Arbitragem e relações acadêmicas: considerações sobre a impugnação de árbitros
30 de junho de 2025, 6h32
O sistema arbitral vem sendo cada vez mais utilizado em diversas áreas. Trata-se de mecanismo heterocompositivo de solução de controvérsias que reúne uma comunidade altamente qualificada, na qual limitado número de profissionais consegue ingressar, consolidar-se e permanecer. Nesse círculo — ainda restrito, sobretudo em razão da confidencialidade e da alta complexidade de muitos casos —, convivem advogados e advogadas de algumas das mais renomadas bancas do país.

Os arbitralistas, grupo seleto e essencial para assegurar a adequada representação das partes no processo, dominam as estruturas do procedimento arbitral, bem como os regulamentos das câmaras arbitrais. Valem-se do direito positivo e de regras, diretrizes e princípios de soft law, a exemplo da International Bar Association (IBA). [1]
Ao lado desses profissionais (patronos das partes), também integram a comunidade arbitral peritos, expert witness, membros de câmaras arbitrais (secretaria geral e case management) e árbitros. O árbitro é um terceiro imparcial, neutro e tecnicamente qualificado, escolhido em regra pelas partes para decidir o litígio.
Algumas câmaras de arbitragem mantêm listas de referência de árbitros compostas por profissionais previamente avaliados, com experiência, formação e reputação compatíveis com a complexidade das demandas. O árbitro deve contar com a confiança das partes [2] e reunir determinadas características e qualificações que assegurem a justiça e a integridade do processo, tais como: independência, imparcialidade, competência técnica, experiência, diligência e comportamento ético.
Atuação da arbitragem
A atuação dos árbitros em um processo arbitral segue, geralmente, um modelo colegiado formando um tribunal composto por três árbitros, comum em disputas mais complexas ou de maior valor. A forma de indicação do árbitro pode variar conforme o regulamento da câmara arbitral ou o que for definido na cláusula compromissória.
Em regra, o requerente (quem inicia a arbitragem) escolhe um árbitro e informa à câmara ou à outra parte. O requerido (quem responde à demanda) também indica um árbitro. Esses dois árbitros, denominados coárbitros, são em regra responsáveis por indicar, de comum acordo, o presidente do tribunal arbitral.

O número de arbitragens vem crescendo em áreas específicas, como a societária, construção civil, energia elétrica, desporto, trabalhista e litígios com a administração pública. [3] Com esse movimento, é igualmente natural que se intensifique a atuação de profissionais na função de árbitro, não reconhecidos como arbitralistas e com especialização no direito material desses setores.
Com efeito, em algumas dessas áreas especializadas será mais frequente a participação de árbitros com trajetória acadêmica, arbitralistas ou não, vinculados em tempo integral ou parcial a instituições de ensino públicas e privadas. [4] Esse movimento poderá levar ao aumento de impugnações baseadas em vínculos acadêmicos entre árbitros, advogados ou representantes de partes, sob o argumento de que suas conexões podem comprometer a autonomia e a imparcialidade do julgador.
Impugnação de árbitros
Diante da crescente interação entre o meio acadêmico e o universo arbitral, torna-se relevante perquirir e refinar cientificamente critérios que balizem a análise de conflitos de interesse. O desafio contemporâneo é preservar a contribuição técnica e ética dos profissionais que se dedicam à produção e à difusão do conhecimento jurídico sem comprometer a imparcialidade na atuação como árbitro.
A impugnação de árbitros pode ser apresentada tanto no momento da designação quanto ao longo do procedimento arbitral, sempre que surgirem circunstâncias que possam comprometer a confiança na imparcialidade do julgador. Trata-se de instrumento essencial para preservar a legitimidade do processo e a neutralidade da decisão final.
O conceito de atividade acadêmica possui contornos amplos, de modo que circunstâncias consideradas irrelevantes por um árbitro podem, sob a perspectiva de uma das partes, configurar motivo legítimo de apreensão quanto à imparcialidade. Diante dessas considerações como problema de pesquisa, indaga-se: Quais tipos de vínculos e atividades são juridicamente reconhecidos como integrantes da chamada “vida universitária”? Quais são os contornos conceituais relevantes do convívio acadêmico? Qual a definição, no contexto jurídico-arbitral, de atividade acadêmica?
Passa-se à análise das múltiplas dimensões do convívio acadêmico abrangendo o estudo, a pesquisa e a extensão, com o objetivo de identifica-las e contribuir de forma científica para a construção de critérios mais objetivos e seguros sobre a interação comunitária dos árbitros e a relevância jurídica de seus vínculos acadêmicos no processo de arbitragem.
Academia
Atividades acadêmicas abrange docência em cursos de graduação e pós-graduação, liderança de grupos de pesquisa, orientação de alunos e participação em bancas (trabalho de conclusão de curso — TCC, dissertação de mestrado, tese de doutorado, livre-docência, titularidade e concursos públicos). O docente ou pesquisador também se relaciona com profissionais, alunos, monitores, assistentes ou pares, na coautoria ou organização de livros, na publicação de artigos científicos e de opinião, na preparação de aulas, apostilas, cartilhas ou material didático.
Acadêmicos coordenam obras coletivas, participam de conselhos de editoras e periódicos, atuam na avaliação de artigos, na organização e participação em eventos científicos ou profissionais (congresso, seminário, webinário, simpósio, colóquio, fórum, mesa-redonda, painel, jornada acadêmica, workshop etc.). Professores elaboram prefácios, posfácios e apresentam obras jurídicas; realizam palestras ou reuniões com fins científicos em órgãos públicos, em escritórios de advocacia ou em ambientes corporativos. Incluem-se, ainda, nas atividades acadêmicas, a atuação em comissões responsáveis pela elaboração de estudos e anteprojetos de lei, tanto como membros efetivos quanto consultores, bem como a participação em projetos de iniciação científica, núcleos de prática jurídica, escritórios modelos, oficinas, clínicas, ligas acadêmicas e competições jurídicas (moots), como coach, mentor ou julgador.
É comum, no ambiente científico e universitário, que docentes e pesquisadores participem de eventos estudantis, atividades extracurriculares e formaturas; que sejam mencionados em agradecimentos de trabalhos monográficos, dissertações e teses. As atividades incluem, ainda, a participação em projetos de extensão, semanas jurídicas, feiras acadêmicas e mesas-redondas, além da atuação em redes profissionais e em grupos temáticos de pesquisa — formais ou informais, inclusive por meio de aplicativos de mensagens. No plano institucional, acadêmicos e pesquisadores também exercem funções diversas, individualmente ou em parceria, incluindo a coordenação de cursos ou de módulos, a chefia de departamentos, além de integrarem conselhos universitários, comitês e comissões institucionais.
Vale ressaltar que muitas atividades acadêmicas são publicizadas em sites e redes sociais, com exposição de imagens (participantes, convidados, alunos e audiência), podendo haver interpretações subjetivas de relações mais próximas entre as pessoas do que realmente existem.
Atividades acadêmicas
Diante do exposto, pode-se conceituar para os fins deste artigo a atividade acadêmica como sendo um conjunto de práticas institucionais, colaborativas e intelectuais voltadas à produção, circulação e legitimação do saber, estruturadas por normas próprias e orientadas por princípios como autonomia, colegialidade, liberdade de cátedra e compromisso com a formação crítica. Essas práticas, embora diversas em sua manifestação, remuneradas ou gratuitas, compartilham uma lógica de interação entre sujeitos do campo jurídico, empresarial, estatal, educacional e social, na maioria das vezes marcada por vínculos não hierárquicos, permeáveis e difusos, que integram o espaço ampliado da vida universitária.
Dada a natureza plural, aberta e muitas vezes informal das atividades acadêmicas, nem sempre é possível para um árbitro identificar — ou lembrar — todas as relações com terceiros que, em tese, poderiam ser vistas e reveladas [5] como potenciais conflitos de interesse. Muitas dessas atividades acadêmicas, além de constituírem obrigações funcionais dos docentes e pesquisadores, são, em sua essência, expressões de generosidade e solidariedade intelectual. Demandam tempo e considerável esforço do profissional e, em diversas situações, não são diretamente remuneradas.
Imparcialidade da arbitragem
Doutrina [6] e jurisprudência [7] apontam que relacionamento acadêmico não tem sido considerado motivo razoável para questionar a imparcialidade do árbitro e, consequentemente, levar à nulidade da sentença. Essas fontes indicam, ainda, que em determinados casos impugnações baseadas em relações acadêmicas poderão ser acolhidas diante de situações excepcionais e do risco efetivo de julgamentos enviesados e irrecorríveis. [8]
Do ponto de vista formal, é legítimo que os patronos apresentem impugnações contra a atuação de profissionais como árbitros com base em relações acadêmicas. Afinal, a imparcialidade e a independência são pilares da arbitragem, e o mecanismo de impugnação é fundamental para a preservação da integridade do procedimento. Contudo, é jurídico inferir, em tese, que o convívio acadêmico em suas múltiplas dimensões entre árbitro e representantes das partes não configura, por si só, uma relação íntima, pessoal, e, portanto, não constitui fundamento suficiente para ensejar suspeição ou nulidade.
As impugnações dessa natureza devem ser propostas quando houver dúvida justificada sobre a imparcialidade e independência do árbitro, sempre com a devida cautela a fim de distinguir vínculos legítimos e situações diversas inerentes à vida acadêmica daqueles que efetivamente possam afetar a integridade do processo. O desafio será, sempre, o de preservar os princípios estruturantes da arbitragem sem desestimular a valiosa contribuição de profissionais que atuem na academia, cuja presença será, cada vez mais, demandada com a expansão do sistema arbitral.
Conclusivamente, é possível deduzir, do ponto de vista científico e em tese, que a atuação de árbitros no ambiente universitário não constitui, por si só, fundamento automático para impugnação. Somente circunstâncias peculiares aconselharão a revelação pelo árbitro, cabendo à parte adversa, caso a caso, decidir se deseja impugnar em havendo dúvidas razoáveis e objetivamente justificáveis sobre a imparcialidade ou a independência do julgador (princípio do justifiable doubts).
[1] Embora não vinculantes, as diretrizes da IBA são amplamente aceitas como referência prática e ética pela comunidade arbitral internacional. As diretrizes sobre conflito de interesses (IBA Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration) estão disponíveis aqui
[2] Art. 13 – Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Disponível aqui
[3] Cf. Arbitragem em números. Pesquisa 2024, da pesquisadora Selma Ferreira Lemes. Disponível aqui
[4] Como, por exemplo, na arbitragem com a Administração Pública. Nesse sentido, ver JORDÃO, Eduardo. Um raio-x das arbitragens com o poder público. Quem são os árbitros? Quais os valores e quanto duram as arbitragens? Disponível aqui
[5] O dever de revelação impõe ao árbitro a obrigação de informar, de forma espontânea e tempestiva, quaisquer circunstâncias que possam dar ensejo a dúvidas justificadas quanto à sua imparcialidade ou independência, cf artigo 14 da Lei de Arbitragem brasileira (Lei nº 9.307/1996). Disponível aqui
[6] NUNES, Thiago Marinho. Dever de revelação do árbitro, relações acadêmicas e redes sociais. Disponível aqui
[7] Agravo de Instrumento nº 2362888-58.2024.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo. Disponível aqui
[8] CRUZ E TUCCI, José Rogério. Árbitro e advogado que exercem o magistério na mesma instituição. Consultor Jurídico. 19 de janeiro de 2024. Disponível aqui
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