ESCUDO CONTRA BOLSONARISTAS

STF interrompeu processo de erosão da democracia e preveniu golpe de Estado, diz Clève

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30 de junho de 2025, 8h53

O Supremo Tribunal Federal interrompeu o processo de erosão da democracia impulsionado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e preveniu a ocorrência de um golpe de Estado. É o que afirma o advogado Clèmerson Merlin Clève, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná e do UniBrasil Centro Universitário.

O advogado Clèmerson Merlin Clève

“O patético ensaio de 8 de janeiro permanecerá para sempre na memória nacional como o dia da infâmia. A sociedade brasileira reconhece o sólido compromisso da Suprema Corte com a democracia constitucional”, afirma. O tribunal julga ações penais contra Bolsonaro e aliados envolvidos na trama golpista.

Governos de tendência autoritária costumam atacar o Judiciário. Tanto que o STF era um dos alvos principais da tentativa de golpe de bolsonaristas. O segundo governo de Donald Trump é o mais novo exemplo disso, com constantes ataques a magistrados e tribunais e até desrespeito a decisões judiciais.

Clève observa que o Legislativo é primeiro órgão a ser calado ou dissolvido nos golpes de Estado. Já nos processos contínuos de erosão democrática, o Judiciário é a primeira vítima.

“Sofre ataques constantes, são anunciadas medidas para restringir a sua atuação por meio da intimidação, para modificar a sua composição e o modo de investidura de seus membros ou talhar as suas competências. A isso somam-se as iniciativas de captura da instituição por meio da concessão de indevidas benesses”, avalia, destacando que a independência judicial está em risco em todo o mundo em função do avanço do extremismo de direita e do populismo em geral.

Clèmerson Clève acaba de lançar o livro A democracia constitucional e seus descontentes (Editora Fórum), coletânea de textos decorrentes de conferências e palestras feitas no país e no exterior. Na obra e em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, o professor analisa a persistente crise política brasileira, examina os embates entre os três poderes e aponta como o Supremo protegeu a saúde pública, a ordem federativa e democrática e os direitos das minorias durante a epidemia de Covid-19.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Como a “lava jato” e o ex-presidente Jair Bolsonaro contribuíram para a crise das instituições brasileiras?
Clèmerson Clève
A “lava jato”, com seus erros e acertos, certamente contribuiu para a deflagração da crise política que acompanha até hoje a sociedade brasileira. O combate à corrupção cobra o seu preço, e a amplitude da operação, além do seu peculiar modus operandi, estendeu um indevido manto de suspeição sobre toda a classe política. O Supremo, nesse ponto, teve um papel decisivo no sentido de colocar as coisas nos seus devidos lugares e, nesse processo, acertou muitas vezes, mas também errou, com a vantagem de errar por último.

Mas a crise, a sensação de desconforto que contagiou a república, colocando em questão a legitimidade do sistema político brasileiro, nasce antes, com os movimentos de contestação de 2013, seguindo com o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, com a “lava jato” e se aprofundando com a posse de Bolsonaro. O desnudamento da corrupção sistêmica e o desvio de poder do Sistema de Justiça, a exigência de serviços públicos de qualidade (“padrão Fifa”, pediam os manifestantes) e o desarranjo político abriram caminho para a crítica simplória, direta e maliciosa às instituições, aos partidos políticos, aos poderes da república e aos seus ocupantes. Contexto dessa natureza constitui terreno fértil para a emergência de autocratas, populistas, extremistas radicais de direita ou de esquerda.

Entre nós, a extrema direita distorceu a linguagem das ruas, armou-se de tecnologia de comunicação agressiva, disseminou a mensagem de combate ao sistema político e venceu a eleição presidencial de 2018. O novo governo, tão logo tomou posse, procurou armar a população, promoveu valores excludentes e adotou pauta de costumes que, mais do que conservadora, era nitidamente reacionária. É preciso reconhecer que a emergência da extrema direita no Brasil, tal como nos Estados Unidos, revelou um grupo de pessoas antes subestimado que, compartilhando ressentimento e mundividência distorcida, não se via representada no e pelo corpo político.

O ex-presidente, manifestando ímpetos autocráticos e desrespeito à liturgia do cargo e à linguagem normativa que orienta a ação governamental, inaugurou um período de grave tensionamento político e de conflito entre os poderes. Imaginou, inicialmente, que a gramática da guerra, a prática de empurrar deputados e senadores contra a parede, poderia constituir modo de governar. Sob o risco de sofrer impeachment, mal superado o primeiro ano de governo, operou surpreendente giro, formando aliança com o antes renegado grupo de parlamentares conhecido como Centrão, garantindo, assim, apoio suficiente para se manter no cargo.

As críticas antes endereçadas ao Congresso foram, então, desviadas para o STF, para as urnas eletrônicas adotadas pela Justiça Eleitoral e, durante a pandemia, para os prefeitos e governadores. Formado em escola militar, Bolsonaro desconhecia as virtudes da interlocução, da troca de ideias e de argumentos para o convencimento e a formação de acordo negociado. Adotou o idioma da luta, da imposição, da intransigência, da violência verbal. Esteve sempre levantando armas contra esta ou aquela autoridade, contra o Judiciário, contra os direitos de alguma minoria ou algum moinho de vento. Manteve mobilizada, assim, uma parcela da sociedade que o apoiava, mostrando assustadora habilidade na utilização das redes sociais para a propagação da desinformação, de meias verdades e das mentiras inteiras. Agravou, ademais, a crise pandêmica em virtude de ações e de omissões criminosas, de modo que esta, a pandêmica, se somou à crise política que contaminava o país há algum tempo.

ConJurQual foi o papel do Supremo Tribunal Federal durante a pandemia de Covid-19?
Clèmerson ClèveIniciada a pandemia, medidas urgentes precisariam ser tomadas pelo poder público. E elas certamente implicariam certa restrição ao exercício da liberdade, dos direitos de reunião e associação, de locomoção, enfim, de alguns dos mais caros direitos fundamentais. Em circunstâncias dessa natureza, a história constitucional adverte, a instância normativa precisa regular a realidade fática, a situação de necessidade, sob pena de os fatores reais do poder assumirem a condução do país usurpando a soberania, fomentando o autoritarismo e o estado de exceção. O momento era propício para isso e, num período de emergência de experiências iliberais no mundo, a atenção precisava ser redobrada.

O contexto fomenta, além disso, a ressurgência do mito da bondade do modelo centralizador, segundo o qual só é possível enfrentar a crise sanitária por meio de um comando unificado. O Canadá, democrático e plural, desmente a tese. No caso brasileiro, a centralização do comando não era reivindicada para racionalizar a gestão das políticas de combate à pandemia, mas, antes, para evitá-la, para conferir a ela o tratamento que o presidente sugeria todos os dias, inclusive pelos meios de comunicação. Tratava-se, então, de uma espécie de curioso autoritarismo, operado, sobretudo, através da omissão, da negação e da indiferença. O aprofundamento da tragédia, afinal, poderia trazer dividendos políticos.

O deslocamento autoritário do governo foi contido, felizmente, pela resistência da sociedade civil, da imprensa e pelo contrapoder exercido pelos órgãos constitucionais de controle horizontal. O polêmico e excepcional inquérito instaurado pela Suprema Corte, com fundamento em interpretação especiosa do artigo 43 do seu Regimento Interno, para investigar os ataques à instituição perpetrados por grupos antidemocráticos (extremistas reivindicando uma intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo), surtiu efeito. O chefe do Executivo, em face da forte resistência, preferiu restringir o caminho da colisão frontal e direta com os demais poderes. Continuou, todavia, com o trabalho de conspiração e erosão das bases da democracia constitucional.

Foram vários os modelos normativos de combate à epidemia adotados pelo mundo ocidental. O Brasil criou modelo próprio, fazendo uso da legislação vigente (artigos 131 e 268 do Código Penal), da interpretação conforme de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), com a decretação de calamidade pública para autorizar os gastos do poder público imprevistos com a epidemia, nos termos da LRF, e a aprovação de atos legislativos, inclusive complementares, e de emendas constitucionais voltadas ao referido enfrentamento.

O então presidente da República [Jair Bolsonaro], aproveitando-se da situação, pretendeu adotar figurino de administração centralizada e unilateral das providências contra a crise, no que foi, em boa hora, impedido pelo STF, que reconheceu as competências constitucionais comum e concorrente para o tratamento da matéria. Com erros e acertos, com cautela extremada ou ações exorbitantes no início, foram, sobretudo, os estados e os municípios que adotaram as medidas indispensáveis, colocando-se na linha de frente da luta.

O STF, porém, não ficou apenas nisso. Ele esteve, todo o tempo, consciente da gravidade da tribulação pela qual o país passava. Vê-se, inclusive, que, nos períodos mais preocupantes, a conhecida divisão do Supremo, um arquipélago de ilhas quase soberanas, deu origem a uma atuação concertada dos ministros. Um novo Supremo, unido e convergente, emergiu durante o período de enfrentamento da crise política agravada pela crise sanitária.

Os manuais de Direito Constitucional apontam as funções básicas da jurisdição constitucional. Entre elas, a de proteger o pacto federativo, a de garantir a efetividade da normativa constitucional e dos pressupostos da democracia e a contramajoritária, sobretudo em defesa das minorias. O STF, sensível às exigências da circunstância, exerceu judiciosamente as três.

ConJurQuais foram as principais decisões do STF para proteger a saúde pública, a ordem federativa e democrática e os direitos das minorias durante a epidemia de Covid-19?
Clèmerson ClèveAlgumas das principais decisões da assim chamada “jurisprudência da crise” foram a ACO 3.363, permitindo, em medida cautelar, o não pagamento das parcelas das dívidas estaduais e a utilização dos recursos correspondentes para o combate à epidemia (a ação perdeu objeto diante da aprovação da EC 106/2020 cuidando do orçamento de guerra); a ADI 6.357, autorizando o poder público, a partir de inédita interpretação conforme de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, a fazer gastos não previstos na lei orçamentária; a ADPF 672, onde se reconheceu a competência dos estados e municípios para a adoção de medidas necessárias para o combate à epidemia; a ADI 6.351, suspendendo a eficácia da Lei de Acesso à Informação que contrariavam as exigências constitucionais relativas à publicidade e transparência; a ADPF 635, com medida liminar proibindo as operação da polícia militar em favelas do Rio de Janeiro, preservando vidas, sobretudo de pessoas jovens, pobres e negras; a ADPF 669, com liminar proibindo a campanha publicitária do governo federal intitulada “O Brasil não pode parar”, veiculando mensagens não condizentes com a gravidade da crise pandêmica; e a ADPF 709, na qual foi concedida medida cautelar determinando a instalação de barreiras nos acesso às terras indígenas e a criação de sala de situação para o acompanhamento dos programas de proteção aos povos originários.

Além das decisões apontadas e de outras mais, o Supremo providenciou a alteração do seu Regimento Interno para autorizar a atuação colegiada por meio remoto (Plenário Virtual), permitindo, naquele momento, presteza e celeridade na apreciação dos temas urgentes levados a julgamento. A medida, compreensível e útil durante a epidemia, foi, depois, infelizmente, autorizada em caráter permanente. Como se vê, o STF esteve à altura do grave padecimento que a sociedade brasileira experimentou, demonstrando, sempre, rara sensibilidade e adequado senso de responsabilidade no enfrentamento da tragédia causada pela propagação do novo coronavírus.

ConJurComo avalia o inquérito das fake news, do STF?
Clèmerson ClèveO governo Bolsonaro aprofundou a crise política que o país sofria já há alguns anos, promovendo um contínuo esgarçamento da democracia constitucional. O horizonte político ficou contaminado pelos sucessivos ataques às instituições republicanas, ao Congresso Nacional e, sobretudo, ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior Eleitoral, inclusive aos seus membros, e às urnas eletrônicas. O regime democrático corria risco de ruptura. Os ministros e seus familiares eram, frequentemente, hostilizados em lugares públicos. A incivilidade tomava conta da esfera política.

Diante da ofensiva do presidente e dos seus apoiadores, da omissão das autoridades públicas, possivelmente comprometidas com aquele, e da indiferença do Congresso Nacional e do procurador-geral da República, coube à Suprema Corte a dura tarefa de defender a integridade da normativa constitucional levantando a bandeira da democracia defensiva.

Em 2019, a Suprema Corte instaurou, por iniciativa do ministro Dias Toffoli, seu presidente, com fundamento no artigo 43 do Regimento Interno, interpretado com dose superlativa de imaginação, inquérito (Inquérito 4.781) para investigar os ataques praticados contra os membros da instituição e a ela própria. A portaria autorizadora da instauração, pobremente redigida, não definiu com precisão, objeto e prazo da investigação. Foi designado como relator o ministro Alexandre de Moraes. Como o poder de polícia da corte reside em mãos do seu presidente, e ele, na forma do regimento, está autorizado a delegá-lo, não era caso de sorteio, mas antes de designação (em virtude de delegação).

O inquérito rendeu novos rebentos. O STF o tem como constitucional. De fato, havia, na ocasião, fortes razões para a iniciativa. A medida do Supremo foi eficaz, tendo cumprido a sua função. A corte sobreviveu aos ataques sofridos e o país, felizmente, ao triste e patético ensaio de golpe do 8 de janeiro.

O inquérito, todavia, conquanto eficaz, tem sido alvo de questionamentos. Argumentam os críticos que nem sempre foi acompanhado pelo Ministério Público, o dominus litis. Nas investigações, medidas coercitivas foram decretadas de plano, algumas de ofício, outras de modo desproporcional e por tempo indeterminado, sem a oitiva da parte interessada, merecendo atenção, igualmente, a dificuldade de acesso aos autos, mesmo pelos advogados constituídos, dificultando a defesa.

Assim como defendo a legitimidade da investigação diante da situação excepcional pela qual a república passava, imagino agora que, passado o vendaval, é tempo de concluí-la. O inquérito já cumpriu a sua função. O ‘estado de exceção judicial’ (a expressão é dura, mas, embora inevitável, é disso que se trata) não pode durar indefinidamente. Aquilo que estava legitimado, com o passar do tempo vai se desconstitucionalizando. O Supremo obteve inegável êxito nas tarefas de proteger os seus membros e preservar o regime democrático, desenvolvendo um hercúleo trabalho de defesa das instituições republicanas. É, provavelmente, um caso único no mundo. A sociedade brasileira, reafirme-se, deve muito à Suprema Corte. Agora, todavia, passados seis anos da instauração do inquérito, prevenido o golpe, oferecida denúncia contra os conspiradores, é tempo de aprofundar a sua legitimidade e retomar a normalidade constitucional. Cumpre, afinal, não esquecer que é a dimensão da dose que aparta o remédio do veneno.

ConJurQual é o atual estado da separação dos poderes no Brasil? Como avalia os embates entre Executivo, Legislativo e Judiciário?
Clèmerson ClèveA crise política que acompanha o país há mais de uma década aguça o atrito entre os poderes. O país testemunhou, no período, um impeachment presidencial, dois presidentes respondendo criminalmente perante o STF, a mudança da jurisprudência do Supremo em relação à sua competência por prerrogativa de função, parlamentares sendo investigados em casos de corrupção, o Congresso procurando, por meio da aprovação de emendas à Constituição, defensivamente, interferir na competência da Corte Suprema, isso para não falar na mudança de configuração do nosso presidencialismo que, depois da nova lei fundamental, diante da fragmentação da representação partidária no Congresso reclamando coalizão, se transforma em outro tipo de governo presidencial implicando o avanço da importância do Poder Legislativo, particularmente em decorrência da introdução das emendas impositivas. Não estamos experimentando, ainda, um presidencialismo congressual, mas a verdade é que no processo de expansão dos poderes, a parte perdedora tem sido o Executivo.

A separação de poderes desafia uma leitura menos enquanto modelo de rígida divisão de funções e mais como desenho dinâmico de distribuição de competências ou atribuições dotado de fronteiras e não de simples linhas definitivas de demarcação territorial. É possível ver dentro das faixas fronteiriças a disputa entre os poderes pela autoridade decisória como natural e inevitável. O que a imprensa muitas vezes toma por crise entre os poderes pode consistir em dinâmica de legitimação decisória numa democracia multipolar e de muitas vozes, envolvendo a busca do reconhecimento da autoridade ou do consenso através do diálogo institucional que nem sempre é harmonioso, podendo mesmo ingressar no campo adversarial.

Algumas vezes, as contestações envolvem autoridades de um mesmo poder. É o que vemos por exemplo nas disputas entre a Funai e o Incra ou entre o Ibama e a Agência Nacional de Petróleo. Outras vezes, a disputa se manifesta entre os poderes Executivo e Judiciário, o Executivo e o Legislativo ou entre o Judiciário e o Congresso. Nas duas últimas situações, o processo de produção normativa pode substanciar meio utilizado para contestar determinada decisão do Executivo ou do Judiciário. Vê-se com frequência o manejo do processo legislativo para confrontar decisões do STF, o que reclama desde a apresentação de projetos de lei até propostas de emenda constitucional vocacionadas a rever o modo de decidir da corte.

Nesses tempos, importa a afirmação, pelos órgãos constitucionais, de uma disposição para a vigilância permanente orientada ao bloqueio dos abusos, mesmo de boa-fé, cometidos pelos demais. E, ao mesmo tempo, de um vigoroso propósito voltado à cooperação em busca do consenso ou, diante das diferenças, da negociação para a obtenção de solução compromissória. Não à toa, o STF vai aceitando, mesmo no exercício do controle de constitucionalidade, a possibilidade de conciliação, algo impensável no passado.

ConJurO senhor afirma no livro que, desde a Constituição de 1988, o STF tem se fortalecido progressivamente. Por que isso ocorre? E quais os impactos disso para o Brasil?
Clèmerson ClèveApós a promulgação da Constituição, a competência do Supremo cresceu de maneira exponencial quando contrastada com aquela exercida anteriormente, tendo sido, diante do inevitável processo de evolução jurisprudencial ou em virtude de reforma constitucional, ampliada com o passar do tempo. Nesse contexto, a sociedade brasileira tem testemunhado o fortalecimento progressivo da Suprema Corte. Isso ocorre em virtude da natureza sensível de inúmeras questões levadas à corte, das alterações constitucionais e legislativas que inauguraram a possibilidade de atribuição de efeitos gerais ou vinculantes, eventualmente também transcendentes em razão dos motivos determinantes, às suas manifestações decisórias, inclusive cautelares. Outro fator é a modelagem dos seus efeitos e o manejo de novas técnicas de decisão, especialmente no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade. Ou, ainda, em razão das decisões, de ofício ou provocadas, adotadas no âmbito das crises da epidemia ou política derivadas das ameaças à democracia oferecidas por um governo orientado pelo projeto de erodir as bases constitucionais do Estado Democrático de Direito.

Em matéria de controle de constitucionalidade, verifica-se uma convergência paulatina entre os modelos americano (controle difuso incidental) e europeu (controle concentrado-principal). Afinal, ambos se prestam para a proteção dos direitos fundamentais, manifestando-se uma lenta dissolução da distinção entre os processos subjetivo e objetivo e a gradual objetivação do processo subjetivo seguida da progressiva subjetivação do processo objetivo. Em ambas as situações, é inegável a ocorrência de verticalização da jurisdição constitucional com o consequente fortalecimento do seu papel no contexto da arquitetura constitucional de poderes divididos.

Outros fatores que contribuem para esse cenário são o amplo leque de legitimados ativos à provocação da fiscalização abstrata de constitucionalidade; a renovada jurisprudência sobre a ação direta de  inconstitucionalidade por omissão e sobre o mandado de injunção; a ação declaratória de constitucionalidade; e a promulgação das Leis 9.868 e 9.882, ambas de 1999, e a consequente disciplina da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Não pode passar em branco a Emenda Constitucional 45/2004, que instituiu a súmula vinculante e a decisão com repercussão geral nos recursos extraordinários. Esboça-se, inclusive, um quadro a autorizar a revisão ou, no limite, o que foi recentemente decidido em matéria tributária, a superação da coisa julgada em função de novo paradigma constitucional decorrente de decisão dotada de efeitos vinculantes.

Em síntese, essa é a crônica da ascensão institucional do Supremo Tribunal Federal a um lugar de protagonismo indiscutível na dinâmica das relações entre os poderes. O Supremo, hoje, se não for a mais, é, certamente, uma das mais poderosas cortes constitucionais do mundo. Quais os principais impactos para o país? Creio que a leitura dos jornais, considerando o número de vezes que a corte e seus ministros aparecem neles estampada, responde à pergunta.

ConJurNo livro, o senhor afirma que, passada a crise, o Supremo deve se conter e sofrer algumas alterações. Como deve ser o Supremo do futuro?
Clèmerson ClèveNão teço nenhuma crítica à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.  A corte sabe o que fazer e, no geral, faz bem. A contenção à qual eu me refiro diz respeito, exclusivamente, ao indispensável papel por ela exercido no contexto da crise política. Ora, os ensaios de conspiração foram habilmente debelados, e os responsáveis estão sendo julgados. Talvez seja hora, como disse antes, de encerrar o período de jurisprudência de exceção retomando, o Supremo, o exercício da jurisdição num quadro de normalidade política e institucional.

A corte poderia refletir sobre algumas disfuncionalidades que podem macular o seu desenho institucional. Há um déficit de colegialidade. Uma das mais sérias disfunções consiste no inaceitável poder conferido aos seus membros para resolver soberanamente questões de alta relevância sem levá-las ao colegiado ou levando-as com os efeitos consumados ou irreversíveis diante da repercussão que alcançaram. A república instituiu um Supremo, não onze. A apontada prática incomoda os jurisdicionados, autorizando arbitrária percepção de parcialidade do tribunal.

Outras disfuncionalidades envolvem o controle da agenda, o modelo de definição da pauta e de funcionamento do Plenário virtual. Em relação ao controle da agenda, diferir o tempo do pronunciamento quando há interesse estratégico, julgar um agora instrumentalizando caso antigo para interferir no debate público ou atropelar possível decisão de outro órgão constitucional pode significar mais do que simples judicialização da política, um desvio em direção à politização do Judiciário.

O Plenário virtual, por outro lado, aprofunda os problemas do Plenário físico. O déficit deliberativo é grave no virtual. Os ministros votam em tempos distintos, sem debate, sem interação e confrontação contemporânea de argumentos e, portanto, sem a manifestação de robusta deliberação. A autoridade do Judiciário não provém de sua força, mas da credibilidade construída todos os dias, e aqui o Plenário virtual não ajuda muito.

Cumpriria, então, ao Supremo do futuro se mostrar aberto à discussão das apontadas disfuncionalidades. O STF presta um valoroso serviço. Mas a bondade do exercício da jurisdição constitucional não lhe confere escusa para repelir o esforço de aperfeiçoamento. O que pedem os jurisdicionados não é a diminuição do tribunal, mas, antes, a sua grandeza. E a sua grandeza reclama o agir com imparcialidade, deliberando vigorosamente nos casos difíceis, especialmente nos feitos envolvendo a fiscalização da constitucionalidade, isso tudo enquanto órgão constitucional de indisputável importância, composto por magistrados respeitados que bem conhecem a sua missão.

ConJurGovernos de tendência autoritária costumam atacar o Judiciário. O segundo governo de Donald Trump é o mais novo exemplo disso. A independência judicial está em risco no mundo?
Clèmerson ClèveNos golpes de Estado clássicos, o primeiro órgão constitucional calado ou dissolvido é o Legislativo. Já nos processos contínuos de erosão democrática, o Judiciário é a primeira vítima. Sofre ataques constantes, são anunciadas medidas para restringir a sua atuação por meio da intimidação, para modificar a sua composição e o modo de investidura de seus membros ou talhar as suas competências, somando-se a essas as iniciativas de captura da instituição através da concessão de indevidas benesses.

A independência judicial está em risco em todo o mundo em função do avanço do extremismo de direita e do populismo de qualquer feição política. Como o Judiciário independente é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, a sociedade civil deve ficar atenta aos eventuais movimentos corrosivos, mesmo quando aparentemente irrelevantes, porque, em geral, eles não terão solução de continuidade.

Em 1978, durante a ditadura militar, a VII Conferência Nacional dos Advogados, em Curitiba, reivindicou a anistia, o restabelecimento da democracia e a convocação de uma constituinte. Na abertura do evento, o inesquecível Raymundo Faoro acrescentou que, a essas bandeiras, deveria ser somada a luta pela independência do Judiciário. Sem ela, dizia com absoluta razão, não se sustenta o Estado Democrático de Direito. Quem discordará da sábia lição de Faoro?

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