Opinião

Herzog e o silêncio dos trabalhadores: uma lição de 1964 contra o desmonte do Direito do Trabalho

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  • é procurador do Trabalho coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília.

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8 de maio de 2025, 17h18

“Não se pode confiar na legalidade burguesa. Perdemos em 64 porque os trabalhadores não reagiram.” Essa passagem foi atribuída ao jornalista Vladimir Herzog por Zuenir Ventura, em sua obra 1968: O Ano que Não Terminou”. Revela bem o espírito da geração de 1968, que aprendeu uma preciosa, mas árdua lição, com os eventos de 64: é preciso reagir e resistir [1].

A lição extraída pela geração revolucionária pós-golpe ecoa com assustadora atualidade no Brasil de 2025. A frase, que sintetiza uma autocrítica daquele momento histórico, ilumina o presente com clareza. Hoje um processo silencioso, sistemático e institucionalizado ameaça eliminar os direitos dos trabalhadores através de uma perversa artimanha, esvaziar a própria figura do trabalhador.

A recente decisão do ministro Gilmar Mendes no ARE 1.532.603/PR, que suspendeu nacionalmente todos os processos relacionados ao Tema 1.389 da repercussão geral, representa um ponto culminante desse processo. Com um único ato processual, milhares de trabalhadores tiveram suspenso o acesso à Justiça e a possibilidade de ver reconhecida judicialmente eventual fraude ocorrida na contratação [2].

O que o ministro chama em sua decisão de “reiterada recusa da Justiça trabalhista em aplicar a orientação desta Suprema Corte” poderia ser mais adequadamente descrito como fidelidade da Justiça do Trabalho à Constituição e aos princípios fundantes do Direito do Trabalho, entre eles, o princípio da primazia da realidade, que é justamente o que permite identificar fraudes. Ao tentar estabelecer presunções abstratas de licitude para determinados modelos contratuais, o STF desfigura a própria natureza do Direito do Trabalho.

Uma das repercussões mais graves da decisão do STF foi a suspensão da Ação Civil Pública nº 0000722-38.2024.5.08.0101, que buscava responsabilizar empresa por trabalho em condições análogas à de escravo. Esse é um dos efeitos dessa visão que prioriza a “liberdade de organização produtiva” sobre a dignidade humana dos trabalhadores [3].

É preciso compreender a gravidade histórica desse momento. O Supremo Tribunal Federal, ao avançar sobre competências típicas da Justiça do Trabalho, não está apenas decidindo casos concretos – está redefinindo os contornos da relação capital-trabalho no Brasil. A suspensão nacional de processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços não é mera questão processual. Trata-se de uma intervenção com profundas implicações na estrutura social brasileira.

Aprender com a história

O fenômeno a que assistimos hoje guarda inquietantes paralelos com 1964. Naquele momento, a reação insuficiente dos trabalhadores foi identificada como fator decisivo para a derrota das forças progressistas. Hoje, o STF absorve o espaço de definição dos direitos sociais, sem que haja mobilização proporcional à gravidade do que está em jogo.

Spacca

A lição de 1964 – quando a ausência de reação dos trabalhadores foi determinante para a derrota das forças democráticas – permanece atual, pois somente uma forte mobilização social pode impedir o desmonte silencioso do direito do trabalho.

É imperativo, portanto, que os trabalhadores e as instituições comprometidas com a defesa dos direitos sociais resistam de forma contundente, por meio de uma pressão social organizada e voltada à defesa intransigente da Constituição em seu núcleo de proteção à dignidade humana. Não se trata apenas de contestar uma decisão judicial isolada, mas de defender a própria estrutura constitucional de proteção ao trabalho.

Se, como constatou a geração que viveu os eventos de 1964, “Perdemos porque os trabalhadores não reagiram”, cabe à geração atual aprender com essa história e não repetir o erro da inação. A resistência dos trabalhadores, das instituições e da sociedade civil precisa ser imediata e proporcional à gravidade da ameaça. Caso contrário, corremos o risco de, daqui a algumas décadas, termos que fazer uma autocrítica semelhante: “perdemos os direitos trabalhistas porque não reagimos a tempo’’.

O futuro do Direito do Trabalho no Brasil depende agora não apenas dos tribunais, mas da capacidade de resistência e mobilização da sociedade.

Talvez, em nos anos vindouros, a história registre outra lição para os eventos de 2025: “Vencemos porque os trabalhadores reagiram”. Mas isso vai depender da reação social ao desmonte do direito do trabalho.

 


[1] VENTURA, Zuenir. 1968: O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 64.

[2] ARE 1.532.603/PR. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15375825805&ext=.pdf . Acesso em: 16/04/2025.

[3] https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2025/04/16/decisao-do-stf-sobre-pj-prolonga-espera-por-indenizacao-a-escravizados.htm . acesso em: 02/05/2025.

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