Uma reforma apressada na disciplina da interpretação contratual?
9 de maio de 2025, 6h34
Enquanto franceses e alemães — os maiores paradigmas em tema de codificação — levaram décadas para amadurecer reformas pontuais em seus Códigos Civis, o Brasil parece querer, em tempo recorde, um novo Código Civil — sem o nome, sem o debate necessário e sem o devido processo legislativo previsto nos Regimentos do Senado e da Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei nº 4/2025, com mais de 1.200 propostas, representa uma guinada legislativa sem paralelo.
Como parte deste cenário geral, as normas sobre interpretação contratual presentes no artigo “421-Alfabeto” do PL chamam atenção pela pressa com que redigidas, por sua paradoxal extensão e pela consequente inconsistência.
O artigo 421-C propõe disciplina da interpretação fragmentária e imprecisa, provocando desunificação no direito obrigacional. Já os artigos 421-D, 421-E e 423 complicam ainda mais o quadro, trazendo vaguidão, redundância e ensejo a expressivo ativismo judicial. O resultado é preocupante: arrisca-se a segurança jurídica em nome de uma modernização mal pensada.
Analisarei sumariamente esses dois blocos de dispositivos nos dois capítulos que seguem.
1) Armadilhas do art. 421-C: desunificação do direito obrigacional e obscuridade
O artigo 421-C merece prioritária atenção. O dispositivo busca estabelecer diferentes regimes de interpretação para distintas categorias de contratos: os chamados “paritários”, “empresariais”, “com disparidade econômica” e “por adesão”. A promessa de sofisticação esconde uma perigosa fragmentação do direito obrigacional e uma considerável dose de obscuridade legislativa, pois não há nem consenso doutrinário sobre as categorias utilizadas, nem clareza quanto às suas consequências práticas.
Apanho para exemplo a inovatória categoria dos “contratos empresariais”.
Primeiro, a definição é obscura, pois não se está trabalhando com os tradicionais conceitos de “contratos comerciais” ou “mercantis”, mas inaugurando um novo, que, de acordo com a Exposição de Motivos do PL, é restrito às “relações entre empresas”. Diante dessa delimitação, indago: contratos entre empresas e privados (como um contrato de compra e venda de participação societária) não se submetem à disciplina proposta? E os contratos de franquia, de distribuição, de representação comercial e tantos outros que, por vezes, têm pessoa física como parte? Nenhum desses se subsumiria ao conceito de “contratos empresariais” que o PL propõe, o que demonstra sua insuficiência.
Segundo, a proposição de uma disciplina própria e seccionada para contratos empresariais é defendida por parcela minoritária da doutrina brasileira, na contracorrente da unificação do direito obrigacional amadurecida ao longo do último século e consolidada pelo Código Civil de 2002 [1]. Olvidam-se lições clássicas de que a divisão estanque entre contratos “civis” e “comerciais” é “categoria histórica” que só se pode sustentar à luz de exigências de épocas pregressas [2], e olvida-se o caudal de doutrina que se firmou em prol de uma unitária disciplina geral dos contratos [3].
O proponente sequer utilizou como exemplo o que de mais próximo e mais recente se tem: o “Código Civil y Comercial” argentino de 2015, que unificou a disciplina para contratos civis e comerciais. A cisão sui generis que se propõe não existe sequer nos países que ainda têm Códigos Comerciais em vigência e que fazem aplicáveis aos contratos comerciais as normas de interpretação que regem os contratos em geral [4].
A proposta é, portanto, de desunificação e em prol de um resultado pouco consensual, pouco seguro e inovatório sob o ponto de vista comparado.
Mas vá-se aos dispositivos em si.
O caput do artigo 421-C, ao enunciar que os “parâmetros” de interpretação se aplicam salvo disposição de lei especial, sugere, equivocadamente, a exclusão da aplicação conjunta do Código Civil com diplomas como o CDC, a Cisg e a nova Lei de Seguros — algo que a doutrina majoritária reconhece como necessário e desejável.

Já o §1º, ao tentar definir “parâmetros adicionais” para a interpretação dos “contratos empresariais”, escorrega em três níveis: (i) importa modelos estrangeiros de quase nenhum desenvolvimento entre nós (e.g. “assimetria” ou “disparidade econômica” do inciso I [5]); (ii) utiliza linguagem imprecisa, próxima da doutrinária (e.g. “parâmetros adicionais de consideração e análise” do caput, “boa-fé empresarial” do inciso II ou “atipicidade natural” do inciso V); e (iii) mistura regras de conteúdo com critérios de interpretação, pois apenas dois dos seis incisos do §1º se aproximam, ainda que com timidez e redundância, de regras de interpretação (quais sejam, os incisos II e III), ao passo que todos os demais versam sobre conteúdo contratual, licitude de cláusulas e tipicidade) — criando, assim, uma colcha de retalhos normativa.
O §2º, por sua vez, refere a “contratos com disparidade econômica” — uma categoria inovatória [6] —, mas excetua a aplicação do próprio artigo 421-C sem oferecer disciplina substitutiva. Trata-se de um vácuo normativo travestido de regra. Ao legislar pela negativa (“não se aplicará o disposto neste artigo”) o PL apenas transfere a insegurança para o aplicador, sem fornecer critérios para lidar com a assimetria que afirma reconhecer. Não há maturidade no cenário brasileiro para que se introduza em lei referida categoria, especialmente sem disciplina minudenciada.
O resultado de tudo isso é preocupante: em vez de oferecer um norte, o artigo 421-C lança o intérprete num mar revolto de categorias imprecisas, expressões vagas e ausência de consenso doutrinário. Como lembra Paul Ricoeur, interpretar um texto é como ler uma partitura: é preciso um método claro, sob pena de se perder o sentido da música [7]. O artigo 421-C, ao contrário, mais confunde do que orienta, mais inova do que consolida. Em nome de uma modernização mal pensada, corre-se o risco de comprometer a segurança jurídica e a própria função estabilizadora da lei.
2) Arts. 421-D, 421-E e 423: vaguidão, redundância e ativismo judicial
As atecnias quanto à disciplina da interpretação contratual não se estancam no artigo 421-C.
O artigo 421-D, inciso I — para além da abundância de verbos (“prever, fixar e dispor”) —, permite que as partes prevejam “parâmetros objetivos” de interpretação. Além de redundante ao artigo 113 §2º, é vago quando não esclarece se os tais “parâmetros” têm força normativa. Estarão os julgadores libertos de qualquer heteronomia quando da interpretação contratual, senão que presos às normas que as partes enunciarem [8]? Ou, ainda, está-se propondo retornar ao início do século 20 e sustentar que os dispositivos legais referentes à interpretação contratual não dispõem de natureza normativa? O candidato a legislador apresenta proposta com linguagem confusa, que compromete a segurança jurídica.
Já o artigo 423, ao ser reformado (e se reformado), elimina os requisitos de “ambiguidade” e “contradição” para que se proceda à interpretação mais favorável ao aderente. Com isso, aproxima-se perigosamente do regime do CDC, como se todo contrato por adesão fosse, necessariamente, um contrato de consumo [9].
Para além disso, a proposta ignora a função da regra de interpretação contra proferentem, que só deve ser aplicada quando houver dúvida no significado da disciplina contratual — como aludem os Códigos francês, alemão, italiano, argentino e tantos outros [10], caudatários da Sétima Regra de Pothier [11]. Ora, nem toda alegação de defeituosidade há de conduzir à interpretação contra proferentem, seja porque o exame casuístico pode revelar a clareza que se alega inexistir, seja porque há dúvidas interpretativas (derivadas, por exemplo, de algum grau de vagueza conatural das cláusulas) que devem, em alguns casos, ser suportadas também pelo aderente [12].
Ignorar esse filtro é abrir a porta para ativismo judicial e insegurança nos negócios. Todo contrato por adesão poderá ser interpretado contra o redator, haja ou não dúvida interpretativa.
O artigo 421-E, por sua vez, tenta disciplinar a interpretação de contratos coligados ou conexos. A intenção é louvável, uma vez que carece constar do Código norma de “interpretação sistemática” expansiva também para contratos conexos; mas a execução é falha. O dispositivo é confuso, excessivo e desalinhado com a experiência estrangeira. Em vez de consolidar regra geral, embaralha classificações doutrinárias que ainda estão em amadurecimento e sobre as quais não há consenso [13]: seus incisos querem abraçar o mundo, acolhendo as intensas e antagônicas variações do conceito de conexidade.
A solução deveria ser simples, adotando-se o que já consta do Enunciado nº 621 da VIII Jornada de Direito Civil, e que orienta, de maneira concisa e em conformidade à tradição jurídica brasileira, a interpretação dos contratos conexos em vista da “finalidade da coligação contratual” que é unitária[14]. Esse, a propósito, é o dado de consenso na doutrina brasileira [15]. Como está, o artigo 421-E seria espécime única [16].
O que se vê desses dispositivos propostos pelo PL é a pressa substituindo a prudência. O resultado? Uma disciplina da interpretação contratual mais frágil, menos previsível e mais distante da tradição jurídica brasileira.
Conclusão
Se há algo que a experiência jurídica ensina é que reformas de Códigos Civis exigem tempo, debate e consenso. A França levou mais de uma década para alterar 300 artigos do seu Code Civil, e a Alemanha tomou quase o mesmo tempo para promover cirúrgica reforma em seu direito obrigacional [17]. O Brasil, em contraste, quer transformar mais de mil dispositivos em dois anos. Com isso, arrisca comprometer a estabilidade do sistema privado e, mais grave que isso, a estabilidade das relações contratuais e do mercado como um todo.
O tempo da lei civil não é o tempo da urgência. Códigos duram séculos; reformas improvisadas, não. A disciplina da interpretação contratual — que deveria consolidar princípios claros, promover segurança e reforçar a função estabilizadora do Código — está sendo sacrificada por propostas fragmentárias, apressadas e tecnicamente frágeis.
Se a intenção é aperfeiçoar o Código Civil ou redigir um novo Código (como o PL demonstra querer), é preciso mais do que boas intenções legislativas. É necessário tempo, debate e fidelidade à coerência sistemática. A interpretação contratual, mais do que qualquer outro ramo, exige método, clareza e objetividade. E o PL nº 4/2025, nesse ponto, falha gravemente.
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[1] Uma das oito principais diretrizes do Código Civil de 2002 era a “unificação […] do Direito das Obrigações”, “de resto, já uma realidade operacional no País, em virtude do obsoletismo do Código Comercial de 1850”, com “disciplina conjunta das obrigações civis e mercantis” (REALE, Miguel. História do Novo Código Civil. São Paulo: RT, 2005, pp. 36 e 42).
[2] ASCARELLI, Tullio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947, p. 40 e 46.
[3] E.g. CARVALHO DE MENDONÇA, J. X. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963, v. 1, p. 22-24; FERREIRA, Waldemar. Instituições de Direito Comercial. 5. ed. São Paulo: Max Limonad, 1956, v. 1, t. 1, p. 95-132 e 182; PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de Direito Privado. 4. ed. São Paulo: RT, 1983, t. 1, p. XXII.
[4] E.g. Códigos Comerciais da Colômbia (1971; art. 822), do Chile (1865; art. 96), do México (1889; art. 2º) e do Peru (1902; art. 50).
[5] MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Comentário ao artigo 421-A do Código Civil: presunção de paridade e simetria em contratos civis e empresariais. In: MARTINS-COSTA, Judith; NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro (Coords.). Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica. Comentários. São Paulo: Almedina, 2022, p. 511-528; e SILVA FILHO, Osny. Paridade e simetria no Anteprojeto de Reforma do Código Civil. Revista Jurídica Profissional. Volume Especial. O Anteprojeto de Reforma do Código Civil em debate. São Paulo: FGV, 2024, p. 193-205.
[6] MARINO, op. cit., 2022, p. 511-528.
[7] RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação. O discurso e o excesso de significação (trad. Artur Morão). Lisboa: Edições 70, 2019, p. 106-108.
[8] Já tive oportunidade de tratar desse tema em NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro. Comentários ao art. 113 §§1º e 2º do Código Civil: interpretação contratual a partir da Lei da Liberdade Econômica. In: MARTINS-COSTA, Judith; NITSCHKE, Guilherme Carneiro Monteiro (Coords.). Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica. Comentários. São Paulo: Almedina, 2022, pp. 416-428.
[9] ZANETTI, Cristiano de Sousa. Direito Contratual Contemporâneo. A liberdade contratual e a sua fragmentação. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 227; III Jornada de Direito Civil (2004), Enunciado 171: “O contrato de adesão, mencionado nos arts. 423 e 424 do novo Código Civil, não se confunde com o contrato de consumo”.
[10] Códigos Civis francês de antes e de depois da reforma de 2016 (antigo art. 1.162, novo art. 1.190), chileno (art. 1566), alemão (§ 305c), italiano (art. 1370), uruguaio (art. 1304), argentino (art. 987) e chinês (art. 498).
[11] “Em dúvida deve interpretar-se uma cláusula de qualquer contrato, contra o estipulante, em descargo daquele que se obrigou”.
[12] ZANETTI, Andréa Cristina; TARTUCE, Fernanda. A interpretação das cláusulas do contrato de adesão pelos princípios da boa-fé e equilíbrio nas relações de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: RT, 2016, v. 106, p. 384.
[13] “Contratos conexos”, “grupos de contratos”, “redes contratuais”, “galáxias contratuais” ou, ainda, “contratos coligados”.
[14] Expressão empregada pelo Min. Moreira Alves (STF, Recurso Extraordinário n. 84.727/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 27.04.1976).
[15] E.g. KONDER, Carlos Nelson. Contratos Conexos. Grupos de contratos, redes contratuais e contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 192-218; MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. Contratos Coligados no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 145-162.
[16] Bastando compará-lo não somente ao art. 1189 do Código Civil francês, mas também aos arts. 1074 do Código Civil e Comercial argentino, 1564 do Código Civil chileno, 1622 do Código Civil colombiano e 1580 do Código Civil equatoriano.
[17] Veja-se CHANTEPIE, Gaël; LATINA, Mathias. La réforme du droit des obligations. Commentaire théorique et pratique dans l’ordre du Code civil. Paris: Dalloz, 2016, pp. 6-17; no direito alemão, veja-se SCHLECHTRIEM, Peter. The German Act to Modernize the Law of Obligations in the Context of Common Principles and Structures of the Law of Obligations in Europe. Oxford U. Comparative L. Forum 2, 2002. In: aqui, passim.
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