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Ássia, de Ivan Turguêniev

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29 de junho de 2025, 8h00

A coluna continua com os textos da literatura russa. Hoje comento Ássia, de Ivan Turguêniev (1818-1883). O autor segue a linha descritiva do jovem intelectual sensível, culto, porém paralisado diante da vida concreta. Li Ássia numa tradução da Editora 34, feita por Fátima Bianchi. A tradutora, que se doutorou pela USP e também estudou em Moscou, conhece profundamente a literatura russa. Dá continuidade a um movimento que de algum começou com Boris Schnaiderman e que nos livrou de lermos os russos em traduções que eram versões das traduções para o francês.

Em Ássia o personagem central – o livro é narrado em primeira pessoa – identifica-se com a prosaica figura do “homem supérfluo”, o intelectual que não se desincumbe da tarefa existencial de transitar da especulação abstrata para os problemas reais. Há uma permanente falta de perspectiva nessa interessante figura da literatura russa, que na verdade, penso, era uma transposição estética para tipos então muito comuns.

Ássia é um relato de juventude. O personagem (N.M.) vive uma paixão avassaladora. Dissociado das coisas práticas da vida o personagem não se interessava por pessoas. Detestava monumentos e coleções. Satisfazia-se quando se perdia na multidão. Na narrativa, viajou para a Alemanha, onde casualmente encontrou dois irmãos, Gaguin e Ana, cujo apelido era Ássia, o título do livro. É por ela que o personagem se apaixonou.

Encontraram-se várias vezes. Eram jovens românticos. Brincavam, se divertiam, passeavam. A paisagem é romântica, como se imaginava o romantismo na Alemanha do século 19. Gaguin e Ássia eram meio-irmãos. Ássia era filha do pai de Gaguin com uma criada. O drama familiar (que embutia um conflito de classes) era a fonte de todos os problemas da heroína.

N.M. chegou a suspeitar de que os irmãos eram amantes e que, por alguma razão, apenas disfarçavam que eram irmãos. N.M. se declarou para Ássia, porém foi incompetente para avançar uma relação madura. Sua falta de ação resulta em um afastamento definitivo. Viu-se condenado à solidão de um solteirão sem família, qualificou-se como alguém que vivia enfadonhamente. Não sabia o que fazer.

Nessa figura típica tem-se um jovem educado em línguas estrangeiras, ideias iluministas e autores românticos. Todavia, vê-se cercado por uma realidade hostil a seu espírito cheio de divagações. Vive dividido entre o impulso de viver e o peso de observar; entre o desejo de agir e a impossibilidade de encontrar um papel real. Carrega dentro de si um mundo imaginário — e, justamente por isso, não consegue habitar o mundo à sua volta.

Constata-se uma esterilidade existencial diante de um sistema político opressor e de uma sociedade fechada às transformações. O drama não é apenas pessoal. O drama é civilizacional. O mal-estar decorre de um anacronismo: um sujeito pretensamente moderno aprisionado por uma estrutura arcaica. Seu saber é sofisticado demais para o provincianismo ao redor — e, ainda assim, é impotente para transformá-lo.

Na Alemanha, essa tensão gerou personagens como Werther, de Goethe, um jovem notadamente apaixonado, arrebatado, trágico. Werther explode contra o mundo e contra si, enquanto o homem supérfluo russo implode e se esgota na própria seiva. O personagem de Goethe consumiu-se no drama do amor não correspondido e na rigidez das convenções burguesas. Melancolia pura, em forma de silêncio.

Nossos supérfluos

Em Ássia, Turguêniev fixou esse tipo humano, o “homem supérfluo”. Trata-se de um Werther resignado, que em vez de se entregar ao abismo limita-se a contemplá-lo com olhos turvos. Quer ação, mas está sempre hesitando. É incapaz de transformar oportunidades em decisão. É um desencantado.

Spacca

Essa figura do jovem sensível, erudito, porém inábil para os embates concretos da existência, não era estranha aos românticos brasileiros do século 19 — em especial àqueles formados ou em formação nos cursos jurídicos de São Paulo e Olinda.

Por exemplo, Fagundes Varela e Castro Alves também encarnaram, em suas biografias e versos, esse descompasso entre imaginação exaltada e realidade opressiva. Educados nos ideais do humanismo europeu e nutridos de Byron, Hugo e Lamartine, oscilaram entre o lirismo sentimental e o desejo de transformação social.

Varela expressava a angústia existencial e a fuga da realidade — marcada pela morte precoce do filho e pelo desalento que o levou a abandonar os estudos jurídicos. Já Castro Alves, embora mais combativo, também viveu o conflito entre o impulso idealista e o peso das instituições: o poeta dos escravos foi, ao mesmo tempo, um espírito inflamado pela justiça e um jovem que, como o narrador de Ássia, experimentava o amor de forma tumultuada e trágica, como lemos nos versos à Eugênia Câmara. E ainda teve uma rusga com Tobias Barreto.

Varela e Castro Alves, à sua maneira, eram “homens supérfluos” em uma sociedade escravocrata e autoritária, que os obrigava a sublimações líricas diante da impotência prática. Como o personagem de Turguêniev, eram sujeitos modernos aprisionados em uma estrutura arcaica. Possuíam a linguagem do futuro, mas viviam no compasso retardado de um país colonial. Afinal, a servidão na Rússia e a escravidão no Brasil são odiosos institutos absolutamente análogos, cuja base supostamente legal era o modelo escravocrata institucionalizado pelo direito romano.

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