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A liberdade em metamorfose: da utopia ao discurso de controle

9 de maio de 2025, 20h41

Por Marcos André Chut

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A palavra liberdade é, talvez, uma das mais evocadas e ao mesmo tempo mais esvaziadas da modernidade. Ao longo dos séculos, esse conceito sofreu transformações profundas — não necessariamente em direção à ampliação de sua essência, mas muitas vezes em seu esvaziamento e instrumentalização. A liberdade que se gritava nas praças revolucionárias do século 18 não é a mesma que se vende em slogans publicitários no século 21. De ideal a mercadoria, de resistência a controle, a liberdade virou um conceito maleável, moldado por interesses e narrativas dominantes.

Na Antiguidade clássica, liberdade era sinônimo de participação política. Um cidadão livre era aquele que podia atuar na polis, que não era submisso a outro e tinha voz ativa no destino coletivo. Escravos e mulheres estavam excluídos desse ideal, revelando desde cedo o caráter excludente da liberdade quando fundada em bases hierárquicas. Com o advento da modernidade e do liberalismo, houve uma reconfiguração: liberdade passou a significar a ausência de interferência externa — o famoso “fazer o que quiser sem ser impedido”. A figura do indivíduo, antes parte de um coletivo, torna-se o centro. Mas essa liberdade liberal carregava um vício: só era plena para quem já dispunha de capital, propriedade e instrução. A liberdade de mercado, por exemplo, sempre foi menos liberdade e mais licença para manter privilégios.

As grandes guerras e o crescimento do aparato estatal trouxeram um novo paradoxo: a liberdade agora dependia do controle. Em nome da segurança, do bem-estar e da ordem, criou-se o Estado policial, o vigilante democrático que dizia proteger direitos ao mesmo tempo que vigiava corpos e mentes.

Orwell e Huxley não eram apenas ficcionistas, mas profetas de um tempo em que a liberdade se confundiria com obediência voluntária.

As democracias liberais venderam a ideia de liberdade política, mas frequentemente ignoraram as dimensões econômicas e sociais. Liberdade de expressão não é o bastante quando vozes dissidentes são silenciadas por falta de acesso mídia ou quando o desemprego impede qualquer autodeterminação. O ‘cidadão livre’ tornou-se uma ilusão sustentada por créditos, algoritmos e distrações.

Spacca

Simulação

No século 21, a liberdade assume um novo rosto: o da hiperconectividade. Em um mundo digitalizado, vendem-se ferramentas de “autonomia” que, na prática, são mecanismos de controle de comportamento. Redes sociais que prometem expressão livre moldam opiniões com algoritmos. Plataformas que pregam mobilidade e escolha mapeiam nossos dados e desejos. A liberdade vira autoexploração disfarçada de empoderamento.

O sujeito contemporâneo é livre para consumir, produzir conteúdo, ‘se expressar’ — desde que siga os moldes das plataformas, das marcas e das narrativas que mantêm o status quo. A liberdade virou uma simulação — uma performance algorítmica em que a autonomia termina onde começa o clique.

Criticar o conceito de liberdade não significa negá-lo, mas resgatar seu potencial transformador. A verdadeira liberdade não pode ser apenas a ausência de opressão, mas a presença ativa de condições para a autodeterminação real: educação crítica, acesso igualitário, participação política genuína.

Precisamos, urgentemente, de uma liberdade que não seja só retórica, nem moeda de troca entre elites e massas. Uma liberdade que vá além do indivíduo isolado e se enraíze no coletivo, no comum, no direito de imaginar outras formas de viver. Sem isso, continuaremos livres — apenas para escolher nossas correntes.