O criterialismo em For Women Scotland v. The Scottish Ministers
10 de maio de 2025, 8h00
Esta coluna examina a decisão da Suprema Corte do Reino Unido no caso For Women Scotland v. The Scottish Ministers, que enfrentou uma tensão interpretativa entre a Gender Recognition Act de 2004 — marco legal que possibilita a alteração do sexo legal por pessoas trans — e a Equality Act de 2010, legislação que sistematizou normas antidiscriminatórias com base em características protegidas, incluindo sexo e identidade de gênero.
Embora tenha recebido atenção limitada no meio jurídico brasileiro, a decisão é significativa ao afirmar que os conceitos de “sexo”, “mulher” e “homem” devem ser interpretados de forma objetiva, com base em critérios biológicos.
Este texto problematiza tal entendimento, argumentando que a Corte recorre a uma abordagem restritiva e criterialista (à luz das concepções de Dworkin e Streck), desconsiderando a complexidade teórica envolvida na distinção entre sexo e gênero, bem como a dimensão simbólica e social das categorias em disputa.
Sobre o caso e sobre a visão do corte sobre o caso
Há menos de um mês a Suprema Corte do Reino Unido, no dia 16 do mês último, tornou pública uma decisão polêmica relativa à questão de gênero [2]. A corte proferiu a decisão no caso For Women Scotland v. The Scottish Ministers.
O caso concreto se referia a um recurso de uma associação, a For Women Scotland Ltd., a uma orientação estatutária emitida pelos Ministros Escoceses. Após uma decisão judicial anterior que considerou uma definição de “mulher” de uma lei escocesa (a Lei de Representação de Gênero em Conselhos Públicos de 2018), a apelante contestou uma primeira vez a definição estatutária de “mulher” na secção 2 da Lei da Representação de Gênero em Conselhos Públicos da Escócia de 2018 e as orientações associadas [3].
O tribunal (Inner House Court of Session) concluiu que essa definição, ao incluir mulheres trans, ia além da competência legislativa do Parlamento Escocês, pois “infringe a natureza das características protegidas, que é uma matéria reservada [à legislação do Reino Unido, isto é, do Parlamento britânico]” [4].
Em resposta a esta decisão judicial, os Ministros Escoceses emitiram novas orientações estatutárias. Estas orientações revistas operaram com base na premissa de que a definição anterior estava anulada. Em vez disso, os Ministros Escoceses afirmaram que uma pessoa com um Certificado de Reconhecimento de Gênero (GRC) completo, indicando que o seu gênero adquirido era feminino [5].
Essa nova orientação operava com a premissa de que uma pessoa que recebeu um certificado completo de reconhecimento de gênero (GRC) com seu gênero adquirido sendo feminino, teria o sexo de uma mulher e, portanto, contaria para o objetivo de alcançar 50% de representação de mulheres em conselhos públicos. Esta posição era consistente com o parecer da Comissão para a Igualdade e Direitos Humanos (EHRC).
A orientação afirmava que “mulher” na Lei de 2018 tinha o significado das seções 11 e 212(1) da Lei de Igualdade de 2010 (Equality Act 2010) [6]. Além disso, afirmava que, de acordo com a seção 9(1) da Lei de Reconhecimento de Gênero de 2004 (Gender Recognition Act 2004) [7], quando um certificado de reconhecimento de gênero (GRC) completo fosse emitido para o gênero adquirido feminino, o sexo da pessoa se tornaria o de uma mulher.
A posição revista do governo escocês é que uma mulher trans com um GRC completo é tratada pela EA 2010 como tendo o sexo adquirido de uma mulher e, portanto, é uma “mulher” nos termos das seções 11 e 212(1) da referida legislação. A apelante contestou estas orientações revistas na ação judicial que chegou ao Supremo Tribunal [8].
A lide fundamentação do caso, então, era se uma pessoa com um GRC era legalmente uma “mulher” para efeitos da EA 2010, tal como afirmado nas orientações [9]. Por discordar da decisão favorável à tese nos tribunais inferiores, a apelante (uma associação de direitos das mulheres da Escócia) levou o caso à Suprema Corte.

Segundo a decisão, portanto, o requerimento feito perante a Suprema Corte do Reino Unido é uma questão de interpretação estatutária [10]. A corte afirma, então, não possuir o papel de decidir sobre os debates públicos sobre o significado de gênero ou sexo, nem de definir a palavra “mulher”, exceto quando usada nas disposições da EA 2010 [11].
O papel limitado da corte seria, então, aos olhos de seus membros, ver se as palavras usadas pelo Parlamento na EA 2010, ao legislar para proteger mulheres e membros da comunidade trans contra discriminação, podem ter um significado coerente e previsível dentro da EA 2010 de forma consistente com a GRA 2004 [12].
A questão central da apelação é se a EA 2010 trata uma mulher trans com um GRC como uma mulher para todos os propósitos dentro do escopo de suas disposições, ou quando a Lei fala de “mulher” e “sexo” se refere a uma mulher biológica e sexo biológico [13]. Portanto, para os juízes, o que se estaria decidindo era se as referências na EA 2010 ao “sexo” de uma pessoa deve ser interpretado à luz da seção 9 da GRA 2004 para incluir pessoas que têm um gênero adquirido por meio da posse de um GRC.
Sobre a decisão
O tribunal, neste caso, abordou a questão central da interpretação dos termos “sexo”, “homem” e “mulher” na Lei da Igualdade de 2010 (EA 2010), particularmente considerando o efeito da Lei de Reconhecimento de Gênero de 2004 (GRA 2004) [14].
O argumento geral da maioria foi no sentido de que a interpretação estatutária envolve “procurar o significado das palavras que o Parlamento utilizou” [15]. Essa “técnica” seria empregada, então, para buscar a interpretação mais “coerente” e “previsível”. O tribunal salientou que a interpretação estatutária implica uma avaliação objetiva do significado que um legislador razoável procuraria transmitir ao utilizar as palavras no estatuto [16].
Na opinião da corte, embora a atenção primária seja dada ao texto estatutário, quando há dúvida sobre o significado, indicadores do propósito do legislador fora da disposição em questão podem ter peso significativo. Outra fundamentação que chama a atenção na opinião da corte é que em determinado momento o texto afirma que há “apenas uma definição de sexo” e esta é a biológica, de “fundamental importância” para a EA 2010 [17].
Ao analisar as disposições do EA 2010, o tribunal deu peso significativo às definições de “sexo” na secção 11 e “homem” e “mulher” na secção 212 (1): A secção 11 define a característica protegida de sexo referindo-se a um homem ou uma mulher, e a pessoas que partilham uma característica protegida como pessoas do mesmo sexo [18]; A secção 212(1) define “homem” como um “masculino de qualquer idade” e “mulher” como alguém “feminino de qualquer idade” [19], mas a corte afirma que “a definição de sexo na EA 2010 deixa claro que o conceito é binário, uma pessoa é ou uma mulher ou um homem” [20]. Isso levou o tribunal a considerar que o significado comum destas palavras claras e inequívocas corresponde às características biológicas que fazem de um indivíduo um homem ou uma mulher.
O tribunal identificou várias disposições do EA 2010 que, na opinião da maioria, só fazem sentido se o “sexo” tiver um significado biológico e seriam incoerentes ou inexequíveis se incluíssem o “sexo certificado” (ou seja, o sexo adquirido por meio de um GRC). Entre elas, estão disposições relativas à gravidez e maternidade [21], serviços separados e de sexo único [22], alojamentos comunitários [23], instituições de ensino superior de sexo único [24], prática de esportes [25], cotas de gênero no setor público [26], entre outros fatores.
Com base nesses argumentos, o tribunal rejeitou a sugestão da instância inferior (Inner House) de que a palavra “mulher” poderia ter um significado variável no EA 2010 (biológico para gravidez e maternidade, e sexo certificado noutros locais) [27]. Considerou que uma definição variável não é clara, constante, nem previsível, o que contraria o propósito da lei [28]. Por todas estas razões, o tribunal concluiu que o EA 2010, por meio da linguagem, contexto e propósito das suas disposições, dá ao significado dos termos “sexo”, “homem” e “mulher” no EA 2010 como sendo biológico [29].
Críticas ao criterialismo da decisão
Apesar desta conclusão, o tribunal afirmou que uma interpretação de sexo biológico não coloca em desvantagem nem remove a proteção importante sob o EA 2010 para pessoas trans (com ou sem GRC).[30] Estas pessoas continuam protegidas pela característica protegida da reatribuição de gênero e podem invocar disposições sobre discriminação direta, assédio e discriminação indireta.
Isso tudo pode ser verdade — e os argumentos dos juízes também podem estar corretos ao afirmar a dificuldade de se garantir direitos que foram legislados dentro de uma lógica para pessoas cisgênero (como é o caso da EA 2010) dentro de uma nova lógica, a da convivência com pessoas trans. Por mais que haja essa dificuldade, reafirmar o significado de termos como sexo, homem e mulher como sendo primariamente biológicos acaba reforçando uma lógica discriminatória contra pessoas trans.
Isso se dá porque decisões judiciais são atos de fala (speech acts). Como afirmava John L. Austin, “fazemos coisas com palavras”. Disso se conclui que decisões judiciais traduzem uma “dimensão simbólica” (Bourdieu) que muitas vezes ultrapassa os limites daquilo que os juristas pretendem que o direito seja — uma ciência “clara e objetiva”. Ademais, lendo a decisão da corte britânica, pode-se observar um sem-número de passagens em que os juízes parecerem aderir àquilo que Dworkin acusa ser o principal problema do positivismo jurídico: o de se utilizar de conceitos criteriais (lógicos e objetivos) ao tratarem de conceitos interpretativos [31].
De início a corte afirma “não possuir o papel de decidir sobre os debates públicos sobre o significado de gênero ou sexo, nem de definir a palavra “mulher”, exceto quando usada nas disposições da EA 2010”. Ora, ao definir a interpretação de uma lei, a corte na prática define o significado desses termos em relações jurídicas que terão efeitos reais na vida das pessoas.
Outro exemplo é quando a corte considera que admitir uma definição dos conceitos de “sexo”, “homem” e “mulher” como variável não é clara, constante nem previsível e que ela contraria o propósito da lei. Sobre isso, toda a concepção de “finalidade da lei” é problemática quando interpretada à luz da principiologia constitucional. Com Lenio Streck, nota-se que buscar o “propósito” ou “vontade da lei” (voluntas legis ou voluntas legislatoris) é um debate ultrapassado. “Para a hermenêutica de cariz filosófico é irrelevante discutir simplesmente ‘textos’, pela simples razão de que, como já bem lembrava Gadamer, ‘textos são eventos’ ou, como diz Stein, ‘textos são fatos’. Não há ‘conceitos’ sem ‘coisas’!” [32]. Isto é, não é possível determinar os conceitos de “homem” e “mulher” ignorando sua factidade e como tais conceitos são (re)interpretados.
Para além disso, a corte afirmar que tais definições precisam ser claras, constantes e previsíveis ignora a realidade social que nos mostra que tais conceitos deixaram de ser conceitos criteriais de há muito para se tornarem conceitos interpretativos. Aqui não se trata de negar critérios biológicos de classificação, mas sim de reconhecer que esses critérios não são mais suficientes para garantir direitos a todos os gêneros. Consequentemente, o ceticismo apresentado pela corte em situações concretas demonstra uma posição conservadora para com inovações legislativas que reconheçam essas novas relações de gênero — que podem, sim, englobar temas moralmente sensíveis, como é o caso da prática de esportes por mulheres trans —, mas que precisam ser debatidos de maneira mais bem qualificada.
Sabemos que o caso For Women Scotland evidencia um debate mais profundo que o próprio direito: é um caso que evidencia também o debate entre um feminismo de vertente mais radical, focado nos interesses das mulheres cis e outra frente interseccional, aliada da causa das mulheres trans. Neste texto não pretendi me adentrar neste debate (até por uma questão de local de fala) [33], mas quis demonstrar que a decisão é um caso claro de uso de conceitos criteriais para um debate que, por mais que já tenha sido visto dessa forma no passado, se trata atualmente de um debate sobre conceitos interpretativos, ou, no mínimo, de conceitos variáveis, como demonstrou a decisão de instância inferior.
Se quisermos desestigmatizar relações entre pessoas cis e transgênero e construir um “constitucionalismo democrático-paritário” [34], devemos associar a ideia de (direito como) integridade como associada à ideia de concepção de dignidade humana. A ideia de que os indivíduos deveriam ser tratados com igual consideração e respeito uns com os outros em suas relações na comunidade, em Justice for Hedgehogs é resultante da concretização dos princípios de dignidade, agora incorporados [35].
Por mais que a Suprema Corte britânica tenha amenizado os impactos de sua decisão — e o Reino Unido seja um país que já garanta mais direitos às pessoas do trans que a maioria dos demais países —, a violência simbólica da decisão em For Women Scotland pode reverberar na opinião pública e quiçá na processo legislativo, enquanto seus efeitos práticos serão sentidos na pele por pessoas trans todos os dias. Tudo por uma questão de mero criterialismo.
[1] Gostaria de agradecer imensamente a colega Luísa Giuliani Bernsts, da qual a colaboração foi determinante para a redação desta coluna.
[2] A íntegra da decisão pode ser conferida em: https://supremecourt.uk/uploads/uksc_2024_0042_judgment_aea6c48cee.pdf.
[3] For Women Scotland, §18. Doravante, FWS. Todas as traduções da decisão são livres e minhas.
[4] Ibid.
[5] §19.
[6] Doravante, EA.
[7] Doravante, GRA.
[8] §22
[9] §20.
[10] §4.
[11] §2. Grifos nossos.
[12] Ibid. Grifos nossos.
[13] Ibid.
[14] §2
[15] §29
[16] §31. Grifo nosso.
[17] §175
[18] §168.
[19] §169.
[20] §171.
[21] §188.
[22] §215.
[23] §224.
[24] §228.
[25] §§233-235.
[26] §239.
[27] §189.
[28] §191.
[29] §264.
[30] Ibid.
[31] Cf. Dworkin, Ronald. Law’s Empire. Cambridge, MA.: Harvard University Press, 1986, em especial o segundo capítulo. Ainda sobre criterialismo, cf. o verbete constante no glossário in Streck, Lenio Luiz. Ensino jurídico e(m) crise: São Paulo: Contracorrente, 2024.
[32] Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 84.
[33] Para uma reflexão mais aprofundada do debate sobre os feminismos na teoria do direito, cf. Bernsts, Luísa Giuliani. Contrapúblicos interpretativos: uma provocação feminista às respostas corretas em direito. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.
[34] Cf. Bunchaft, Maria Eugênia. A jurisprudência brasileira da transexualidade: uma reflexão à luz de Dworkin. Seqüencia (Florianópolis), n. 67, p. 277-308, dez. 2013.
[35] Dworkin, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, MA.: Harvard University Press, 2010. p. 203-205.
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