Opinião

Vitimologia em complicações em procedimentos estéticos feitos por não médicos

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8 de maio de 2025, 6h32

Os recentes casos de complicações em procedimentos estéticos realizados por não médicos têm sido responsáveis por trazer constantes atualizações e reforços normativos no que tange aos atos privativos dos médicos e ao enfrentamento dos desfechos desfavoráveis, no entanto, é preciso também trazer à luz as novas maneiras de participação das vítimas no referido processo adverso.

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Mulher fazendo procedimento estético no rosto

A Lei nº 12.842/2013, de 10 de julho de 2013, dispõe sobre o exercício da medicina e apresenta, no seu artigo 4º, as atividades privativas do médico, trazendo, no seu inciso III, a indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos (1). Trata-se de lei que valoriza e regulamenta o papel do médico, tendo atribuição importante na coibição de práticas de exercício ilegal da Medicina, tão recorrentes na contemporaneidade, especialmente no que se refere aos procedimentos estéticos. Merece destaque, ainda, o Parecer nº 35/2016 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que classifica como invasivos os procedimentos que rompem com a barreira natural da pele (2):

“(…) procedimentos invasivos são aqueles que provocam o rompimento das barreiras naturais ou penetram em cavidades do organismo, abrindo uma porta ou acesso para o meio interno. Há que se ressaltar também que inexiste diferença entre procedimentos invasivos e minimamente invasivos. Nos termos da lei, o fato de ser minimamente invasivo não torna o ato legal ou menos invasivo. Assim, o ato invasivo é um ato privativo do médico, sendo vedada a sua prática por outra profissão.”

A pele é um órgão que reveste e delimita o organismo, trazendo proteção e equilíbrio com o meio exterior, no sentido da manutenção vital do meio interior, podendo-se citar a homeostasia como a mais importante e vital função do órgão, isto é, a termorregulação, o controle hemodinâmico e a produção e excreção de metabólitos, além de funções outras diversas, sendo constituída, basicamente, por três camadas interdependentes: a epiderme, mais externa; a derme, intermediária; e a hipoderme, mais profunda (3).

Um dos mais recentemente abordados procedimentos estéticos trata-se do peeling de fenol. O peeling químico é definido pela aplicação na pele de uma ou mais substâncias químicas esfoliantes, com a finalidade de remover de maneira controlada a epiderme e/ou derme alteradas, podendo ser classificados, quanto à profundidade, em muito superficiais (removendo a camada córnea), superficiais, médios e profundos (esfoliando a epiderme até derme reticular). A literatura ressalta a importância da orientação do paciente em relação aos benefícios e limitações do tratamento, evitando-se que expectativas irreais sejam criadas e possíveis complicações (3).

A utilização do fenol no peeling implica que se trata de um procedimento do tipo profundo que, em função de sua toxicidade cardíaca, renal e hepática, quando indicado pelo profissional médico, deve ser realizado mediante monitoramento do paciente. Além disso, a literatura afirma que quanto maior a profundidade do peeling, maiores são as chances de complicações, o que justifica a necessidade de que o médico tenha conhecimento da anatomia e da fisiologia da pele que, como mencionado previamente, trata-se de um órgão, e que esteja familiarizado com os agentes escolhidos para a realização da intervenção (3).

Diante da recorrência de desfechos desfavoráveis relacionados ao cenário supracitado tomando conhecimento do público nos últimos anos, atualizações normativas vêm sendo realizadas de forma robusta, a exemplo da Resolução CFM nº 2.416/2024, de 19 de setembro de 2024, que dispõe sobre os atos próprios dos médicos, sua autonomia, limites, responsabilidades e juridicidade, e traz, no seu Capítulo VI, artigo 6º, parágrafo 3º, a vedação ao médico em relação à emissão de Declaração de Óbito nas situações suspeitas do exercício ilegal da Medicina, tornando obrigatória a comunicação à Autoridade Policial para que seja realizada a competente necropsia (4). A novidade normativa traz um importante avanço no que diz respeito à apuração dos delitos e, ainda, a oportunidade de que o órgão oficial realize a materialização da prova para desfechos cabíveis.

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Ainda em 2024, representantes de regionais da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) e da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) emitiram o documento “Dossiê de complicações de procedimentos realizados por não médicos e o risco à população”, trazendo um panorama sobre o exercício ilegal da Medicina que cresce de forma alarmante no país e apresentando imagens de 87 pacientes que tiveram complicações com procedimentos realizados de forma indiscriminada por não médicos e por profissionais da área da beleza, lembrando inclusive o caso de Henrique Chagas, de 27 anos, que foi a óbito após aplicação de peeling de fenol em clínica estética na zona sul de São Paulo.

Ressaltam que o dossiê se mostra como um esforço com o objetivo de contribuir como mais uma fonte de informação para ser utilizada contra a invasão do ato médico, além de trazer explicações sobre os procedimentos que têm sido praticados por não médicos e as complicações possíveis, como uma forma de evidenciar os riscos aos quais os pacientes estão sendo submetidos (5).

Tamanha é a importância do assunto que, em 17 de dezembro de 2024, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) lançou o “Manual de atendimento a complicações decorrentes de procedimentos feitos por não médicos”, que contém orientações aos médicos sobre o atendimento ético e a documentação necessária para salvaguardar o profissional e o paciente (6).

Nele, o Conselho discorre a respeito de desfechos desfavoráveis diferentes do óbito, ressaltando o fato de que, uma vez que apenas o médico é capacitado para identificar e tratar eventuais complicações, tal profissional é colocado em um cenário delicado quando atende pacientes que, de forma recorrente, não sabem com clareza as minúcias referentes ao procedimento realizado que levou às intercorrências.

Diante do exposto, observa-se que, nos últimos anos, tem sido recorrente o acontecimento, a divulgação e, inclusive, a tomada de medidas por parte dos conselhos diante das situações discorridas, o que nos leva a questionar por que os pacientes ainda recorrem a profissionais não médicos para a realização de procedimentos estéticos que são passíveis de complicações e que, na ocorrência delas, serão abordadas por profissional médico, e não pelo profissional que realizou o procedimento. É preciso trazer à luz as novas maneiras de participação das vítimas no referido processo adverso.

A vitimologia, uma das áreas de estudo da criminologia, surge com a compreensão de que o crime se trata da interação entre pessoas, constatando a existência de certas vítimas que contribuem para a perpetração do delito, o que traz como consequência a necessidade de incidir sobre esses referidos grupos de vítimas com a finalidade de eliminar sua “predisposição vitimal”, o que significa adotar medidas de Política Criminal destinadas à prevenção do delito direcionadas às vítimas (7).

Importante destacar o papel do Mito da Beleza na construção da predisposição vitimal, uma vez que a maior parte das vítimas são mulheres, mito esse segundo o qual a qualidade “beleza” existe de forma objetiva e universal, devendo as mulheres querer encarná-la, e devendo os homens querer possuir as mulheres que a encarnam, sendo essa uma obrigação para as mulheres, e não para os homens. A ocupação com a beleza, trabalho inesgotável porém efêmero, assumiu o lugar das tarefas domésticas, também inesgotáveis e efêmeras, como mecanismo de controle social (8), sendo essa dinâmica potencializada pelas mídias sociais e pelo avanço da inteligência artificial e sua criação de expectativas irreais, com graves repercussões em saúde mental.

No mesmo sentido, Giovanna, protagonista do livro A Vida Mentirosa dos Adultos, de Ferrante (9), discorre sobre as marcas profundas que a negação de sua suposta beleza pelo pai na sua adolescência a trouxe, evidenciando o papel desse atributo desde a mais tenra idade feminina, cuja falta muitas vezes é associada, inclusive, com maldade:

“Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia. A frase foi pronunciada à meia-voz, no apartamento que meus pais, recém-casados, compraram no Rione Alto, no topo da Via San Giacomo dei Capri. Tudo – os espaços de Nápoles, a luz azul de um fevereiro gélido, aquelas palavras – ficou parado. Eu, por outro lado, escapei para longe e continuo a escapar também agora, dentro destas linhas que querem me dar uma história, enquanto, na verdade, não sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato começado ou se concretizado: só um emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção.”

E ainda:

“Naquela tarde, em especial, minha mãe tinha ido falar com os professores e voltara muito desgostosa. Não chamou minha atenção, meus pais nunca chamavam minha atenção. Limitou-se a dizer: a mais insatisfeita é a professora de matemática, mas disse que, se você quiser, pode conseguir. Depois foi para a cozinha preparar o jantar e, nesse ínterim, meu pai chegou. Do meu quarto, ouvi apenas que ela estava fazendo um resumo das queixas dos professores. Entendi que, para me justificar, aludia às mudanças da primeira adolescência. Mas ele a interrompeu e, com uma das tonalidades que nunca usava comigo – até fez uma concessão ao dialeto, absolutamente proibido na nossa casa -, deixou escapar aquilo que ele certamente não queria ouvir sair de sua boca:

– Não tem a ver com a adolescência: está ficando a cara de Vittoria.

(…) Foi assim que, aos doze anos, soube pela voz do meu pai, sufocada pelo esforço de mantê-la baixa, que eu estava ficando igual à sua irmã, uma mulher na qual – eu o ouvira dizer desde sempre – feiura e maldade coincidiam perfeitamente. (…) Seria possível que estava ficando a cara dela? Eu? Eu que até aquele momento me achava bonita e acreditava, graças a meu pai, que seria bonita para sempre? (…) De manhã, estava convencida de que, se eu quisesse me salvar, devia ir ver como era realmente o rosto de tia Vittoria” (9).

Ainda sob uma ótica criminológica, a chamada Vitimodogmática é uma teoria que analisa o comportamento da vítima para verificar suposta corresponsabilidade no delito e, consequentemente, influenciar na valoração jurídico-penal do comportamento do autor (7). O dilema vitimodogmático surge quando se contrapõe, de um lado, a ampla responsabilização do autor quando há também responsabilidade da vítima, o que tornaria a sanção ilegítima; e, de outro, a redução da intervenção estatal podendo gerar sensação de insegurança e diminuição da confiança no ordenamento jurídico. Tal situação mostra que a extensão da aplicação da Vitimodogmática deve ser delimitada (10; 11).

A Vitimodogmática traz que uma conduta não poderia sofrer sanção quando se trata de uma situação em que existem possibilidades de autoproteção da vítima, porque recairia no âmbito de responsabilidade da vítima, e não no do autor, trazendo como um dos exemplos para a discussão a participação da vítima em certas situações típicas, como em lesões corporais decorrentes de autocolocação em perigo (12; 13). Ainda que a Vitimodogmática e o princípio da autorresponsabilidade tenham importância, por evitarem assimetria desproporcionais de deveres, deve se atentar ao seu uso abusivo podendo causar desproteção legal, bem como sobrecarregar as vítimas de deveres de autoproteção (13).

Embora as violações do ato médico e, consequentemente, a banalização do exercício ilegal de Medicina sejam aspectos relevantes e, por isso, extensamente discutidos aqui, a exemplo das já mencionadas constantes atualizações e reforços normativos no que tange aos atos privativos dos médicos e ao enfrentamento dos desfechos desfavoráveis, é preciso também evidenciar a participação das vítimas nesse processo, sob uma visão criminológica, a fim de trazer holofotes para questões correlatas ao problema e, muitas vezes, negligenciadas, como a autocolocação em risco em virtude de graves danos em saúde mental ocasionados pelas mídias sociais e pelo Mito da Beleza.

 


Referências bibliográficas

1. BRASIL. Lei nº 12.842, de 10 de julho de 2013. Dispõe sobre o exercício da Medicina. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 11 jul. 2013.

2. Conselho Federal de Medicina. Parecer CFM 35/2016, do Cons. José Fernando Maia Vinagre, de 19 de agosto de 2016. Os procedimentos invasivos das áreas dermatológica/cosmiátrica só devem ter sua indicação e execução feitas por médicos, de acordo com a Lei 12842/2013. Brasília, DF, p. 1-88, 19 ago. 2016.

3. AZULAY, Rubem David; AZULAY, David Rubem; AZULAY-ABULAFIA, Luna. Dermatologia. 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2013.

4. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 2.416, de 19 de setembro de 2024. Dispõe sobre os atos próprios dos médicos, sua autonomia, limites, responsabilidade e juridicidade. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, p. 284, 30 set. 2024.

5. Sociedade Brasileira de Dermatologia – Regionais Distrito Federal, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul; Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica – Regionais Distrito Federal, Minas Gerais, Paraná. Dossiê de complicações de procedimentos realizados por não médicos e o risco à população. CFM Virtual, p. 1-79, 6 jun. 2024.

6. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Manual de atendimento a complicações decorrentes de procedimentos realizados por profissionais não médicos. São Paulo, p. 1-25, 2024.

7. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La consideración del comportamiento de la víctima en la teoría jurídica del delito. Observaciones doctrinales y jurisprudenciales sobre la “victimo-dogmática”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 9, n. 34, 2001.

8. WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.

9. FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

10. MACRI JÚNIOR, José Roberto; MACRI, Bianka Jaquetti. Vítima e delito: vitimodogmática e sua relação com delitos sexuais. In: Anais do Congresso Brasileiro de Processo Coletivo e Cidadania, n. 6, p. 162-178, 2018.

11. MACRI JÚNIOR, José Roberto. O engano típico no estelionato. Belo Horizonte: D’Plácido, 2023.

12. WITTIG, Petra. Teoría del bien jurídico, harm principle y delimitación de ámbitos de responsabilidad. In: R. Hefendehl (Ed.), La teoría del bien jurídico. ¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Madrid: Marcial Pons, 2007.

13. SALGADO, Amanda Bessoni Boudox; MACRI JÚNIOR, José Roberto. Raça e Violência Sexual: Âmbito de Aplicação da Vitimodogmática? In: Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 12, 2017.

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