Poder Moderador: um poder irresponsável?
30 de junho de 2025, 12h12
“De fato, as ideias expressam sentido a partir do momento e do lugar em que foram formuladas, para além do conjunto de conhecimentos manejados pelo autor.” Assim pronunciou-se Elide Rugai Bastos [1], a propósito de estudo crítico sobre Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, enfatizando que, dois anos antes de sua primeira e segunda edições (1936 e 1948), sobrevieram duas constituintes, em 1934 e 1946.

Mas volto no tempo mais ainda. O Império conviveu 65 anos com uma única Constituição, outorgada em 25 de março de 1824. À época, vivia-se às voltas com uma preocupação maior para a divisão e o equilíbrio entre os Poderes.
Vigoravam — expõe Luciene Dal [2] — dois paradigmas. Um deles enfocando o desenvolvimento de mecanismos internos, aliados ao jogo de freios e contrapesos. Outro, inclinando-se para a consideração de um poder específico, destinado à salvaguarda da constituição e do equilíbrio dos demais poderes.
Em termos de constituições escritas, tinha-se, à América do Norte, o modelo do checks and balances, consagrado pela Constituição de 1787, provavelmente com a influência de Hamilton ou Madison, a qual se encontrou posteriormente expressa no Capítulo LI de O Federalista [3]. No continente europeu, a Revolução Francesa deu azo a um cenário de forte instabilidade, iniciado pela Constituição de 3 de setembro de 1791, com os desvirtuamentos seguintes, até uma aura de calmaria com o retorno dos Bourbons, seguindo-se a promulgação da Carta Constitucional de 4 de junho de 1814, em que se fez sentir o pensamento de Benjamin Constant do poder neutro (pouvoir neutre), agora adaptado à monarquia constitucional.
Incompatibilidade do Poder Moderador com a monarquia constitucional
Atento a esse cenário, e seguindo a influência de Constant, a Constituição de 1824 contemplou o poder moderador (artigos 98 a 101) [4], porventura o mais característico e controvertido dos seus institutos, e, por isso, não poderia deixar de galvanizar a crítica dos publicistas, sendo o Curso Jurídico do Recife centro de irradiação de tais debates.
Uma delas, qual seja Da Natureza e Limites do Poder Moderador, foi publicado anonimamente em 1860. A suspeita, correta aliás, de sua autoria como sendo de Zacarias de Góis e Vasconcelos, foi de Teófilo Ottoni. Se não a primeira, sem dúvida a que maior repercussão granjeou, consoante Gláucio Veiga:
“Explodiu o tema do Poder Moderador como questão tormentosa em todo País, principalmente, após a publicação do opúsculo de Zacarias, que passou a ser denominado ‘o livro de ouro’. A monografia de Zacarias foi ‘best seller’” [5].
Com exitosa carreira política nas fileiras do Partido Conservador, Zacarias bacharelou-se em Olinda em 1837, sendo nomeado lente substituto em 1841, após aprovação em concurso, tendo sido em 1855 o primeiro ocupante da cátedra de Direito Administrativo, jubilando-se em 1859.

No seu juízo sobre o poder moderador, sustentou Zacarias a sua incompatibilidade com a monarquia constitucional, não pelo instituto em si, porém, tal como consagrado pela Constituição Imperial.
Constatou o autor [6] que, diante do somatório das atribuições enumeradas pelo artigo 101 da Constituição de 1824, o exercício do poder moderador constitui a suprema inspeção dos demais Poderes. Daí indagar sobre a participação dos ministros de Estado no seu exercício, defendendo-a.
Isso porque, conforme o artigo 98 do diploma constitucional, o Poder Moderador era privativo do imperador, cuja pessoa, nos termos do artigo 99, não se encontrava sujeita a nenhuma responsabilidade.
Desse modo, afirmou Zacarias que se declarar, num país livre, “irresponsável uma pessoa, a quem se confiam tão transcendentes funções, implicaria grave absurdo, se a sua inviolabilidade não fosse protegida pela responsabilidade de funcionários” [7].
Em seguida, devota-se a desconstruir os argumentos alegados por aqueles que negam a responsabilidade dos ministros em razão do exercício do poder moderador, enumerados num total de quatro.
Ao primeiro deles, forte na circunstância de que a previsão do exercício conjunto somente explicitou a Constituição quanto ao Poder Executivo (artigo 102), aduziu que o delegado privativamente constante do artigo 98, a despeito de explicitar que a delegação é feita a um só, qual seja o monarca, as mais sãs noções de organização política e experiência fazem subtender que é àquele “aconselhado pelas luzes de homens competentes, porque ele não pode saber tudo, e servido por agentes responsáveis, porque é, e para que seja, inviolável e sagrado” [8]. E não somente, pois se a natureza da delegação não impedia a intervenção dos conselheiros de estado com os seus conselhos, acompanhada da responsabilidade por aqueles que os derem opostos às leis e aos interesses do Estado [9], afigurava descabido, sob o pálio do privativo, afastarem-se os ministros da responsabilidade da execução dos atos do poder moderador.
Em segundo lugar, invoca-se que o artigo 132 da Constituição somente determina a referenda pelos ministros dos atos do Poder Executivo, daí se inferir que aqueles não assinam os atos do poder moderador, ou, quando o fazem, é apenas para autenticar o reconhecimento da veracidade da firma imperial.
Refutando, afirmou Zacarias não somente o absurdo da ideia, mas que esta portava duplo inconveniente. A uma, porque descobre a coroa, uma vez o ato do poder moderador, opondo-se às leis ou ao interesse do Estado, e não havendo responsabilidade do executor, aquela fica exposta à discussão e censura. A outra, por rebaixar o ministério, haja vista “atestar que uma assinatura é efetivamente da coroa, mais parece próprio de tabelião que de um funcionário da ordem e categoria de um ministro e secretário de estado nas monarquias constitucionais”, enquanto nas “absolutas, sim, a assinatura ministério só presta para atestar que o ato é do rei, o que não admira, porque aqui o rei absorve tudo” [10].
Numa terceira ordem de ideias, expõe-se que a única responsabilidade admissível seria a dos conselheiros de estado. Tal compreensão, segundo Zacarias, é absolutamente vã, tendo em vista que, decorrente de opiniões, tal responsabilidade deixa de ter lugar quando aquelas estão harmônicas com o interesse nacional. Isso sem passar despercebida a circunstância de que, nos atos do Poder Moderador, muito mais relevantes, o conselheiro que mal aconselhasse seria responsabilizado, enquanto o ministro, na qualidade de executor do ato irrefletido, e nalgumas vezes até criminoso, estaria livre de qualquer punição.
Aqui acresce Zacarias duas considerações, argumentando que esse pensamento ofende a Lei de 15 de outubro de 1827 sobre a responsabilidade dos ministros, secretários e conselheiros de estado, bem assim desmistifica – e aí a heresia – a assertiva de que os atos do Poder Moderador são inofensivos [11].
À derradeira, o argumento consoante o qual a missão reservada ao poder moderador comprometer-se-ia, caso os ministros, a pretexto de serem responsáveis pelos atos do Poder Moderador, tomassem parte neste, pois, exercendo um dos Poderes a serem inspecionados, subtrair-se-iam à fiscalização comum, assumindo uma atitude ameaçadora perante os outros.
Tal não escapou à censura de Zacarias, para quem é infundado esse temor, pois os ministros não são o Poder Executivo, sendo agentes que a coroa nomeia e exonera livremente, motivo pelo qual não se mostra possível que aqueles sejam capazes de alterar posições de dois poderes (moderador e executivo), aos quais servem.
No regime representativo – acentua – há quem vele sobre o poder real ou Moderador, como sobre os demais Poderes, que é a opinião nacional, representada pelas duas Câmaras e pela imprensa.
Por isso, não se admitindo a responsabilidade ministerial, a nação, ao achar atos dignos de reproche, há de atribuir a culpa à coroa, atingindo pela base máxima a inviolabilidade do monarca. Diversamente, se aceita a responsabilidade dos ministros, a opinião pública encontra meios legais
“para reprovar o passado e prevenir o futuro, sem faltar à veneração que deve cercar a pessoa inviolável e sagrada do monarca, a saber: censurando, acusando os ministros por seus maus conselhos à coroa, a qual se supõe outra coisa houvera deliberado, se melhor esclarecida” [12].
A grande questão
A obra, em sua segunda edição, demais de já contar com a indicação de sua autoria, foi mais do que é duplicada em número de páginas. Contudo, o objetivo e argumentação praticamente coincidem em essência, havendo a sua elaboração se tornado impositiva para confrontar livro recém-publicado, pois, segundo Zacarias, urgia-se fazê-lo
“quando uma obra do Sr. Visconde de Uruguai, há tempos ansiosamente esperada pelo Público, saindo à luz em Abril último, com o título de Ensaio sobre o Direito Administrativo, e referindo-se ao meu pequeno trabalho, não só combate ideias que ele contém, mas prometendo pôr termo à gravíssima questão da responsabilidade ministerial pelos atos do poder moderador, que, segundo afirma, até aquele momento não tivera solução definitiva, estabelece com a autoridade do nome do seu autor, as mais estranhas doutrinas” [13].
Ao encerrar, o autor, retirando o disfarce, aponta a grande questão, qual seja se “pode ou não o povo do Brasil reger-se a si mesmo?” [14].
*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
[1] BASTOS, Elide Rugai. Um livro entre duas constituintes. In: Raízes do Brasil. Edição crítica. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 368. Org. MONTEIRO, Pedro Meira; SCHWARCZ, Lilia Moritz.
[2] RI, Luciene Dal. Do pouvoir neutre ao poder moderador: a influência do constitucionalismo inglês no Brasil por meio da teoria de Benjamin Constant, A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, ano 20, nº 79, p. 107, janeiro/março de 2020.
[3] HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. El federalista. 2ª ed. México: FCE, 2001, p. 221. O texto foi publicado no Correio de Nova York em 08 de fevereiro de 1788.
[4] Noticia Lynch não haver o projeto em discussão na constituinte de 1823 contemplado a figura do poder moderador, muito embora o assunto tivesse sido alvo dos debates, principalmente por José Joaquim Carneiro de Campos, futuro Marquês de Caravelas (LYNCH, Christian Edward Cyril. O poder moderador na Constituição de 1824 e no anteprojeto Borges de Medeiros de 1933, Revista de Informação Legislativa, ano 47, nº 188, p. 98, outubro/dezembro de 2010. D. Pedro fez o poder moderador transpor o Atlântico, para figurar na Carta Constitucional de 29 de abril de 1826 (artigos 71º a 74º).
[5] VEIGA, José Gláucio. História das ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1993. Vol. VII, nota de rodapé 19, p. 267.
[6] VASCONCELOS, Zacarias de Góes. 2ª ed. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laembert. 1862, p. 18-66.
[7] VASCONCELOS, Zacarias de Góes. 2ª ed. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laembert. 1862, p. 21-22.
[8] VASCONCELOS, Zacarias de Góes. 2ª ed. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laembert. 1862, p. 25.
[9]Antes de sua revogação pela Lei constitucional nº 6 de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicional), os arts. 142 e 143 da Constituição de 1824 previam a obrigatoriedade da consulta do Conselho de Estado pelo imperador, nos negócios atinentes ao poder moderador, juntamente com a responsabilidade dos conselheiros por ditos conselhos. Restaurado tal órgão pela Lei nº 234, de novembro de 1841, tal responsabilidade foi prevista pelo seu art. 4ªº, não obstante a sua ouvida ter se tornado facultativa.
[10] VASCONCELOS, Zacarias de Góes. 2ª ed. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laembert. 1862, p. 33.
[11] Disse Zacarias: “Querem alguns explicar a exclusão da responsabilidade ministerial do exercício do poder moderador, observando que os atos desse poder, se não são sempre em si mesmos inofensivos, também não dão nunca lugar a crimes caracterizados. Essa observação, porém, deixa de ter valor para quem ler com alguma atenção as diversas atribuições do poder moderador enunciadas em o art. 104, porque nenhuma há de cujo abuso se não possam seguir males mais ou menos graves, sendo que até aquelas, que em aparência são mais inofensivas, pedem o corretivo da responsabilidade ministerial” (VASCONCELOS, Zacarias de Góes. 2ª ed. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laembert. 1862, p. 37). Mais adiante, rematou: “Eu só conheço um poder incapaz de fazer mal: é o poder de Deus. Não há (permita-se a expressão) de telhas abaixo do poder, que não seja suscetível de abusos, e grandes abusos (VASCONCELOS, Zacarias de Góes. 2ª ed. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laembert. 1862, p. 138)”.
[12] VASCONCELOS, Zacarias de Góes. 2ª ed. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laembert. 1862, p. 44-45.
[13] VASCONCELOS, Zacarias de Góes. 2ª ed. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laembert. 1862, p. V-VI. Dentre as vastas linhas, ganha destaque o capítulo XI (Benjamin Constant mal compreendido, p. 164-171), apontando o equívoco em que incorrera o Visconde do Uruguai. Porquanto, para o autor francês, afiançava Zacarias, o poder ministerial é um poder duplamente executivo, seja pelas atribuições próprias, separadas do poder real, seja porque é por seu intermédio que o poder real tudo faz e propõe. Assim, a separação do poder ministerial do poder real não veda – principalmente, na nossa constituição, onde o ministério não é reconhecido como um poder constitucional – que o poder executivo responda pelos atos do poder real. Esse pensar não colide inteiramente com a observação que Duverger fez acerca da Carta Constitucional de 1814. É que, mesmo reconhecendo não estivesse consagrado que o ministério era responsável politicamente perante o Parlamento, posto não estar obrigado a se demitir diante de voto de desconfiança, Luís XVIII permitiu-se aplicar o princípio fundamental do regime parlamentar, afastando dos ministérios aqueles que não mais tivessem a confiança das Câmeras, postura não adotada por seu sucessor, Carlos X, o que provocou a Revolução de 1830 (DUVERGER, Maurice. Droit public. Paris: Presses Universitaires de France, 1968, p. 28).
[14] VASCONCELOS, Zacarias de Góes. 2ª ed. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laembert. 1862, p. 254.
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