Opinião

A narrativa do identitarismo em prol de manter um direito hegemônico

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  • é advogado doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná mestre em Direito pela Universidade Federal de Sergipe graduado em Direito pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB) pesquisador do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Faculdade de Direito da USP (NETI-USP) e membro do Grupo de Pesquisa Desigualdade(s) e Direitos Fundamentais.

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8 de maio de 2025, 18h36

A construção narrativa de inimigos públicos é uma das estratégias produzidas pela atuação da extrema-direita nos últimos anos, de forma global. Um dos mais notáveis é a questão do gênero e sua cantilena de “ideologia de gênero”, em nome de uma suposta defesa da família e da mulher.

O resultado da profusão dessa narrativa pode ser visto, nos últimos meses, com o ataque as conquistas da população trans nos Estados Unidos por Donald Trump, através de ordens executivas [1] que demonstra o mecanismo populista do infralegalismo autoritário [2] — que o professor Oscar Vilhena Vieira caracteriza a estratégia de utilizar de normas de caráter infraconstitucional, como decretos, para provocar uma erosão democrática e das próprias instituições.

No Brasil, o ex-presidente Jair Bolsonaro utilizou da mesma técnica para vários campos como, por exemplo, na questão ambiental — merecendo ser lembrada a frase do ex-ministro do Meio Ambiente, na fatídica reunião ministerial, que defendeu, aprovar do enfoque na Covid-19, para “passar a boiada”[3] com normas que flexibilizavam a proteção ecológica. Na questão da população trans, também houve medidas de caráter presidencial com notável intuito de desmontar as políticas públicas para a população LGBTQIAPN+.

Instrumento de produção de desigualdades

Para além do Poder Executivo, o ponto fulcral reside em observar que a inserção dessa narrativa do gênero dentro do campo do direito serve apenas para mantê-lo como um instrumento de produção de desigualdades e de espaços de vulnerabilidade [4]. No caso da população trans, resta ainda mais evidente quando falado de um suposto identitarismo por parte do Supremo Tribunal Federal, principalmente em seu papel contramajoritário. Há uma notória fragilidade na proteção jurídica desses sujeitos dissidentes da cisheternormatividade.

Acreditar que haveria uma formação de um super-sujeito de direito, como posto no artigo A adoção do identitarismo trans pelo Supremo Tribunal Federal [5], na verdade, é por uma venda sobre uma realidade fática: a população trans se situam em uma condição não sujeito — até porque o destinatário de normas do direito é o homem cis hetero. O STF não proporcionou direito a mais para a população trans em comparação com a população cis. O que ocorre é o contrário: são evidenciados que esses corpos sequer têm os direitos da outra parcela da população — como um simples direito ao nome social [6] ou de ter acesso a um tratamento de saúde adequado a sua condição corporal [7].

Reprodução
bandeira trans

Caberiam ser citados diversas estatísticas que comprovariam o contexto de precariedade e de destituição da dignidade dos corpos trans, como o que mostra que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans há mais de uma década. Porém, esses próprios dados evidenciam a posição de não sujeito: sequer existem dados governamentais para mapear essa população. Há, sem dúvida, uma intencionalidade nisso, já que implica em dificuldade para cobrança de políticas públicas.

Ataques ideológicos

Assim, provoca uma profunda inquietação em visualizar ataques meramente ideológicos, velados de juridicidade, ao posicionamento do STF por ser a única instância em que tem ocorrido uma certa proteção que pode ser revertida diante de uma maioria conservadora, por exemplo. Enxergando o espaço jurídico como locus de disputa, se aproveitar da narrativa de identitarismo trans, na verdade, é impedir o desenvolvimento de caminhos emancipatórios que estão apenas cumprindo os preceitos constitucionais, ainda vigentes de plena efetivação desde 1988.

A afirmação de que haveria um privilégio distorcido na evolução dos direitos, na verdade, esconde que o verdadeiro privilégio é a possibilidade de sair na rua durante o dia, exercer seu direito à educação ou ao trabalho de forma plena sem que haja alguma violência física, verbal ou qualquer desconforto somente em razão da sua existência denunciar como o gênero é fruto de construção social.

 


[1] WHITE HOUSE. Executive Order 14168. Defending women from gender ideology extremism and restoring biological truth to the Federal Government. Washington, DC: The White House, 2025d. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/defending-women-from-gender-ideology-extremism-and-restoring-biological-truth-to-the-federal-government/. Acesso em: 10 abr. 2025.

[2] VIEIRA, O. V.; GLEZER, R.; BARBOSA, A. L. P. Supremocracia e Infralegalismo Autoritário: o comportamento do Supremo Tribunal Federal durante o governo Bolsonaro. Novos estudos CEBRAP, v. 41, n. 3, p. 591–605, set. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.25091/501013300202200030008. Acesso em: 08 abr. 2025.

[3] GLOBO. Ministro do Meio Ambiente defende passar a boiada e mudar regramento e simplificar normas. G1, 22 maio 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml. Acesso em: 5 maio 2025.

[4] FEITO, L. Vulnerabilidad. In: Anales del sistema sanitario de Navarra. Gobierno de Navarra. Departamento de Salud, 2007. p. 07-22.

[5] SANTOS, Eduardo dos. A adoção do identitarismo trans pelo Supremo Tribunal Federal. Consultor Jurídico, 6 fev. 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-fev-06/a-adocao-do-identitarismo-trans-pelo-supremo-tribunal-federal/. Acesso em: 5 maio 2025.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF reconhece a transgêneros possibilidade de alteração de registro civil sem mudança de sexo. Supremo Tribunal Federal, 6 fev. 2025. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371085. Acesso em: 5 maio 2025.

[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. SUS deve garantir atendimento a pessoas trans também em relação ao sexo biológico, decide STF. Supremo Tribunal Federal, 6 fev. 2025. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371085. Acesso em: 5 maio 2025.

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  • é advogado, doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná, mestre em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, graduado em Direito pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB), pesquisador do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Faculdade de Direito da USP (NETI-USP) e membro do Grupo de Pesquisa Desigualdade(s) e Direitos Fundamentais.

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