Revisional sancionatória e outras ferramentas no tratamento do superendividamento
7 de maio de 2025, 10h18
A atualização do Código de Defesa do Consumidor feita pela Lei 14.181/2021, ao criar um sistema robusto de prevenção e tratamento do superendividamento, enfrentou o tema em sua inteireza, provocando reforma estrutural no CDC, ao inserir a questão do crédito, da dívida, não apenas na parte processual, mas sobretudo na Política Nacional das Relações de Consumo, ampliando seus princípios e diretrizes, bem como nos próprios direitos básicos do consumidor. Partiu da premissa que a prevenção e o tratamento ao superendividamento, impacta em todo o mercado de consumo, sendo, também meio de efetivação da defesa do consumidor como princípio da ordem econômica.
Por seu vanguardismo e profundidade em uma realidade que nem mesmo o contrato de consumo ainda é compreendido e aplicado em sua totalidade (sendo muitas vezes, consciente e inconscientemente, tratado como se contrato civil ou empresarial fosse), as regras para prevenção e tratamento do superendividamento ainda carecem de compreensão de sua amplitude.
Um dos equívocos tem sido a compreensão de que o rito processual bifásico de repactuação de dívidas seguido da ação de superendividamento seria a única ferramenta disponível para enfrentar essa realidade social que afeta milhões de brasileiros, o que não é verdade: do mesmo modo que para prevenção e tratamento da obesidade o único caminho não é a cirurgia bariátrica; para a prevenção e tratamento do superendividamento, o único caminho não é o pedido de repactuação (artigos 104-A ou 104-C) e ação de superendividamento (artigo 104-B): há um leque mais amplo de estratégias jurídicas disponíveis a partir da nova legislação e da jurisprudência consolidada.
O superendividamento
O superendividamento, conforme o § 1º do artigo 54-A do CDC, é definido como “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”.
Para preveni-lo e tratá-lo, foram introduzidos dispositivos que aperfeiçoaram a disciplina do crédito (artigos 54-A a 54-G) e estabeleceram procedimentos ordinários para a repactuação de dívidas (artigos 104-A a 104-C), além de consagrar novos direitos básicos do consumidor, como a garantia de práticas de crédito responsável e a preservação do mínimo existencial (artigo 6º, incisos XI e XII) e, como já mencionado, ampliar os princípios e diretrizes da Política Nacional das Relações de Consumo. O objetivo central dessas alterações, como observavam Claudia Lima Marques, Clarissa Costa de Lima e Karen Bertoncello (2020) quando da discussão da urgência da aprovação do PL 3515/15 (que se tornou a Lei 14.181/2021), é garantir a “subsistência do devedor, reforçando a dimensão social e de combate à exclusão do CDC”.
Tal compreensão se torna ainda mais relevante e necessária quando vinculada a perspectivas práticas e dados concretos, considerando, principalmente, que conforme a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) — março de 2025, realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), é cada vez maior o avanço da classe de menor renda no sentido do endividamento, ou seja, quem menos tem, mais sofre.
Segundo as estatísticas analisadas, no período respectivo, 80,7% das famílias que recebem até 03 salários-mínimos estão endividadas, enquanto 17,6% não terão condições de pagar as dívidas atrasadas, um claro sinal de proporcionalidade ao eventual nível patológico do consumo. A frase de destaque desta pesquisa — “Famílias apresentam aumento do endividamento para reduzir a inadimplência” — revela um sintoma alarmante, frequentemente observado nos casos de superendividamento, a exigir uma atuação enérgica do sistema de Justiça.

Vias transversais de proteção ao consumidor superendividado
Nesse contexto, faz-se necessário lembrar que, para além do procedimento de repactuação de dívidas seguido da ação de superendividamento, existem, no campo normativo, outras possibilidades, que podem ser mais adequados em determinados casos concretos, considerando peculiaridades financeiras, regionais, sociais e culturais, entre as quais, destaca-se no momento:
Revisional sancionatória do artigo 54-D do CDC
O artigo 54-D do CDC é extremamente importante e ainda não é devidamente conhecido e aplicado. Ele dispõe que:
“Art. 54-D. Na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas:
I – informar e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento;
II – avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção de dados
III – informar a identidade do agente financiador e entregar ao consumidor, ao garante e a outros coobrigados cópia do contrato de crédito.
Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.”
De um lado, cria obrigações objetivas para o fornecedor quando da concessão do crédito e de outro, de forma inovadora, sanciona o seu eventual descumprimento, de modo que a concessão do crédito além da possibilidade de pagamento da pessoa consumidora pode acarretar a “redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor”.
É uma revisional? Sim, pois revisa os termos do contrato. É uma revisional inédita? Sim, pois a sua procedência não depende da existência de cláusulas abusivas ou etc., mas depende pura e exclusivamente da concessão de crédito além da capacidade de reembolso, sem a observação de critérios seguros.
Ou seja, se uma pessoa já tem 55% de sua renda comprometida com empréstimo e e lhe é concedido crédito que comprometa 35% de sua renda (que passa a ter 90% da renda comprometida) é possível ajuizar ação revisional sancionatória em face deste credor que não cumpriu seus deveres constantes dos incisos I, II e III do artigo 54-D. Não seria necessário o ajuizamento do pedido de repactuação em face dos demais credores, ou tampouco ação de superendividamento: é possível — e até mesmo recomendado — que se ajuize a ação revisional sancionatória em face do credor que concedeu o crédito a quem não tinha condições de recebe-lo.
Tal providência não é apenas uma possibilidade, mas uma verdadeira recomendação normativa — tanto que o parágrafo único do artigo 54-D trata até da possibilidade de indenização à pessoa consumidora — no afã de que a concessão do credito seja feita com todas as cautelas necessárias e não como muitas vezes acontece: colocando uma vulnerabilidade (a da pessoa consumidora) contra outra (a do trabalhador que precisa cumprir meta para garantir sua própria renda). Se o paragrafo único do artigo 39 do CDC tivesse sido cumprido como deveria, não teríamos tantos casos de empréstimos sem solicitação, levando tantas famílias a endividamento e a superendividamento.
Esta via revisional sancionatória é extremamente necessária e poderosa: ela ao mesmo tempo que previne o superendividamento contribui na educação do fornecedor de crédito, exigindo o cumprimento de sua obrigação.
Todavia, já se viu na sua aplicação, argumento de que agrediria o precedente qualificado do STJ (Superior Tribunal de Justiça) resultado do Tema 1.085, pelo qual o limite de desconto de crédito pessoal com débito em conta não é o mesmo que para empréstimo consignado determinado pela Lei 10.820/2003, porquanto um assunto nada tenha a ver com o outro: a revisional sancionatória resolve um erro na concessão do crédito e o Tema 1085 não diz que o crédito pessoal com débito em conta não possa ser revisado.
Como já discutido em momento anterior, e deve ser repetido até que se compreenda e busque efetivar tal compreensão, “nada obsta que se busque judicialmente readequar os descontos em conta-corrente de 70% para 30%, por exemplo, ficando comprometido com empréstimos 35% da forma de consignados e 30% na forma de débito em conta corrente” (Rocha; Vieira, 2025). Ou seja, não se aplica o mesmo limite por analogia, mas não quer dizer que não haja um limite, fundamentado em outros pilares, com o objetivo primordial da defesa do consumidor, seu mínimo existencial e combate à exclusão social.
Conclusão
A situação de superendividamento implica um leque de estratégias jurídicas que devem ser analisadas considerando as particularidades de cada caso. O rito processual de repactuação das dívidas (conciliatório ou compulsório) é apenas o meio ordinário de combate ao superendividamento, não o único.
A escolha da via processual mais adequada deve considerar fatores como a urgência da medida, a natureza das dívidas, o percentual de comprometimento da renda e a existência de condutas abusivas por parte dos fornecedores na concessão do crédito sem observância de suas obrigações – das quais são plenamente capazes de cumprir. Em alguns casos, a limitação dos descontos em folha de pagamento com base na jurisprudência do STJ ou a revisão contratual sancionatória do artigo 54-D podem ser mais eficientes que o procedimento conciliatório.
A compreensão ampla dessas possibilidades é essencial para garantir a proteção efetiva do consumidor superendividado, assegurando seu mínimo existencial e promovendo sua reintegração ao mercado de consumo, em consonância com os objetivos fundamentais da Lei do Superendividamento.
A Lei nº 14.181/2021 representa uma mudança de paradigma na abordagem do superendividamento no Brasil, buscando promover a transição da “cultura da dívida” para a “cultura do pagamento”, como sempre nos lembra a professora Claudia Lima Marques.
Nesse contexto, as vias transversais de prevenção e tratamento ao superendividamento constituem ferramentas essenciais para garantir a efetividade desta transição, e devem ser amplamente bem utilizadas, principalmente considerando que mesmo após décadas de vigência do nosso Código de Defesa do Consumidor, ainda há uma subutilização de sua rica estrutura positiva e ramificada na defesa da pessoa consumidora.
É essencial destacar, portanto, que o enfrentamento efetivo ao superendividamento requer não apenas a aplicação das ferramentas jurídicas disponíveis, mas também a compreensão e domínio, num compromisso com a educação financeira e o consumo consciente, e a ativa participação do Sistema de Justiça. Somente através de uma abordagem multidisciplinar será possível construir uma sociedade de consumo mais justa, solidária, responsável e sustentável, na qual não apenas a pessoa consumidora, mas também os fornecedores, sairemos fortalecidos, como quer o caput do artigo 4º do CDC.
Referências bibliográficas
MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da Pandemia de COVID-19: Pela urgente aprovação do PL 3.515/2015 de atualização do CDC e por uma moratória aos consumidores. Revista de Direito do Consumidor, v. 129, p. 47-71, 2020.
ROCHA, Amélia Soares da; VIEIRA, Lara Fernandes. STJ não proibiu readequação do limite de empréstimo com débito em conta. Consultor Jurídico, 01 de janeiro de 2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-jan-01/stj-nao-proibiu-readequacao-do-limite-de-emprestimo-com-debito-em-conta/.
Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) – março de 2025. Rio de Janeiro – RJ, 2025. Disponível em: https://portaldocomercio.org.br/publicacoes_posts/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-marco-de-2025/. Acesso em: 03 mai. 2025.
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