Tema 1.270, modelos jurídicos e relevância do dano como lesão a interesse jurídico fundamental
29 de junho de 2025, 6h35
Está em pauta no Supremo Tribunal Federal o Tema 1.270, derivado da afetação do RE nº 1.449.302/MS, cujo desate irá julgar se detém o Ministério Público legitimidade no exercício de liquidação, cumprimento ou execução de sentenças que reconheçam a procedência de pedidos formulados em ações civis públicas versando (também) sobre lesões a interesses individuais homogêneos, mesmo que considerados “disponíveis”. No STF, enquanto o eminente ministro Dias Toffoli negou provimento ao “apelo extremo”, os não menos ilustres ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino reconheceram a legitimidade do MP, garantindo êxito ao recurso.

Na origem, observa-se que o recurso extraordinário foi protocolado em face de decisão do Superior Tribunal de Justiça que não identificou a legitimidade do Ministério Público na execução ou liquidação de tais decisões proferidas em sede de ação civil pública, sendo irrelevante, na visão do tribunal, que a fase de conhecimento da tutela coletiva tenha sido por esta instituição produzida. Estar-se-ia, portanto, diante de hipótese singular: “ação civil pública a meio caminho da efetividade”.
Diversas instituições e entidades, com reconhecida atuação na tutela coletiva de direitos no país, se manifestaram mediante notas e artigos para expressar a ameaça de retrocesso na defesa em juízo da coletividade, mesmo que individualmente (e momentaneamente) considerada, caso seja mantida a decisão objurgada. Enfim, trata-se de desprezo ao efeito cliquet dos direitos humanos, especialmente aqueles próprios da esfera difusa e coletiva [1].
Cabíveis três importantes considerações quanto à matéria sob julgamento, subdivididas no âmbito constitucional, processual civil coletivo e civil, neste último através da responsabilidade civil. Contudo, não sem antes adotarmos a perspectiva metodológica dos “modelos jurídicos”, já que justamente através deles projetam-se “estruturas normativas dinâmicas, que integram fatos e valores” [2].
O primeiro é o modelo hermenêutico da Constituição aberta como conquista democrática e de afirmação da teoria constitucional. Por ele se permite interpretação não somente pelos aparelhos estatais e seus agentes, mas especialmente pela comunidade, pela opinião pública, pela doutrina e, especialmente, os que demandam em juízo [3], afinal a jurisdição constitucional materializa não somente a resolução de conflitos entre as partes (controle endoprocessual), senão radica-se como manifestação do poder do Estado (controle extraprocessual) [4]. Trata-se de “pluralismo hermenêutico” que reúne a marcha temporal das transformações sociais com os elementos constitucionais polifacéticos [5], rejuvenescendo e revigorando o processo constitucional de interpretação, em unitária mutação [6].
Neste campo de progressividade hermenêutico, ganham destaque justamente os direitos e deveres fundamentais, especialmente das vítimas fustigadas por lesões identificadas inicialmente pelo próprio Estado no cumprimento dos chamados “deveres fundamentais de proteção” [7], dando-se início à fase de conhecimento da ação coletiva, para depois alargando-se para a etapa de cumprimento.
Permitir às vítimas dos “danos de massa” que apresentem, através do Ministério Público com reconhecida técnica de tutela de direitos, as “questões comuns dos fatos” para aplicação do “contexto constitucional“, demonstrando-se o aviltamento da dignidade humana e a repercussão do atentado imposto nas respectivas incolumidades (existencial e econômica), é garantia não apenas da máxima efetividade dos direitos fundamentais (especialmente na fase executória), mas ainda da interpretação pluralista e inclusiva.
Danos constitucionalmente qualificados
A esse propósito, no artigo 127 da CF se verifica o Ministério Público incumbido diretamente da defesa de quatro valores essenciais: ordem jurídica, regime democrático, interesses sociais e individuais indisponíveis. Em outras palavras, todas as figuras mencionadas (nada mais, nada menos) associam-se ao “guarda-chuva” de direitos fundamentais, porque são fundamentalmente formais [8] (estão na ordem jurídica), expressam trunfos contra a maioria [9] (igualdade substancial inerente ao regime democrático), têm ambiência em políticas públicas de inclusão ou de vedação de exclusão [10] (interesses sociais, especialmente alinhados aos chamados direitos sociais) caracterizam-se por serem irrenunciáveis, imprescritíveis e inalienáveis (notadamente, interesses indisponíveis).
Ainda desse modelo é necessário verificar os “danos constitucionalmente qualificados” [11]. Tais danos não são meramente “disponíveis”, muito embora tenham dimensão tanto transindividual como individual. São lesões a interesses jurídicos fundamentais que afetam pessoas naturais derivadas da comunhão de questões fáticas e jurídicas: a antijuricidade produziu externalidades para além de única vítima, projetando “mitigações” e “abalos sociais” a conjunto expressivo da coletividade, com consequências individualizadas na órbita de cada qual. Mesmo que a CF trate sobre a responsabilidade civil incompletamente, nela se colhem elementos essenciais para aplicabilidade do instituto.
Exclusão social, diminuição da qualidade de vida, exposição indevida da privacidade, afronta à honra, reprodução da imagem, divulgação não consentida de dados pessoais ou sensíveis são exemplos possíveis de danos constitucionalmente qualificados, na medida em que a Constituição positiva determinados e específicos direitos fundamentais justamente para evitabilidade de tais lesões e agravos.
Pensemos a missão diária do Ministério Público do Trabalho na tutela de trabalhadores em condição de escravidão: as vítimas per se prejudicadas, cada qual e na sua esfera, têm direitos às indenizações pessoais (individualmente homogêneas) [12]. Ou o conjunto de pessoas discriminadas por questões raciais, sociais, de orientação sexual, como no caso de aplicativos digitais que não atendem demandas de determinadas comunidades, mediante práticas de geoblocking [13].
Nos dois exemplos, conjuntamente ao dano moral coletivo (caráter punitivo) e obrigações de fazer e não fazer (medidas inibitórias), indenizações individualizadas são cabíveis, e a partir disso a execução de sentença, em caso de procedência, pelo Ministério Público, considerando não apenas a aderência temática, mas o efeito constitucionalmente útil ao fim colimado que é a vida digna aos esfacelados pelo dano.
O segundo é o modelo “individual homogêneo“, adotado pelo processo civil coletivo brasileiro. Diferentemente dos interesses difusos e coletivos que ganharam corpo com a LACP em 1985 e mais tarde reforçados na Constituição em 1988, os interesses individuais homogêneos foram introduzidos pelo Código de Defesa do Consumidor em 1990, justamente para facilitar a defesa do consumidor em juízo, já que os arranjos negociais massificados poderiam causar danos em massa, mesmo que não houvesse difusidade ou coletividade restrita envolvidas.
A busca da experiência comparada (class actions) teve por escopo a solução de questões notadamente relevantes que desafiavam a condição processual do sistema jurídico: a facilitação do acesso à ordem jurídica justa das vítimas de danos comuns; a resposta processual à dura realidade da hipossuficiência mediante a representação por instituições que atuem nas questões coletivas; o aperfeiçoamento estrutural e funcional da processualidade de massa, combatendo-se o número excessivo de demandas pulverizadas e repetidas através de único padrão; a uniformização de decisões, com o consequente prestígio à “coerência” e unidade do direito e, sobretudo, com a materialização da igualdade; o necessário efeito dissuasório sobre os grandes réus coletivos, fazendo-os recuarem da prática de ataques desenfreados à coletividade [14].
No caso do Tema 1270, três circunstâncias são essencialmente obrigatórias para balanceamento axiológico. A representatividade do Ministério Público no cumprimento de decisões de procedência, visando a indenizabilidade homogênea justifica-se: pela extrema hipossuficiência (1) dos titulares de direitos, alguns sequer com conhecimento do dano e do respectivo interesse, por ausência de “accountability” e “disclousure” do lesante após a derrota na fase de conhecimento; a crença pelo autor do dano nos benefícios do ilícito lucrativo almejado (2), abusando da demora do Estado-Juiz; o freio à patologia que os grandes empreendedores mais contestam: a “litigância predatória” (3). Portanto, o argumento de ‘disponibilidade de direitos’ é simplesmente o tratamento ‘envernizado’ de fatos lesantes pretéritos para dar opacidade ao dever de indenizar [15].
Ademais, não se pode desfazer da clara e óbvia relação de dependência processual entre a fase de conhecimento e a fase de execução conforme as circunstâncias subjetivas (pessoas lesionadas) e circunstâncias objetivas (tutela de bens jurídicos essenciais), já que identificado o interesse e legitimidade do MP para tutelar na primeira etapa, segue necessariamente a etapa seguinte, para fins de efetividade processual. O formalismo absoluto, afasta as partes e distrai o juiz da sua valorosa função de outorgar a tutela jurisdicional efetiva [16].
O último modelo é o da responsabilidade civil. Como já dissemos: ‘não pode valer a pena causar danos’.[17] Se antes o ilícito era a principal ‘mala prohibita’ do Direito, na atualidade os danos é que são o todo indesejado, porque refletem a diferenciação, a injustiça entre as relações, inclusive em situações em que não seja necessária sequer a imputação subjetiva (CPC, artigo 497, parágrafo único).
Enquanto o dano fere, o direito tutela [18]. Remarque-se que a lesão é aquela que ofende interesse digno de tutela (requisito objetivo: um contra ius), porque houve conduta de terceiro que proporcionou esse aviltamento, desprovida de juridicidade (requisito subjetivo: um non iure).
A atuação do MP para os danos observa muito mais o chamado dano-evento do que o dano-consequência, sem prejuízo de que ambos se originam do desprezo ao dever de solidariedade [19].
[1] Sobre o efeito cliquet, vide o julgado: STJ – REsp 1.646.193 – 1ª Turma – j. 12/5/2020 – m.v. – Rel. Min. Luiz Alberto Gurgel de Faria. DJe 4/6/2020. Veja também a doutrina: Marques, Claudia Lima; Martins, Fernando Rodrigues. A proteção dos dados pessoais, o mundo digital e o pioneirismo do Código de Defesa do Consumidor: uma homenagem a Danilo Doneda. Revista de Direito do Consumidor. vol. 152. ano 33. p. 41-57. São Paulo: Ed. RT, mar./abr. 2024
[2] REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito. Para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994.
[3] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002.
[4]TARUFFO, Michele. La Prueba, Artículos y Conferencias. Santiago: Metropolitana, 2009, p. 34. “Por control externo se entiende el control que debe ser posible por parte de la opinión pública y del ambiente social en la que se inserta la decisión: en este sentido, la obligación de motivar cumple un papel de garantía fundamental de la corrección de la manera como el juez ejerce el poder decisorio del que dispone”.
[5] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 44.
[6] Abboud, Georges; Gavazzoni, Antonio Marcos. O fenômeno da interpretação e seus vieses a partir da mutação constitucional e do ativismo judicial como consequência da síntese dialética do constitucionalismo contemporâneo. São Paulo: Revista de Processo. vol. 340. ano 48. p. 301-327.
[7] RODRIGUES. L. Barbosa. Manual de direitos fundamentais e de direitos humanos. Lisboa: Quid Juris, 2021, p. 512. Para quem: “os deveres fundamentais afirmam-se subjetivos, públicos, individuais, de origem natural, positivados, essencialmente frente ao poder, ou acessoriamente frente à comunidade e assentes na dignidade da pessoa humana”.
[8] SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. RDC. v. 46. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.193-244. Explica: “a fundamentalidade formal, desdobra-se em três elementos, já largamente reconhecidos: a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também o direito à moradia) situam-se no ápice do ordenamento jurídico, cuidando-se, pois, de normas de superior hierarquia; b) ainda na condição de normas fundamentais insculpidas no corpo da Constituição, encontram-se submetidas aos limites formais (procedimento agravado para a modificação dos preceitos constitucionais) e materiais (as assim designadas ‘cláusulas pétreas’) da reforma constitucional; c) por derradeiro, nos termos do que dispõe o art. 5.º, § 1.º, da CF, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são imediatamente aplicáveis e vinculam diretamente as entidades estatais e os particulares”.
[9] DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. London, Duckworth, 1978, p. 167.
[10] CAMBI, Eduardo. Ministério Público social. Revista de Processo. v. 177. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 209-231.
[12] LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A ação civil pública e a tutela dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores em condições de escravidão. In: Doutrinas Essenciais de Direito do Trabalho e da Seguridade Social. v. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 1249 – 1280.
[13] TARGA, Maria Luiza Baillo. Discriminação e direito do consumidor: as práticas de geobloqueio e geoprecificação nas relações de consumo digitais. Revista de Direito do Consumidor. v. 147. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, pág. 105 – 141.
[14] Benjamin, Antônio Herman. A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico. Apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor; in Ação civil pública; Lei 7.347/85 – Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 70/151.
[15] OSNA, Gustavo. Direitos individuais homogêneos: pressupostos, fundamentos e aplicação no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[16] POSADA, Giovanni F. Priori. La constitucionalización del derecho procesal. In: O processo civil entre a técnica processual e a tutela de direitos: estudos em homenagem a Luiz Guilherme Marinoni. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
[18] DE CUPIS, Adriano. Il danno: teoria generale della responsabilità civile. Milano: Giuffrè, 1966.
[19] RODOTÀ, Stefano. Il problema della responsabilità civile. Milano: Giuffre, 1967, p. 115 e seg.
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