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STJ reafirma a soberania dos credores em planos de recuperação anteriores à Lei 14.112/20

3 de maio de 2025, 17h22

Por Doralúcia Azevedo Rodrigues, Mauro Liberato Filho

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No julgamento do REsp 2.181.080/RJ, ocorrido no último dia 11 de abril, sob relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reafirmou um princípio essencial da recuperação judicial: a prevalência da vontade dos credores sobre o prazo de carência para o início dos pagamentos previstos no plano aprovado em assembleia; além disso, firmou entendimento sobre a aplicabilidade da nova redação do artigo 61 da Lei nº 11.101/2005, disposta pela Lei nº 14.112/2020, a casos envolvendo planos de recuperação e decisões anteriores à entrada em vigor da aludida lei.

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O juiz Adler Batista Oliveira Nobre decidiu trocar o profissional responsável por três imóveis que restam na massa falida

O recurso foi interposto pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), credora no processo de recuperação judicial da recorrida Hotéis Othon S.A. No caso concreto, tanto a apresentação do plano de recuperação quanto a decisão que o homologou e concedeu a recuperação judicial ocorreram antes da entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020. O plano estabeleceu um prazo de carência de 48 meses para o início dos pagamentos aos credores, sem qualquer ressalva quanto à contagem concomitante do prazo de supervisão judicial de dois anos, abrangendo o período da carência.

Isso posto, no recurso mencionado, a controvérsia central era definir se (1) aplicável a atual redação do artigo 61 da Lei nº 11.101/2005, que dispõe que o prazo de dois anos para a supervisão judicial independe do período de carência previsto no plano de recuperação judicial, aos processos de recuperação nos quais o plano e sua homologação são anteriores à alteração legislativa trazida pela Lei nº 14.112/2020; (2) seriam nulas as cláusulas do plano de recuperação que preveem prazo de carência superior aos dois anos de supervisão judicial; (3) o prazo de supervisão deve começar a fluir após a carência de 48 meses prevista no plano aprovado.

Conforme comentado por Marcelo Sacramone, na redação originária [1] do artigo 61, havia uma discussão sobre a possibilidade de o período de carência para o início dos pagamentos aos credores poder ultrapassar o prazo de fiscalização, pois algumas decisões e correntes doutrinárias enfatizavam que se estaria violando norma cogente. Isso porque se considerava que a cláusula do plano que estabelecesse o vencimento das obrigações apenas após esse período, ou que determinasse valores insignificantes em relação ao total devido, impediria a efetiva fiscalização judicial do cumprimento das obrigações [2].

Com a redação dada pela reforma ao artigo 61[3], segundo Bezerra Filho, afastou-se a discussão acima, pois o legislador apontou que a ratio da norma seria determinar que os dois anos de fiscalização devem ser contados a partir da concessão da recuperação judicial, “independentemente do eventual período de carência”. Assim, o prazo de supervisão judicial passaria a se iniciar com a concessão da recuperação judicial, e não com o término da carência [4].

No caso concreto, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) havia decidido que o prazo de supervisão deveria ter início independentemente do prazo de carência de 48 meses aprovada em assembleia.

Spacca

A recorrente alega violação dos artigos 5º da Lei nº 14.112/2020, 61, “caput”, da Lei nº 11.101/2005 e 14 do Código de Processo Civil, por entender que não se aplicam as alterações trazidas pela Lei nº 14.112/2020 ao caso, porque a concessão da recuperação judicial ocorreu antes da entrada em vigor dessas alterações legislativas, especialmente em relação ao termo inicial do período de supervisão judicial do cumprimento do plano de recuperação judicial. Além disso, aponta nulidade da cláusula do plano de recuperação judicial que prevê prazo de carência superior a dois anos para o início do cumprimento do plano.

Ao apreciar a matéria, o relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva reconheceu que, de fato, a nova redação do artigo 61 não poderia retroagir para atingir planos aprovados antes da Lei 14.112/2020. Isso porque, embora o artigo 5º da Lei nº 14.112/2020 determine sua aplicação imediata aos processos pendentes, exige que se observe o disposto no artigo 14 do Código de Processo Civil, segundo o qual “a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada”.

Contudo, mesmo não sendo aplicável a redação atual da lei em questão, o relator afastou possível nulidade acerca da cláusula sobre a carência, destacando que, desde a vigência da redação originária, a jurisprudência do STJ já prestigiava a soberania da assembleia de credores, permitindo a previsão de períodos de carência superiores ao biênio de supervisão, desde que aprovados pela assembleia de maneira soberana [5].

Ressaltou-se também que, segundo compreende a Corte Superior, como as questões versam sobre o conteúdo econômico do plano aprovado, que são direitos patrimoniais disponíveis titularizados pelos credores, o órgão julgador não está autorizado a proceder a seu exame sem que tenha havido irresignação dos respectivos interessados [6].

Assim, concluiu-se que “o termo inicial do prazo de supervisão judicial ou o prazo máximo de carência previsto no plano são matérias que devem ser deliberadas em assembleia, não cabendo ao Poder Judiciário se imiscuir na vontade dos credores nesse aspecto”.

Protagonismo do credor deve ser preservado

Nesse sentido, considera-se que a decisão comentada foi acertada, especialmente porque, embora se possa argumentar que o período de fiscalização do cumprimento do plano seja benéfico aos credores, cujos interesses são tutelados pelo Poder Judiciário, com a possibilidade de convolação automática da recuperação judicial em falência, o prazo de dois anos de fiscalização impõe grande dificuldade às empresas em crise. Na mesma toada aponta Sacramonte, que ensina:

Durante todo o período de fiscalização, a recuperanda permanecerá com a inclusão em seu nome empresarial da expressão “em recuperação judicial”. Pelo estigma de inadimplente e de que são baixas as taxas de recuperação efetiva dos empresários submetidos à recuperação judicial, a extensão desse período podia dificultar a obtenção de crédito pelos empresários, a celebração de novos negócios jurídicos no mercado e, portanto, sua própria recuperação [7].

Por fim, embora a decisão do STJ tenha destacado o caráter dispositivo da norma, permitindo que seja objeto de negociação no âmbito da recuperação judicial, é importante a ressalva apontada por Campinho, que ensina que “o teto legal de 2 (dois) anos do artigo 61 é de ordem pública e, por isso, não pode ser elastecido, independentemente de eventual período de carência previsto para o início do cumprimento das obrigações contidas no plano” [8].

Portanto, o julgamento do REsp 2.181.080/RJ é mais do que uma simples aplicação técnica da teoria do isolamento dos atos processuais: é a reafirmação de que o caminho para o soerguimento de empresas passa, necessariamente, pelo respeito às escolhas feitas por seus credores. A recuperação judicial é, antes de tudo, um instrumento de composição negocial. O protagonismo dos credores deve ser preservado — e o Judiciário deve atuar como garantidor desse processo, não como seu substituto.

 


[1] Redação anterior à Lei 14.112/2020:

Art. 61. Proferida a decisão prevista no art. 58 desta Lei, o devedor permanecerá em recuperação judicial até que se cumpram todas as obrigações previstas no plano que se vencerem até 2 (dois) anos depois da concessão da recuperação judicial.

[2] Sacramone, Marcelo Barbosa Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência / Marcelo Barbosa Sacramone. – 4. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2023.

[3] Redação posterior à Lei 14.112/2020:

Art. 61. Proferida a decisão prevista no art. 58 desta Lei, o juiz poderá determinar a manutenção do devedor em recuperação judicial até que sejam cumpridas todas as obrigações previstas no plano que vencerem até, no máximo, 2 (dois) anos depois da concessão da recuperação judicial, independentemente do eventual período de carência. (grifo nosso)

[4] Lei de recuperação de empresas e falência [livro eletrônico]: Lei 11.101/2005 : comentada artigo por artigo / Manoel Justino Bezerra Filho ; Eronides A. Rodrigues dos Santos, coautoria especial. — 15. ed. rev., atual.e ampl. — São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

[5] Nesse sentido: REsp n.º 1.788.216/PR, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 22/3/2022, DJe de 29/3/2022; REsp n.º 1.853.347/RJ, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 5/5/2020, DJe de 11/5/2020.

[6] Nesse sentido: REsp n. 1.852.752/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 27/10/2020, DJe de 12/11/2020.

[7] Sacramone, Marcelo Barbosa Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência / Marcelo Barbosa Sacramone. – 4. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2023, p. 520-521.

[8] Campinho, Sérgio. Plano de recuperação judicial [recurso eletrônico] : formação, aprovação e revisão – de acordo com a Lei n. 14.112/2020 / Sérgio Campinho. – São Paulo : Expressa, 2021, p. 54.