Consultor Jurídico

Imprescritibilidade dos crimes contra humanidade praticados por agentes do Estado na ditadura

4 de maio de 2025, 6h04

Por Luiz Guilherme Arcaro Conci, Marcelo Carita Correra

imprimir

Em 15 de fevereiro deste ano, ganhou notoriedade a decisão do Supremo Tribunal Federal, relatoria do ministro Flávio Dino, nos autos do ARE 1.501.674/PA [1], que reconheceu o caráter constitucional e a repercussão geral do seguinte tema: “Possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência, à luz da Emenda Constitucional 26/85 e da Lei nº 6.683/79”.

Arquivo Nacional
Agentes estatais durante manifestação estudantil contra a ditadura militar em 1968

A questão possui relação com episódios comprovados de violações de direitos humanos (torturas, sequestros, homicídios, desaparecimentos forçados, ocultações de cadáveres e falsidades ideológicas para apagar os registros da violência), como a Operação Bandeirantes, a Guerrilha do Araguaia, o sistema DOI-Codi  e a Casa da Morte [2]. Há outros relatos sobre abusos praticados por agentes do Estado, conforme os dados coletados no âmbito do Projeto Brasil – Nunca Mais [3] e na obra de Frei Betto [4]. O relatório intitulado Direito à Memória e à Verdade, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, demonstrou a ocorrência de mais de 370 atos de violência praticados por agentes estatais em face de opositores políticos [5].

Trata-se de caso que se agrupa aos já existentes no Supremo Tribunal Federal [6], envolvendo a temática da capacidade da Emenda Constitucional 26/85 e da Lei nº. 6.683/79 de impedirem o julgamento criminal de agentes do Estado Brasileiro que, no período de exceção democrática de 1964 a 1985, praticaram crimes considerados de lesa-humanidade no contexto da repressão política (graves violações a direitos humanos).

É preciso destacar as diferenças nos argumentos levados ao Supremo Tribunal Federal. As mencionadas ADPFs, em síntese, têm como principal fundamento a incompatibilidade da lei de anistia com as Convenções Internacionais de Direitos Humanos e a necessidade de cumprimento das condenações do Brasil nos casos Gomes Lund [7] e Vladimir Herzog (que estabeleceram a necessidade de responsabilização penal dos agentes).

Trata-se de buscar a mesma solução adotada na Argentina, que estabeleceu a anistia com as lei de Ponto Final [8] e de Obediência Devida [9] (crimes cometidos pelos agentes do Estado entre 1975 e 1983). No entanto, a Suprema Corte [10] do país vizinho, ao interpretar as normas diante das Convenções Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, e não somente em face da Constituição, determinou que são leis “intoleráveis”.

A tese desenvolvida no ARE 1.501.674/PA limita-se aos crimes de ocultação de cadáver. Parte da premissa de que o crime é da modalidade permanente (a consumação se prolonga no tempo) e, portanto, enquanto ainda houver a ocultação, há a fase de consumação. Assim, o término da consumação, o termo inicial para contagem do prazo prescricional (artigo 111, III, do Código Penal) e a norma aplicável, somente serão fixados quando cessar a ocultação. A argumentação é reforçada pelo recente entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a natureza permanente de desaparecimentos forçados [11]. Não se trata de discutir a validade da lei de anistia diante da Constituição Federal e de tratados internacionais que o Brasil ratificou, mas sim qual o limite de sua aplicação, uma vez que estabelece como marco final o dia 15 de agosto de 1979.

Anote-se que, no âmbito do TRF-3, corte, no âmbito federal, com jurisdição territorial sobre os atos praticados durante a operação bandeirantes, a tese da não ocorrência de prescrição nos crimes de ocultação de cadáver já havia sido objeto de discussão [12], restando decidido que “não há referência à atividade criminosa dos agentes posterior à Lei da Anistia que poderia — como se pretende — postergar o início da fluência do prazo prescricional. Assim, não há que se falar, no caso concreto, em ausência de prescrição, uma vez que não houve demonstração da prática de nenhum ato após o fim do término do período da anistia”. No segundo semestre de 2024, no âmbito do TRF-2 [13], foi proferido julgamento no mesmo sentido.

Julgamos que a solução para os entraves jurídicos que impedem que os casos cheguem às cortes criminais deve ser obtida não pela alegação de existência de crimes permanentes (que até hoje estariam em consumação), mas sim pela aplicação das normas de direito internacional vigentes no período de 1961 a 1979.

Em primeiro lugar, acolhemos a manifestação do Superior Tribunal de Justiça [14] (envolvendo os restos mortais de Rubens Paiva) como a mais correta no que tange à natureza do crime de ocultação de cadáver. Trata-se de crime instantâneo com efeitos permanentes. Asseverou o referido tribunal que: “a ação de ocultar cadáver é permanente quando se depreender que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o corpo, objeto jurídico do crime, venha a ser encontrado. Dentro das circunstâncias fáticas delineadas nos autos, não é de se deduzir que a ocultação – excluindo a hipótese de destruição, como pretende a denúncia – praticada há 49 anos seja dotada de algum viés temporário. Não pode, portanto, a conduta ser classificada como permanente, mas instantânea de efeitos permanentes”. Informe-se que há recurso contra essa decisão pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal [15].

Spacca

Portanto, em nosso entender, mesmo na hipótese de ocultação de cadáver, não se deve acolher a tese de crime permanente, visto que a conduta não apresenta nenhum viés temporário. Trata-se de crime instantâneo de efeitos permanentes.

Também não se defende a aplicação do Tratado para Prevenção da Tortura, ratificado em 1991, por meio do Decreto Presidencial nº 40, de 15 de fevereiro de 1991  ou do Estatuto de Roma, ratificado no Brasil pelo Decreto Presidencial nº 4.388 de 2002 ou mesmo a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, artigo 7º, ratificada em 2016, por meio do Decreto Presidencial nº 8.766 de 2016, na medida em que são normas introduzidas no ordenamento pátrio após os fatos em questão, não existindo fundamento jurídico para a aplicação retroativa, em prejuízo dos réus.

Contudo, reconhece-se que, quando da ocorrência dos fatos ilícitos anistiados (entre 1961 e 1979), havia normas e costumes internacionais coibindo violações a direitos humanos. Normas essas que são aplicáveis independentemente de qualquer ratificação ou acolhimento por um determinado país. Nossa proposta é o acolhimento do mesmo fundamento utilizado no Tribunal de Nuremberg para análise e punição dos graves crimes praticados durante a Segunda Guerra Mundial. A Resolução 95 (I) de 1946 trata dos Princípios de Direito Internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg, o que posteriormente foi reiterado pela Comissão de Direito Internacional da ONU em 1950. Esses instrumentos consolidaram, em um documento internacional, os costumes internacionais vigentes sobre a impossibilidade de violações a direitos humanos.

A Convenção das Nações Unidas sobre a Imprescritibilidade de Crimes de Guerra e de Crimes contra Humanidade [16] reconheceu o afastamento do sistema de prescrição penal das legislações locais no combate aos crimes de lesa-humanidade. Trata-se de norma cogente no âmbito de direito internacional, independentemente da ratificação dos Estados, na medida em que adquiriu caráter de norma de direito internacional geral [17]. Ademais, o The Princeton Principles on Universal Jurisdiction [18] toma a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade como um costume jurídico consolidado, a ser aplicado independentemente de norma formal.

Yves Beigbeder [19] destaca que, no Tribunal de Nuremberg e no Tribunal de Tóquio, houve questionamentos sobre a existência de leis para o julgamento dos casos e sobre a irretroatividade da Resolução das Nações Unidas. Os argumentos foram afastados e os julgamentos mantidos, sob o fundamento de que os costumes internacionais vigentes à época dos fatos proibiam as violações de direitos humanos praticadas, inexistindo necessidade de prévia lei formal para punir os atos contrários aos referidos costumes.

O entendimento é que, ao menos desde a Segunda Guerra Mundial, a tipificação dos crimes de lesa-humanidade decorre de costumes internacionais, podem ser punidos por qualquer país e não estão sujeitos a marcos prescricionais [20]. E, o mais relevante, não demanda nenhum processo de ratificação ou internalização e a tipificação não pode ser impedida por normas locais.

Jurisprudência internacional

Sobre os standards para configuração do crime de lesa-humanidade diante do Jus Cogens, se analisarmos a jurisprudência emanada de cortes internacionais de proteção a direitos humanos, como é o caso do Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia, quando do julgamento do caso Erdemovic [21], a referida corte afirmou que crimes de lesa-humanidade “são atos desumanos que, por suas dimensões, vão além dos limites toleráveis à comunidade internacional […] É, portanto, o conceito de humanidade como vítima que essencialmente caracteriza crimes contra a humanidade”.

A mesma premissa foi aplicada no caso Ratko Mladic [22], quando foram reafirmados critérios para a consideração de crimes contra a humanidade, referendando o entendimento de que não se tem somente o indivíduo como vítima, mas toda a humanidade. Essa é a premissa fixada nos casos Akayesu [23] e Alex Tamba Brima, Brima Bazzy Kamara e Santigie Borbor Kanu [24].

Se tomarmos os elementos referidos neste artigo, especialmente o caso Gomes Lund, podemos afirmar que as graves violações a direitos humanos no contexto da repressão política preenchem os requisitos expostos para serem considerados crimes contra a humanidade.

Portanto, se as graves violações a direitos humanos perpetradas por agentes do Estado brasileiro são crimes de lesa-humanidade (como os desaparecimentos forçados, sequestros, homicídios e ocultações de cadáveres), não estão sujeitas a marcos prescricionais. Ressalte-se que estamos diante de Jus Cogens, normas de direito internacional cuja aplicação não demanda anuência do Estado.

Há, na ordem internacional vigente no momento dos fatos em questão, fundamentos jurídicos para que o Brasil afaste a validade da norma de anistia e traga os agentes do Estado responsáveis por graves violações a direitos humanos ao banco dos réus.

 


[1] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARE 1501674 / PA. Rel. Ministro Flávio Dino.

[2] TELES, Janaína de Almeida. Memórias dos cárceres da ditadura: os testemunhos e as lutas dos presos políticos no Brasil. Tese (Doutorado em Filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. pp. 94, 111, 107 e 142.

[3] ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais. 41. ed. São Paulo: Vozes, 2014.

[4] BETTO, Frei. Batismo de Sangue: guerrilha e morte de Carlos Marighella. São Paulo: Rocco Digital, 2006.

[5] BRASIL. Direito à Memória e à Verdade. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/memoria-e-verdade/direito-a-memoria-e-a-verdade-2013-comissao-especial-sobre-mortos-e-desaparecidos-politicos/view. Acesso em: 23 set. 2021.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 153. Rel. Min. Dias Toffoli.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 320. Rel. Min. Dias Toffoli.

[7] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Gomes Lund e outros vs. Brasil, 2010.

[8] ARGENTINA. Lei nº 23.492, de 24 de dezembro de 1986. Dispónese la extinción de acciones penales por presunta participación, en cualquier grado, en los delitos del artículo 10 de la Ley n. 23.049 y por aquellos vinculado a la instauración de formas violentas de acción política. Excepciones. Buenos Aires.

[9] ARGENTINA. Lei 23.521, de 8 de junho de 1987. Obediencia debida. Se fijan límites. Buenos Aires.

[10] ARGENTINA. CSJN. Simón, Julio Héctor y Otros s/ privación ilegítima de la libertad, etc. Causa n. 17.768, decisão de 14 jun. 2005, parágrafo 16.

[11] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Pérez Lucas y otros vs. Guatemala – sentencia de 4 de septiembre de 2024.

[12] TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO. RSE 0015754-19.2015.4.03.6181. Rel. Des. André Nekatschalow. Julgado em 15.12.2016.

[13] TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO. AP. 5005036-93.2019.4.02.5103/RJ. Rel. Des. Marcello Ferreira de Souza Granado. Julgado em 10.09.2024.

[14] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso em Habeas Corpus Nº 57.799 – RJ. Rel. Min. Jorge Mussi. Julgado em 30.09.2020.

[15] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ARE 1316562. Min. Rel. Alexandre de Morais.

[16] Aprovada pela Assembleia Geral da ONU por meio da Resolução 2391 (XXIII), de 26 de novembro de 1968. Entrou em vigor no direito internacional em 11 de novembro de 1970.

[17] PASTOR RIDRUEJO, José Antonio. Las Naciones Unidas y la codificación del Derecho Internacional: Aspectos Jurídicos y Políticos. In: ROMANÍ, Fernández de Casadevante Romaní; LÓPEZ, Carlos y Quel; JAVIER, Francisco: Las Naciones Unidas y el Derecho Internacional. Ariel, Barcelona, 1997, p. 173-185.

[18] ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. The Princeton Principles on Universal Jurisdiction. Princeton Project on Universal Jurisdiction. New Jersey: Program in Law and Public Affaire, Princeton University Princeton, 2001.

[19] BEIGBEDER, Yves. Judging War Criminals: the politics of international justice. Foreword by Theo van Boven. London: MacMillan Press, 1999. p. 60-63.

[20] BROWNLIE, Ian. Principles of Public International Law. Oxford University Press, Oxford, Fifth Edition, 1998. p. 235.

[21] TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A EX-IUGOSLÁVIA. Prosecutor vs. Drazen Edermovic. Julgado em 29.11.1996.

[22] TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A EX-IUGOSLÁVIA. The Prosecutor of the Tribunal against. Radovan Karadzic and Ratko Mladic. (Bosnia and Herzegovina), Sessão de 24.07.1995.

[23] TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA RUANDA. The Prosecutor vs. Jean-Paul Akayesu, ICTR-96-4-T. Julgado em 02.09.1998.

[24] TRIBUNAL ESPECIAL PARA SERRA LEOA. The Prosecutor Against Alex Tamba Brima, Brima Bazzy Kamara, Santigie Borbor Kanu. Julgado em 20.06.2007.