A hiperconexão social, em consonância com as reflexões de Zygmunt Bauman em A Modernidade Líquida (2021), pode ser compreendida como uma característica marcante das sociedades contemporâneas, nas quais os indivíduos se mantêm em constante comunicação por meio de redes sociais, aplicativos de mensagens e dispositivos digitais. Esse fenômeno reflete como as tecnologias digitais moldam os vínculos sociais.

A ideia de hiperconectividade está diretamente ligada aos processos de transformação digital que têm redefinido as estruturas sociais, culturais, econômicas e as instituições. Nesse cenário, a tecnologia deixa de ser uma simples ferramenta e passa a moldar comportamentos, identidades e até mesmo a percepção do tempo e do espaço.
No Brasil, falar de transformações é algo recorrente no contexto tecnológico atual. O célere desenvolvimento da tecnologia e todas as aplicações que ela propõe à vida do ser humano faz surgir uma nova forma, identidade e proposta de relação jurídica material a ser apresentada, conhecida e julgado pelos sistemas que compõem a nossa sociedade. E toda essa manifestação tecnológica tem seu derradeiro ou sua explicação na cibercultura que transforma a nossa sociedade na conhecida sociedade da informação com reflexos diretos em nossas relações, cultura, regras e sistemas (Saldanha, 2020).
Administração pública, app ‘Meu INSS’ e slogan da facilidade ao acesso ao benefício
Nesse mesmo contexto, a administração pública também é impactada. A lógica da hiperconectividade exige que os serviços públicos se adaptem à nova realidade digital, adotando meios mais ágeis, acessíveis e interativos para a prestação de serviços e a garantia de direitos, através de plataformas digitais, aplicativos governamentais, inteligência artificial e atendimento remoto passam a compor o cotidiano da gestão pública, influenciando diretamente a forma como o cidadão acessa seus direitos fundamentais. Assim, a hiperconexão não apenas transforma as relações sociais e culturais, mas redefine também as dinâmicas entre Estado e sociedade, influenciando as instituições públicas.
Se compreende que, à medida que os governos se digitalizam em busca de oferecer serviços com maior eficácia e agilidade, a sociedade também se apropria dessas tecnologias para exercer seus direitos e ampliar seu acesso a políticas públicas. Um exemplo desse avanço da digitalização no âmbito do direito previdenciário é como a implementação do sistema/app “Meu INSS” passou a centralizar os requerimentos de procedimentos administrativos relacionados aos serviços da seguridade social.
De acordo com informações contidas no site do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), o app Meu INSS é uma ferramenta criada para dar maior facilidade à vida do cidadão. Podendo o sistema ser acessado pela internet do seu computador ou pelo seu próprio telefone celular (Android e IOS), permitindo o acesso a mais de 90 serviços oferecidos pelo INSS, sem sair de casa, como obtenção de documentos e pedidos de benefícios previdenciários.
O sistema/app Meu INSS foi criado com o slogan de facilitar o acesso aos benefícios e serviços oferecidos pelo INSS, prometendo clareza e transparência, o que, no entanto, pode ser facilmente questionado.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2022 a 2023, cerca de 59 milhões de brasileiros vivem com renda domiciliar per capita abaixo da linha de pobreza. Mesmo considerando a hipótese de que todos tenham acesso à internet e a dispositivos tecnológicos que permitam o uso de serviços de governo eletrônico, estima-se que aproximadamente 30 milhões dessas pessoas ainda deixariam de utilizar plataformas digitais, como o sistema/app Meu INSS, por acharem difícil ou complicado o uso da internet para se comunicar com o governo, conforme indicado no gráfico abaixo.

Fonte: CGI.br/NIC.br, Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros – TIC Domicílios 2023.
Dessa forma, surgem uma reflexão importante: A educação digital pode ser considerada uma ferramenta efetiva para o exercício da cidadania digital no âmbito da seguridade social?
Ainda que exista acesso a meios digitais, impõe-se a reflexão sobre a real eficiência desse acesso ou se, ao contrário, ele se configura como um obstáculo à efetivação de direitos, como o da seguridade social. Além das dificuldades relacionadas à disponibilidade das ferramentas necessárias — muitas vezes escassas por diversos fatores socioeconômicos —, o próprio aplicativo apresenta falhas, especialmente no reconhecimento facial e em outras funções essenciais para garantir o acesso dos beneficiários aos seus direitos. (Cruz, 2006).
Letramento digital como ferramenta para exercício da cidadania digital no âmbito da seguridade social
Nesse cenário, o debate se concentra na inclusão digital e na cidadania digital, questionando se ela está sendo devidamente garantida. Marina Vasques Duarte, por sua vez, reforça que a cidadania digital deve ser entendida como uma extensão da cidadania constitucional, destacando que é dever do Estado garantir não apenas o acesso à internet, mas também a inclusão digital de qualidade, com formação adequada e responsabilidade, assegurando que todos os cidadãos possam efetivamente exercer seus direitos na era digital. (Duarte, 2004).

O princípio da seguridade social, previsto na Constituição, é uma das garantias fundamentais do Estado democrático de direito e está intrinsecamente ligado à cidadania, pois assegura a todos os cidadãos o acesso a direitos essenciais para a preservação da dignidade humana. Cidadania é o exercício pleno do indivíduo na vida política, social e econômica da sociedade.
A seguridade social, portanto, não só oferece proteção contra riscos sociais, mas também contribui para a promoção da inclusão. A seguridade social deve garantir que todos possuam condições mínimas de saúde, previdência e assistência social, visando proteger o cidadão em situações de vulnerabilidade. Dessa forma, ela se configura como um dos instrumentos centrais para efetivação dos direitos sociais e a integração do indivíduo à sociedade, assegurando a ele um status de dignidade e participação ativa em todos os aspectos da vida pública.
Educação digital
O caminho para a efetivação da cidadania digital e do direito à seguridade social passa, necessariamente, pela educação digital. Esta se configura como uma dimensão fundamental do exercício da cidadania, ao capacitar os indivíduos a compreender, analisar e utilizar, de forma crítica, reflexiva e responsável, as ferramentas tecnológicas que permeiam o cotidiano. Por meio da educação digital, torna-se possível ampliar o acesso à informação, fortalecer a participação social e garantir que os direitos constitucionais, como os vinculados à seguridade social, sejam plenamente acessados no contexto da sociedade conectada.
Diante da realidade do contexto de hiperconexão que nos encontramos, promover a educação digital é essencial. Apesar das facilidades oferecidas pelo sistema Meu INSS, muitas pessoas ainda enfrentam dificuldades no acesso digital. Ressalta-se que os dados do IBGE de 2022-2023 revelam que 30 milhões de brasileiros em situação de vulnerabilidade social têm dificuldades para utilizar a internet e acessar serviços governamentais.
A seguridade social, garantida pela Constituição, é fundamental para a promoção da cidadania, oferecendo proteção contra riscos sociais e garantindo direitos básicos como saúde, previdência e assistência social. Assim, a educação digital se torna uma ferramenta crucial para garantir que todos, especialmente os que se encontram em risco socioeconômico, possam acessar seus direitos de forma eficaz, promovendo a cidadania digital e a inclusão social no âmbito da seguridade social.
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Referências
BRASIL. Instituto Nacional do Seguro Social. Meu INSS. Disponível em: https://www.gov.br/inss/pt-br/canais_atendimento/meu-inss/meu-inss. Acesso em: 27 abr. 2025.
BRASIL. Secretaria de Comunicação Social. IBGE: em 2023, 8,7 milhões de pessoas deixaram pobreza e extrema pobreza. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2024/12/ibge-em-2023-8-7-milhoes-de-pessoas-deixaram-pobreza-e-extrema-pobreza. Acesso em: 27 abr. 2025.
CGI.BR; NIC.BR. Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: TIC Domicílios 2023. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2024.
CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos históricos, políticos e jurídicos da Seguridade Social. In: ROCHA, Daniel Machado; SAVARIS, José Antônio (Coord.). Curso de Especialização em Direito Previdenciário: Direito Previdenciário Constitucional. Curitiba: Juruá, 2006. v. 1.
DUARTE, Marina Vasques. Direito Previdenciário. 3. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2004.
SALDANHA, Paloma Mendes. Processo Judicial e Pós-humanidade: transformação do Judiciário e a preservação da jurisdição humana pelo 2º grau de jurisdição. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2020. Disponível em: http://tede2.unicap.br:8080/bitstream/tede/1389/5/Ok_paloma_mendes_saldanha.pdf. Acesso em: 27 de abr 2025.