Consultor Jurídico

Análise comparativa da Justiça em junho de 1978 e na atualidade

4 de maio de 2025, 7h10

Por Vladimir Passos de Freitas

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Aleatoriamente, retiro da minha biblioteca a “Revista dos Tribunais” volume 512, junho de 1978, a fim de comparar como e o que se julgava com a forma de distribuição de Justiça da atualidade. Por óbvio, é pesquisa focada em um exemplar, sem a pretensão de ter a palavra definitiva. Apenas uma visita ao passado, para dela tirar conclusões que permitam melhor avaliar o sistema contemporâneo.

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Observo que a “Revista dos Tribunais” é o melhor espaço para tal tipo de pesquisa, seja porque possui tradição que remonta a 1912, o que, inclusive me levou a escrever o artigo “A Revista dos Tribunais nº 1 e os julgamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo em 1912”, [1] seja porque reproduz, no exemplar citado, acórdãos não só dos tribunais de São Paulo e de outros estados, como também do Supremo Tribunal Federal.

Doutrina e afins

A RT 512 dividia-se em dois fascículos, cível e criminal. Em ambos começava pela doutrina, sendo que, no cível, trazia também consultas, pareceres, notas e comentários. Publicar um artigo na Revista dos Tribunais era uma honra, que deve ter sido o sentimento dos então jovens Antonio Janyr Dall’Agnol Jr., juiz de direito gaúcho, com o artigo “Aspectos da Arrematação e da Adjudicação”, e do Promotor Público Gilberto Passos de Freitas, com “Crimes de Responsabilidade dos Funcionários Públicos”.

Doutrina e as demais expressões culturais foram se afastando das revistas, cedendo espaço à jurisprudência. Vejo aí o deslocamento do Direito brasileiro para o sistema norte-americano de Justiça, afastando-se do sistema europeu continental que nos foi trazido por Portugal, quando do período colonial.

Isto se dá não apenas nas revistas, mas na própria elaboração de livros. Estes possuem, atualmente, outro formato. As livrarias jurídicas perderam-se no tempo e as comuns, de grande porte, costumam ter um espaço para o Direito, onde a maioria dos livros é sobre concursos púbicos ou processo civil, esta ainda uma área que desperta interesse.  Os outros livros, na sua maior parte, são dissertações ou teses de mestrado, ou feitos por vários autores que abordam tema único, em capítulos diversos. Mas, na maioria das vezes, alcançam público restrito.

Por sua vez, a jurisprudência, que pode ser acessada instantaneamente, avança a passos largos. Sites especializados, como o Jusbrasil, dão respostas imediatas às dúvidas da rotina forense.

O volume examinado evidencia, ainda, a preocupação com homenagens, dedicando-se uma ao advogado Rui de Azevedo Sodré, que foi presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo (p. 481), e ao juiz Sydnei Sanches pela posse em 20 de abril de 1978 no Tribunal de Alçada Criminal (p. 489), ele que, posteriormente, honrou o Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. As homenagens, com o passar dos anos, foram sendo abandonadas, possivelmente pela falta de tempo que a vida moderna a todos impõe.

Conteúdo dos acórdãos

As decisões colegiadas abordavam temas mais restritos. O mundo era menos populoso, o comércio internacional era reduzido, inclusive porque os países pertencentes à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tinham diminuído o contato com o mundo ocidental, e a China era um gigante adormecido do outro lado do planeta.

Em 1978 não existia Direito Ambiental, muito embora se começasse a conscientização dos problemas ecológicos, Direito das Minorias, Direito Aduaneiro, proteção do consumidor, dano moral, ações coletivas e especialidades como o Direito Minerário ou Esportivo. Se alguém falasse em processo estrutural em um congresso, delicadamente seria aconselhado a procurar uma psicóloga.

Portanto, entre os acórdãos do volume citado, preponderam, no cível, execuções de títulos de crédito, alienações fiduciárias de veículos, desapropriação, despejo, falência, sucessões, possessórias, servidores públicos e responsabilidade civil. Na área criminal, decisões sobre competência, fruto da consolidação da Justiça Federal com dúvidas ainda não definidas, furto, crimes falimentares, homicídio e júri, Habeas Corpus e prescrição.

O Direito à Imagem dava os seus primeiros passos. E assim, Regina Duarte, Sandra Brea, Francisco Cuoco, José Wilker e outros consagrados atores e atrizes não hesitaram em processar a Bloch Editores S/A., reivindicando indenização por ter publicado o nominado “Álbum de Ouro”, em agosto de 1975, cobrando R$ 10 por exemplar, sem que deles tivessem as necessárias autorizações ou se lhes fizesse qualquer pagamento. O 1º Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro, em acórdão de 25 de outubro de 1977, reproduziu e adotou na íntegra a sentença do juiz de Direito Celso Felício Panza, de 14 de março do mesmo ano, julgando procedente o pedido (p. 262).

Os fatos descritos em alguns processos seriam hoje inconcebíveis. O Tribunal de Justiça do Paraná julgou recurso oriundo de Guaira, em que um médico foi condenado a 1 ano de reclusão por cárcere privado, artigo 148 do Cód. Penal. Desde logo, ressalte-se que o crime de reclusão, à época, se cumpria em regime fechado, inexistindo, sequer, prisão albergue.

O motivo da condenação foi o médico não ter permitido a saída de um paciente que não pagou por seu internamento. A Corte Estadual, em 23 de novembro de 1977, em embargos interpostos junto às Câmaras Criminais Reunidas, desclassificou o crime para o de exercício arbitrário das próprias razões, declarando em seguida a prescrição (p. 423). E assim, pôs fim a uma prática que, naquele tempo, não era rara no interior do estado.

Redação dos acórdãos

A clareza e simplicidade dos acórdãos era exemplar. Os magistrados sabiam que sentença e acórdão eram para solucionar conflitos e que doutrina se faz em artigos ou livros. A linguagem expunha claramente a causa do conflito e dava a solução.

Por vezes, o relator revelava a sua preocupação com a família, valor de maior significado à época. O desembargador Geraldo Roberto, ao relatar no TJ-SP uma apelação em ação de alimentos, não hesitou em externar a sua opinião pessoal: “É lamentável que um casal constituído em 1953 e enriquecido com o nascimento de quatro filhos chegue ao ponto de ruptura, sem causa muito definida” (p. 94). Ao final, fixou a pensão em valor certo e determinou o reajuste pelos índices de atualização do salário mínimo.

Em outras, advertia a parte. O Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro, em acórdão de 24 de agosto de 1977, indeferiu pedido de retificação de nome feito por esposa que, ao casar-se, adotou o apelido (sobrenome) do marido. Com o tempo, suas relações com a sogra se deterioraram e ela quis retirar o apelido da sogra de seu nome, afirmando que ela exercia influência psicológica sobre o filho, prejudicando sua maturidade, e isto estava afetando o equilíbrio emocional do casal.

O relator, juiz Antonio Assumpção, dando um pito, registrou: “…imaturidade se acha antes de tudo revelada no que respeita à própria requerente ao supor que, com o deferimento de sua pretensão, estaria concorrendo para solucionar problemas de relacionamento do casal” (p. 259). Ação improcedente.

Atualmente os acórdãos, em especial do STF, são descritos em um enorme número de folhas, com reproduções em aspas de alegações das partes ou de decisões judiciais, sem que se exteriorize de forma clara o conflito. Quiçá as assessorias tenham dificuldades em tornar conciso o que realmente importa saber, porém isto gera uma dificuldade no leitor em entender o que está se discutindo.

STF de então

O Supremo Tribunal Federal em 1978 não era um órgão com milhares de processos distribuídos mensalmente. O regimento interno permitia que os ministros avaliassem a relevância do recurso e negassem os que se restringissem ao interesse das partes e não à nação. O sistema, inspirado na Suprema Corte norte-americana, funcionava bem.

Assim, por exemplo, a Corte tomou conhecimento e julgou Habeas Corpus (p. 458) impetrado por um preso condenado por estelionato, que teve a sua apelação interposta por advogado dativo não conhecida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, porque o réu, intimado por edital, não recorreu. O STF, em acórdão relatado pelo ministro Cunha Peixoto, em três páginas, reconheceu a importância da ampla defesa, assim:

O defensor dativo não só pode, como deve esgotar, a favor do réu, todos os recursos legais que garantam o mandamento da ampla defesa, sendo nula a decisão que não conheça do recurso nessa hipótese (precedentes: habeas corpus n. 54.208-DF e recurso de “Habeas Corpus” nº 54.961).

Ressalte-se nesta decisão, além do mais, a simplicidade da ementa. Enxuta, clara e objetiva, passou ao leitor como a Corte via o tema em questão. Bem diferente das atuais, que se perdem em itens que mesclam o que importa ao que não importa, por vezes até copiando trecho do voto.

Simplicidade e celeridade

Não é possível afirmar que, nos anos 1970, a qualidade dos julgados era superior à contemporânea. Mas é possível concluir que os julgamentos eram feitos de forma mais simples e de fácil compreensão, não só pelos profissionais envolvidos, como pelas partes no processo. Também que os julgamentos eram muito mais céleres, porque não existiam as quatro instâncias introduzidas pela Constituição de 1988, nem o interminável número de recursos.

Neste particular, a recente menção do ministro do STJ Ribeiro Dantas, por si só, descreve a situação a que se chegou:

Ao julgar o pedido para redimensionar a pena de um réu condenado por tráfico de drogas, o ministro criticou a “utilização desmedida” do instituto constitucional, ressaltando que, em muitos HCs, as discussões não são sobre violações ou ameaças iminentes ao direito de ir e vir, mas sim sobre temas como nulidades e dosimetria de pena — a exemplo do HC 1.000.000. [2]

Conclusão

A Justiça de 1978 era diversa da atual, simplesmente porque diverso era o Brasil e a sua sociedade. Não dispunha de nenhuma tecnologia, sendo o avanço máximo as máquinas elétricas da IBM com possibilidade de correção. Todavia, nada impede que, no que tinha de melhor, seja feita uma revisão do atual sistema, reconhecendo os erros cometidos. Difícil, sim. Impossível, não.

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[1] FREITAS, Vladimir Passos de Freitas.  A Revista dos Tribunais nº 1 e os julgamentos do tribunal de justiça de São Paulo em 1912. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/CadernosJuridicos/65%2007.pdf?d=638386085705338683. Acesso em: 2 mai. 2025.

[2] STJ. Notícias. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/30042025-Relator-do-HC-1-000-000-cita-utilizacao-desmedida-e-pede-reflexao-sobre-o-instituto.aspx. Acesso em: 2 mai. 2025.