Caneca e Mororó: ambos discentes do Seminário de Olinda; Caneca, monge beneditino; Mororó, clérigo secular; ambos oradores sacros consagrados; ambos personagens substantivos da Confederação do Equador; ambos sentenciados por crime de lesa-majestade, tipificado no livro 5, título 6, parágrafos 6 e 9, das Ordenações (Filipinas) do Reino; ambos arcabuzados, um em janeiro, o outro em abril, do ano de 1825; ambos jornalistas, o primeiro, editor do Typhis Pernambucano, o outro, editor do Diário do Governo do Ceará.

Os dois jornais — um com 29 edições, circulou de dezembro de 1823 a agosto de 1824, o outro, com dezenove, entre abril e novembro de 1824 —, foram os porta-vozes por excelência das ideias que rondavam o nascente do constitucionalismo brasileiro, federalista, nacionalista e republicano.
O presente artigo tem como objetivo pontuar as perspectivas tomadas pelos dois periódicos, salientando a pertinência com a efervescência constituinte da quadra que vai de 1917 a 1924, caracterizando a existência de um projeto de outra Independência. Evidentemente, algumas questões foram contempladas nos dois periódicos, como a soberania, a origem do poder, a concepção de nação, a concepção de estado de direito, as formas de Estado e de governo, a representação política, os direitos políticos e os direitos individuais, estruturando uma teoria poder constituinte e da constituição.
Vontade de constituição das Províncias do Norte oriental (1817-1824)
Não somente no Brasil, como na América Latina, tende-se, de modo geral, à compreensão do constitucionalismo nacional e continental como um desvio do europeu e do norte-americano. Esquece-se de que foi na América Latina, no início do século 19, que se desenvolveram, em vários Estados, diversos ensaios de governos constitucionais (Rivera, 2000; Moraes, 2011; Bercovici, 2018).
Segundo Evaldo Cabral de Mello (2004, p. 11):
“[…] a fundação do Império é ainda hoje uma história contada exclusivamente do ponto de vista do Rio de Janeiro, à época, pelos publicistas que participaram do debate político da Independência, e, em seguida depois pelos historiadores como Varnhagen, Oliveira Lima, Tobias Monteiro ou Octavio Tarquinio de Sousa, que repristinaram a versão original visando à maior glória da monarquia ou da unidade nacional […].”
No mesmo diapasão, Roderick P. Barman (1994, p. 66) assinala que a criação do Estado unitário no Brasil não foi um “destino manifesto”, pois, “se a Revolução Portuguesa de 1820 fazia previsível a mudança do status quo colonial, não estava escrito nas estrelas que ela desembocaria no Império do Brasil”.

Como destaca Mello (2004, p. 12), uma das consequências do rio-centrismo na historiografia da Independência consistiu em limitar o processo emancipacionista ao triênio 1820-1822, quando 1823 e 1824, com os fatos eloquentes da dissolução da Constituinte e da Confederação do Equador “foram anos cruciais para a consolidação do Império”. De uma parte, porque tais episódios permitiram ao Rio de Janeiro resolver a contento a questão fundamental da distribuição do poder no Estado recém-criado, e, de outra parte, revelar que a disputa política era menos entre o Executivo e o Legislativo e mais ao conflito entre o centralismo imperial e o autogoverno das províncias.
Frei Caneca
Nascido no Recife em 1779, o futuro frei Joaquim do Amor Divino Caneca (Brito, 1937; Caneca, 2024; Mello, 2024) tornou-se noviço, tomou o hábito e professou no Convento de Nossa Senhora do Carmo, Recife, e, em seguida, aos 22 anos de idade, ordenou-se sacerdote. Foi professor de Retórica, Geometria e Filosofia Moral e Racional. Iniciou-se maçom, tendo pertencido à Academia de Suassuna e, posteriormente, à Academia do Paraíso, partilhando das ideias liberais e republicanas, nomeadamente as que enformaram as revoluções norte-americana e francesa.
Ligado ao movimento insurrecional de 1817, acabou por cumprir pena de prisão
em cárceres de Pernambuco e da Bahia, desse ano até 1821. Em liberdade, abraçou novamente a pregação ideológico-política, envolvido que esteve nos desdobramentos da política pernambucana de então: o movimento de Goiânia, a junta governativa de Gervásio Pires Ferreira, as simpatias/antipatias às Cortes de Lisboa e a Pedro I, a Junta dos Matutos e, por fim, o governo de Manuel Paes de Andrade, antes e durante a Confederação do Equador (Brito, 1937; Melo, 2022; Mello, 2024). A partir de 1822, Caneca (2024) ingressou vigorosamente na luta ideológica, escrevendo, entre outros trabalhos, a Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria, as Cartas de Pítia a Damão e, de forma especial, um conjunto de artigos no jornal Typhis Pernambucano, além de alguns pareceres sobre decisões importantes que o governo revolucionário tinha de tomar.
Ao condenar as nascentes absolutistas da Constituição de 1824, Caneca (2024, p. 636) considerou o Poder Moderador como “a chave-mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos”. E tornou-se o torniquete político-ideológico a verberar a ascensão do absolutismo e do centralismo, que via tanto em Pedro I quanto em José Bonifácio.
Padre Mororó
O padre Mororó (Nobre, 1973; Chacon, 1983; Montenegro, 1985; Brígido, 2009; Moraes, 2022) foi a personalidade mais ilustrada da Confederação do Equador no Ceará, e foi o primeiro dos cinco mártires levados ao sacrifício no Campo da Pólvora, hoje Passeio Público, em Fortaleza, em abril e maio de 1825. Sacerdote e jornalista, era latinista, pregador sacro, jurista e botânico.
Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque e Melo, a que se acresceu o Mororó por conta do nativismo presente nos anos 1820, nasceu no Riacho do Guimarães, hoje município de Groaíras, Ceará, em 24 de julho de 1778, e morreu em 30 de abril de 1825. Estudou no Seminário de Olinda, ordenando-se sacerdote em 1802. Em Olinda, conviveu com, entre outros, o padre Miguelinho, o padre João Ribeiro e o frei Caneca, todos difusores das ideias iluministas e do sentimento nativista, concretamente aflorados, sobretudo, com a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, em 1824.
A seu tempo, Mororó liderou a reação da Câmara de Quixeramobim (Ceará) contra o fechamento da Assembleia Constituinte, reação tal que, no dia nove de janeiro de 1824, considerou decaída a dinastia dos Bragança e proclamou a república, conseguindo, na sequência, a adesão das Câmaras do Icó e do Crato ao movimento republicano.
Mororó secretariou a sessão do Grande Conselho, em que, no dia 26 de agosto de 1824, se proclamou a república na Província do Ceará bem como a adesão à Confederação do Equador. Todavia, o seu papel mais destacado foi na criação do talvez primeiro jornal impresso da Província do Ceará, o Diário do Governo do Ceará, o periódico bissemanal que funcionou como o porta-voz da Confederação do Equador no Ceará.
Typhis Pernambucano
No Typhis inaugural, aponta-se o objetivo fundamental do periódico: “O teu Typhis te apontará as ciladas, os bósforos, as sirtes; te notará os perigos até onde se estender o horizonte da sua vida; ele subirá o mais elevado tope da tua gávea sem mudar a cor do rosto”. Considerando que é “um direito natural e inalienável de qualquer cidadão, seja qual a forma de governo em que se vive, o exame e o juízo dos fatos públicos, sem que sirva de égide a alguém a graduação, a classe, a jerarquia e a autoridade”, o Typhis se propõe examinar “se aquele decreto dissolutório da assembleia constituinte estriba sobre fatos e razões dignas do arbítrio, que se tomou, e que justifiquem uma medida tão extraordinária, e acima da esperança de todo o Brasil, América e Europa” (Caneca, 2024, p. 337 e 338).
Na continuidade, Caneca (2024, p. 340) labora incansavelmente no sentido de, no plano das ideias, falsificar os argumentos que foram verbalizados pela monarquia para dissolver a Assembleia Constituinte, mesmo tendo o cuidado de salvaguardar a pessoa do imperador.
O Decreto de 12 de novembro apresentado à Assembleia baseia a sua dissolução no ter ela “perjurado o juramento tão solene, que prestou à nação, de defender a integridade do Império, sua independência e a dinastia”. O Typhis n. 1 propõe um conjunto de questões cujas respostas são desenvolvidas nesse e nos números posteriores.
A Comissão Militar, presidida por Francisco Lima e Silva e criada para processar e julgar “muito sumária e verbalmente os chefes da insurreição e rebeldia havida na província de Pernambuco, de que era principal cabeça Manuel de Carvalho Paes de Andrade”, arrolou, entre outros réus, Caneca, “como escritor de papeis incendiários”, sob a acusação de crime de rebelião (Caneca, 2024, p. 689). Afinal, a sentença consignou que muito contribuiu para a criminalidade do réu “o que ele publicou no periódico Typhis […], a cuja incendiária doutrina se refere em suas respostas” (Caneca, 2024, p. 722).
O Diário do Governo do Ceará
Durante muito tempo, considerou-se perdida a maior parte dos números do Diário do Governo do Ceará, levado em conta, sobretudo, o fato da queima de arquivos procedida por força de determinação do presidente José Félix de Azevedo e Sá, substituto de Tristao Araripe. Vai senão quando, o esforço de pesquisa encontrou todos os números no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Levada de roldão a presidência de Tristão Araripe, seguida do seu assassinato em 30 de outubro de 1824, a repressão abateu-se não somente em relação ao redator do Diário, o padre Mororó, Preso, conduzido ao Rio de Janeiro e reconduzido a Fortaleza, Mororó acabou condenado à morte, por enforcamento (depois comutado em arcabuzamento), pela Comissão Militar presidida por Conrado Jacob Niemeyer, acusado que foi principalmente dos crimes de: a) ter proclamado a república em Quixeramobim; b) ter servido como secretário do presidente Tristão Araripe; c) ter sido o redator do Diário do Governo do Ceará (Nogueira, 1894).
Consta que o governo imperial exigira da comissão militar que fossem supliciados cinco dos chefes do movimento, e que neste número entrara o padre Gonçalo. O seu nome, tinha sido enviado por Pedro José da Costa Barros a Clemente Ferreira França. Seu inimigo político, Costa Barros, fugaz presidente da Província do Ceará, encareceu a aplicação da pena de morte a Mororó, “esse malvado padre […], o redator das célebres folhas do Ceará, que tão descaradamente se afoitou sempre a insultar a sagrada pessoa de S. M. o imperador, aleivosamente em seus péssimos escritos”, “demônio [que] foi o autor da república de Quixeramobim, e da sua abominável e execranda ata” (Brígido, 2009, p. 24).
Considerações finais
Caneca e Mororó: ambos personagens substantivos da Confederação do Equador, o primeiro pela palavra e pelas armas, o outro, pela palavra; ambos sentenciados por crime de lesa-majestade, em que pesou nomeadamente as suas atividades jornalistas, o primeiro, editor do Typhis Pernambucano, o outro, editor do Diário do Governo do Ceará, ambos arcabuzados, um em janeiro, o outro em abril, do ano de 1825; ambos liberais, federalistas e nacionalistas; ambos juristas políticos que, contrastando a visão centralizadora do constitucionalismo do Rio de Janeiro, propuseram outro constitucionalismo, este federalista.
Na verdade, os dois publicistas, à frente dois periódicos, procederam a profunda e arrasadora crítica ao constitucionalismo contrário às tendências liberais da dissolvida Constituinte de 1823. Tal crítica recrudesceu nomeadamente com a outorga do texto que acabou por seu jurado pelo imperador em 24 de março do ano seguinte. Em grande medida, a dissolução da Assembleia Constituinte e a introdução do poder moderador no novel constitucionalismo brasileiro acabaram por alastrar o inconformismo e suscitar a reação armada em busca do Estado constitucional e da autonomia provincial. Reação armada tal que não tinha sentido separatista, mas fundamentalmente federativo.
Enfim, e acima de tudo, Caneca e Mororó possibilitaram o surgimento de uma teoria do poder constituinte e da constituição capaz de transcender o seu tempo e funcionar como farol a iluminar a busca da completude da Independência e a tentativa de realizar a república, a democracia e o Estado de Direito.
Referências
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