o entendimento adotado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Nos autos do AgRg no RHC 200.123-MG, o colegiado entendeu que, ao lado da (inadmissível) confissão verbal informal, a autorização verbal concedida pela companheira do acusado seria suficiente para legitimar o ingresso dos policiais no domicílio, reforçando, assim, a legalidade da diligência. Para a Turma, a ausência de documentação formal da autorização — seja por meio escrito ou audiovisual — não invalida, por si só, o consentimento, sendo suficiente o testemunho de agentes públicos.

A análise da validade da autorização para o ingresso de agentes estatais em domicílio, supostamente concedida pela companheira do acusado, evidencia uma zona de tensão entre a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar (artigo 5º, XI, da Constituição) e os efeitos da chamada injustiça epistêmica testemunhal, matéria já abordada na coluna [2]. No presente caso, a injustiça epistêmica se caracteriza diante da excessiva credibilidade conferida à versão apresentada pelos agentes públicos — acolhida, de forma acrítica, como se gozasse de presunção de veracidade. Essa situação descortina a fragilidade da proteção ao espaço doméstico quando se admite que o simples relato policial, desacompanhado de comprovação objetiva e contestado pelos envolvidos, seja suficiente para legitimar a excepcionalidade da medida invasiva.

Tal desequilíbrio não apenas compromete a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, como também perpetua uma lógica estrutural de injustiça epistêmica, na qual determinadas vozes — frequentemente situadas em posições sociais marginalizadas — são sistematicamente silenciadas ou desacreditadas no processo penal. Em tal cenário, impõe-se o fortalecimento dos mecanismos de controle sobre a atuação policial e a adoção de critérios mais rigorosos para aferição da legalidade das provas obtidas mediante suposta autorização informal. A superação de práticas que, sob o manto da neutralidade institucional, validam versões unilaterais e contestadas é indispensável à preservação do devido processo legal e das garantias fundamentais.

A controvérsia ora analisada também descortina, mais uma vez, a falta de coerência interna nas decisões do Superior Tribunal de Justiça. No mesmo informativo (nº 847) em que se encontra o acórdão que atribui presunção de veracidade à palavra dos agentes públicos (AgRg no RHC 200.123-MG) — reproduzindo uma lógica de autoridade que tende a descredibilizar, sem justificação racional, outros relatos — consta outro julgado (AgRg no HC 965.224-MG [3]) que reconhece, expressamente, que “o testemunho policial pode, sim, servir de prova em um processo criminal, devendo, para tanto, ter seu conteúdo racionalmente valorado”.

Esse segundo entendimento, aliás, não é isolado, encontrando respaldo em diversos outros julgados do próprio Superior Tribunal de Justiça [4], que reafirmam a necessidade de análise criteriosa e contextualizada dos depoimentos prestados por agentes públicos. Em tais precedentes, a corte reconhece que, embora o testemunho policial não deva ser automaticamente desconsiderado, tampouco pode ser alçado à condição de prova plena sem submetê-lo aos mesmos filtros de racionalidade e coerência exigidos de qualquer outro elemento probatório. Essa linha interpretativa, mais prudente e alinhada aos princípios do devido processo legal e da presunção de inocência, reforça a importância de um juízo de valoração fundado na conjugação de todos os dados constantes dos autos, evitando-se decisões baseadas exclusivamente em narrativas unilaterais, especialmente quando ausentes outras provas corroborativas.

Cenário de coação

No contexto do julgado objeto do presente artigo, acrescenta-se que, ainda que houvesse provas do consentimento da companheira do acusado para o ingresso na residência do casal, seria imprescindível considerar o contexto em que essa suposta anuência foi obtida, uma vez que o próprio STJ considera que o consentimento deve ser manifestado de forma livre, não podendo ser considerado espontâneo o consentimento proferido em clima de estresse policial (REsp 2.114.277). A inobservância dessa exigência não apenas compromete a legalidade da prova obtida, como também pode configurar a prática do crime de abuso de autoridade, nos termos do artigo 22, caput e §1º, inciso I, da Lei nº 13.869/2019.

Com efeito, situações de constrangimento circunstancial, como a presença ostensiva e inesperada de agentes armados, o clima de intimidação natural de uma abordagem policial e a ausência de orientação quanto ao direito de negar o acesso, retiram qualquer espontaneidade da expressão de consentimento, tornando-o inválido. Nessas condições, a autorização não pode ser considerada expressão livre da vontade do morador, mas sim resultado de um cenário de coação implícita, incompatível com o respeito às garantias fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito.

Exatamente por isso, levando em consideração a forma pela qual a atividade policial se expressa no mundo real, o registro audiovisual das abordagens policiais surge como uma ferramenta imprescindível na aferição da legalidade e da legitimidade das provas colhidas durante a execução desse meio de produção de prova. A bem da verdade, a resistência de certos setores da sociedade é absolutamente incompreensível, uma vez que a utilização desses instrumentos favorece a transparência da atuação estatal, permite o controle externo da atividade policial e assegura ao Judiciário elementos mais objetivos para o juízo de valor sobre a veracidade dos relatos. Em pleno ano de 2025, inseridos em uma sociedade marcadamente tecnológica, não se justifica a ausência ou a recusa sistemática desse tipo de documentação, sobretudo quando está em jogo a mitigação de direitos fundamentais. A consolidação do uso de tecnologias de gravação, já amplamente disponíveis, representa não apenas um avanço probatório, mas também uma exigência mínima de respeito ao devido processo legal e à paridade de armas no processo penal contemporâneo.

Infelizmente, até nisso o o julgamento do AgRg no RHC 200.123-MG representa um passo e meio para trás, já que consignou-se que a ausência de registro audiovisual da suposta autorização para ingresso no domicílio não comprometeria a legalidade da prova, sob o argumento de que tal exigência não encontra respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, trazendo-se à baila o entendimento firmado nos autos do RE 1.447.045 AgR [5].

Ocorre que, apesar do precedente citado realmente flexibilizar a necessidade de registro audiovisual das autorizações de entrada em domicílio, ele não representa entendimento uniforme da Corte Suprema. Basta lembrar que ao finalmente decidir a ADPF 665 – a chamada ADPF das Favelas – o STF ponderou que ponderou que o histórico de recorrentes abusos no uso da força por agentes de segurança pública evidencia a necessidade urgente de implementação de medidas estruturais voltadas à proteção da vida, da integridade física e da saúde, tanto da população civil quanto dos próprios policiais. Tais medidas têm por finalidade não apenas conter excessos, mas também conferir maior transparência à atuação policial, assegurar a independência das investigações e reforçar os instrumentos de controle externo, especialmente sob a responsabilidade do Ministério Público.

Diante disso, foram determinadas providências específicas, entre as quais se destacam: a regulamentação das buscas domiciliares e a instalação de câmeras de monitoramento em viaturas e fardamentos. No tocante à instalação de dispositivos de geolocalização (GPS) e sistemas de gravação audiovisual nas fardas dos agentes de segurança pública, reconheceu-se que o governo estadual já adotou diversas medidas preliminares. Diante desse cenário, o prazo inicialmente fixado para a comprovação da efetiva implementação das câmeras nas viaturas da Polícia Militar e da Polícia Civil foi prorrogado de 120 para 180 dias. No que se refere especificamente à Polícia Civil, estabeleceu-se que o uso de câmeras corporais será restrito às atividades de patrulhamento, policiamento ostensivo e operações previamente planejadas.

Embora a ADPF em questão trate especificamente da realidade do estado do Rio de Janeiro, não se pode ignorar o potencial efeito irradiante de seus fundamentos sobre futuras decisões da Suprema Corte. Em razão do princípio da coerência jurisprudencial — corolário da segurança jurídica e da isonomia —, espera-se que os entendimentos firmados nesse precedente sejam observados como parâmetro interpretativo em casos análogos, especialmente aqueles que envolvam o controle da letalidade policial e a proteção de direitos fundamentais em outros entes federativos. Trata-se, portanto, de uma decisão com relevante capacidade de indução normativa, cujos efeitos transcendem os limites territoriais do ente federado diretamente envolvido, contribuindo para a consolidação de uma jurisprudência constitucional uniforme e harmônica.

O uso de câmeras corporais e em viaturas representa um avanço civilizatório no campo da persecução penal e do controle da atividade policial, uma vez que não impõe prejuízo a qualquer dos envolvidos — ao contrário, produz ganhos relevantes para todos. Policiais que atuam dentro da legalidade são resguardados de acusações infundadas, enquanto pessoas investigadas ou abordadas se veem protegidas de eventuais abusos e violências ilegítimas. Para além disso, o registro audiovisual contribui significativamente para a concretização de um dos objetivos centrais do processo penal: a busca da verdade, com respeito ao devido processo legal e às garantias fundamentais. Assim, a gravação das ações policiais reforça a confiança nas instituições e torna o sistema de justiça mais transparente, equilibrado e eficiente.

 


[1] STF, RE 603.616/RO, Min. Relator Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 05/11/2015, DJe 10/05/2016.

[2] https://www.conjur.com.br/2024-nov-30/injustica-epistemica-no-processo-penal-brasileiro-parte-1/

[3] STJ, AgRg no HC 965.224-MG, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, por unanimidade, julgado em 8/4/2025.

[4] Nesse sentido, vide: STJ, HC 742.112/SP, relator Min. Rogério Schietti Cruz, Dje 30/03/2023; STJ, AREsp 1.936.393/RJ, relator Ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, j. em 25/10/2022.

[5] STF, RE 1447045 SP, Min. Rel. Alexandre de Moraes, 1ª Turma j. em 02/10/2023, DJe 06/10/2023.

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