Direito de presença: do Tema 438 de repercussão geral do STF
30 de junho de 2025, 6h08
O ordenamento jurídico brasileiro estabelece que, quando o réu é citado por edital e não comparece ao processo nem constitui advogado, devem ser suspensos tanto o processo quanto o prazo prescricional, conforme previsto no artigo 366 do Código de Processo Penal. Contudo, até recentemente, persistia a controvérsia sobre o limite temporal dessa suspensão e a possibilidade de retomada do processo após determinado período.

Essa questão foi definitivamente pacificada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 600.851/DF, com repercussão geral reconhecida (Tema 438), que fixou a tese de que o período de suspensão da prescrição deve ser limitado ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, mantendo-se, contudo, a suspensão do processo até o comparecimento do réu ou constituição de defensor.
O presente artigo analisa os fundamentos dessa decisão e suas implicações práticas para o sistema processual penal brasileiro, evidenciando a prevalência dos princípios do contraditório e da ampla defesa sobre a pretensão punitiva estatal.
Sistemática do artigo 366 do CPP
O artigo 366 do Código de Processo Penal estabelece que “se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”.
A redação atual desse dispositivo, conferida pela Lei nº 9.271/1996, representou significativo avanço na proteção dos direitos fundamentais do acusado, ao impedir o prosseguimento do feito sem que seja assegurado o efetivo exercício da ampla defesa e do contraditório. Anteriormente, permitia-se o julgamento à revelia do acusado citado por edital, em clara violação aos princípios constitucionais que regem o processo penal.
No entanto, o legislador não estabeleceu um limite temporal para a suspensão do processo e da prescrição, o que gerou questionamentos sobre a possibilidade de suspensão indefinida da pretensão punitiva estatal, configurando uma espécie de imprescritibilidade não prevista na Constituição.
Súmula 415 do STJ e sua aplicação
Diante da omissão legislativa, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 415, que dispõe: “O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada”.

Essa orientação jurisprudencial buscou conciliar a necessidade de preservação da pretensão punitiva estatal com a vedação constitucional à imprescritibilidade de crimes, exceto nos casos expressamente previstos no texto constitucional (racismo e ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático).
Contudo, mesmo após a edição da referida súmula, persistia a controvérsia sobre a possibilidade de retomada do processo após o término do prazo máximo de suspensão da prescrição, com nomeação de defensor dativo para o réu ausente.
Tema 438 de repercussão geral do STF
A questão foi definitivamente pacificada pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº 600.851/DF, com repercussão geral reconhecida (Tema 438), que fixou a seguinte tese:
“Em caso de inatividade processual decorrente de citação por edital, ressalvados os crimes previstos na Constituição Federal como imprescritíveis, é constitucional limitar o período de suspensão do prazo prescricional ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, a despeito de o processo permanecer suspenso.”
A decisão do STF abordou dois aspectos fundamentais:
1. Limitação do prazo de suspensão da prescrição: Reconheceu a constitucionalidade da limitação do período de suspensão da prescrição ao tempo máximo previsto no art. 109 do Código Penal, conforme a pena máxima cominada ao delito, em consonância com a Súmula 415 do STJ.
2. Manutenção da suspensão do processo: Determinou que, mesmo após o término do prazo de suspensão da prescrição, o processo deve permanecer suspenso até que o réu compareça em juízo ou constitua advogado.
Fundamentos constitucionais da tese firmada
A tese firmada pelo STF no Tema 438 fundamenta-se em diversos preceitos constitucionais e convencionais:
Vedação à imprescritibilidade
A Constituição prevê expressamente apenas duas hipóteses de crimes imprescritíveis: o racismo (artigo 5º, XLII) e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (artigo 5º, XLIV). A regra geral no ordenamento jurídico brasileiro é a prescritibilidade dos crimes, como forma de limitar temporalmente o poder punitivo estatal.
A suspensão indefinida da prescrição, sem previsão constitucional expressa, configuraria criação, por via infraconstitucional, de nova hipótese de imprescritibilidade, em afronta ao texto constitucional.
Devido processo legal, contraditório e ampla defesa
O prosseguimento do processo penal sem a efetiva participação do réu vulnera as garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, previstas no artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição.
O direito à autodefesa, que integra a ampla defesa, pressupõe a possibilidade de o réu influir efetivamente no convencimento do julgador, o que resta prejudicado quando ele sequer tem conhecimento da existência da ação penal.
Direito à informação sobre a acusação
O artigo 8º, item 2, alínea “b”, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) assegura ao acusado o “direito de comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada”. Esse direito, incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, resta inviabilizado quando o réu é processado sem ter conhecimento efetivo da acusação que lhe é imputada.
Jurisprudência após o Tema 438
Após a fixação da tese no Tema 438, tanto o STF quanto o STJ consolidaram jurisprudência no sentido da impossibilidade de retomada do processo para julgamento de réu citado por edital que não compareceu nem constituiu advogado, mesmo após o término do prazo de suspensão da prescrição.
No julgamento do HC 189.022 RS, a 2ª Turma do STF reafirmou esse entendimento:
“Penal e processual penal. Habeas corpus. 2. Citação por edital e suspensão do processo penal (art. 366, CPP). Tema 438 de Repercussão Geral: ‘Em caso de inatividade processual decorrente de citação por edital, ressalvados os crimes previstos na Constituição Federal como imprescritíveis, é constitucional limitar o período de suspensão do prazo prescricional ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, a despeito de o processo permanecer suspenso’. 3. Após o decurso do prazo referente ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, embora volte a correr o prazo prescricional, deve o processo penal continuar suspenso, se não localizado o réu. 4. Vedação à condenação de réu ausente, se não encontrado após citação por edital. Direito à ampla defesa e ao contraditório assegurados constitucionalmente e direito de ser informado da acusação, previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos. 5. Agravo regimental provido para conceder a ordem de habeas corpus e determinar a manutenção da suspensão do processo penal movido em desfavor do paciente, se não localizado, nos termos da tese de repercussão geral fixada no tema 438 pelo Supremo Tribunal Federal e do art. 366 do Código de Processo Penal” (STF – HC: 189022 RS 0098902-98.2020.1.00.0000, relatora: Cármen Lúcia, data de julgamento: 8/2/2021, 2ª Turma, data de publicação: 10/3/2021).
No mesmo sentido, o STJ decidiu:
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE MOEDA FALSA. ART. 366 DO CPP. SUSPENSÃO DO PROCESSO E DO PRAZO PRESCRICIONAL. SÚMULA N. 415/STJ. TRANSCURSO. CITAÇÃO POR EDITAL. PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE. 1. No julgamento do Recurso Extraordinário n. 600.851/DF, submetido ao regime de repercussão geral, o Supremo Tribunal assentou que, ’em caso de inatividade processual decorrente de citação por edital, ressalvados os crimes previstos na Constituição Federal como imprescritíveis, é constitucional limitar o período de suspensão do prazo prescricional ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, a despeito de o processo permanecer suspenso’. 2. Dessa forma, ’em atenção à segurança jurídica e à fidelidade ao sistema de precedentes qualificados, conclui-se que, passado o prazo enunciado na Súmula n. 415 do STJ, a prescrição voltará a correr, mas o processo não poderá retomar o seu curso até que o réu compareça em juízo ou constitua advogado’. Precedentes. 3. Agravo regimental desprovido.” (STJ – AgRg no RHC: 134313 RS 2020/0234178-6, Data de Julgamento: 16/08/2022, T6 – 6ª TURMA, Data de Publicação: DJe 19/08/2022)
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME AMBIENTAL. ART. 56 DA LEI N . 9.605/1998. CITAÇÃO POR EDITAL. SUSPENSÃO DO PROCESSO E DA PRESCRIÇÃO . ART. 366 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. SÚMULA N. 415 DO STJ . ESGOTAMENTO DO PRAZO MÁXIMO DE SUSPENSÃO. RETOMADA DA PRESCRIÇÃO. MANUTENÇÃO DA SUSPENSÃO DO PROCESSO. ENTENDIMENTO CONFORME TESE FIXADA EM REPERCUSSÃO GERAL PELO STF . AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. Feita a citação por edital, caso o réu não compareça em juízo e nem constitua defensor, serão suspensos o processo e a prescrição, consoante o art. 366 do Código de Processo Penal . Essa última, por sua vez, ficará suspensa pelo período indicado no art. 109 do Código Penal, considerando o máximo da pena cominada ao delito do qual o agente é acusado, nos termos da Súmula n. 415 do STJ. 2 . Conforme tese fixada pelo STF, com repercussão geral reconhecida, “Em caso de inatividade processual decorrente de citação por edital, ressalvados os crimes previstos na Constituição Federal como imprescritíveis, é constitucional limitar o período de suspensão do prazo prescricional ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, a despeito de o processo permanecer suspenso” ( RE n. 600.851/DF, Rel. Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 23/2/2021) . 3. Portanto, em atenção à segurança jurídica e à fidelidade ao sistema de precedentes qualificados, conclui-se que passado o prazo enunciado na Súmula n. 415 do STJ, a prescrição voltará a correr, mas o processo não poderá retomar o seu curso até que o réu compareça em juízo ou constitua advogado. 4 . Na hipótese, o agravante foi denunciado pelo crime do art. 56 da Lei de Crimes Ambientais, cuja pena máxima cominada é de 4 anos de reclusão. O acusado foi citado por edital e o Magistrado de primeira instância determinou a suspensão do processo e da prescrição, nos termos do art. 366 do CPP . Passados mais de oito anos sem que o réu haja comparecido em juízo ou constituído advogado – período previsto no art. 109, IV, do CP -, a prescrição voltará a correr, mas o processo não poderá retomar o seu curso. 5. Agravo provido para determinar a suspensão do processo originário até que o réu compareça em juízo, constitua advogado ou que sua punibilidade seja extinta pela prescrição, o que ocorrer primeiro” (STJ – AgRg no RHC: 139.924 RS 2020/0336486-8, relator.: ministro Rogerio Schietti Cruz, data de julgamento: 20/04/2021, T6 – 6ª Turma, data de publicação: DJe 30/4/2021).
Implicações práticas da tese firmada
A tese firmada pelo STF no Tema 438 traz importantes implicações práticas para o sistema processual penal brasileiro:
1. Quanto à prescrição: Após o término do prazo máximo de suspensão (equivalente ao prazo prescricional previsto no art. 109 do CP, conforme a pena máxima em abstrato), a prescrição volta a correr normalmente.
2. Quanto ao processo: O processo permanece suspenso até que o réu compareça em juízo ou constitua advogado, independentemente do transcurso do prazo de suspensão da prescrição.
3. Quanto à produção de provas: Permanece possível a produção antecipada de provas consideradas urgentes, nos termos do artigo 366 do CPP, como forma de preservar elementos probatórios que poderiam se perder com o decurso do tempo.
4. Quanto à prisão preventiva: Continua viável a decretação de prisão preventiva, desde que presentes os requisitos legais, como forma de assegurar a aplicação da lei penal.
Conclusão
A tese firmada pelo STF no julgamento do Tema 438 de Repercussão Geral representa importante avanço na proteção dos direitos fundamentais do acusado no processo penal brasileiro, ao impedir o julgamento de réu que não teve conhecimento efetivo da acusação, em consonância com os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Ao mesmo tempo, a limitação do prazo de suspensão da prescrição evita a criação de hipótese de imprescritibilidade não prevista na Constituição, equilibrando a proteção dos direitos do acusado com a preservação da pretensão punitiva estatal.
Nesse contexto, a atuação dos órgãos do sistema de justiça criminal deve se orientar pelo respeito aos parâmetros estabelecidos pelo STF, reconhecendo a impossibilidade de prosseguimento do feito para julgamento de réu citado por edital que não compareceu nem constituiu advogado, mesmo após o término do prazo de suspensão da prescrição.
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