Supremo hidrata o Código Ambiental do Rio Grande do Sul
28 de junho de 2025, 13h27
O licenciamento ambiental é um instrumento de controle e adequação da utilização dos bens e recursos ambientais na Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), e visa compatibilizar o desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico, permitindo a produção de riquezas, sem admitir uma degradação desenfreada ou inadequada dos recursos naturais.
Entre os objetivos do licenciamento está a preservação e a melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, atendidos critérios de racionalização dos usos do solo, da água e do ar e a proteção de ecossistemas, construídos a partir de diretrizes formuladas em normas e planos destinados a orientar a ação dos governos em todos os níveis: federal, estadual e municipal.
Sob essas premissas, visando colmatar a dimensão da PNMA com os primados constitucionais, o Supremo Tribunal Federal julgou, recentemente, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.618/RS), ajuizada pelo procurador-geral da República contra dispositivos da Lei Estadual nº 15.434/2020, que instituiu o Código Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul. O leading case, que teve o erudito voto condutor do ministro Cristiano Zanin, pode oferecer importantes balizas sobre o papel dos entes federativos na regulação ambiental, a partir de uma perspectiva do federalismo cooperativo, do alcance do poder de polícia e, sobretudo, do princípio da dignidade da pessoa humana no regime constitucional ecológico brasileiro.
Premissas principiológicas, normativas e teleológicas, orientaram o voto do ministro Zanin, que, a partir dos comandos do artigo 225, da CF, declarou o dever de proteção ambiental, como ônus do poder público e da coletividade, a ser exercido através do adequado licenciamento ambiental, em benefício das presentes e das futuras gerações. Adotando aí notadamente perspectivas intrageracionais e intergeracionais.
Os princípios constitucionais da vedação ao retrocesso ambiental, da precaução e da prevenção foram invocados com precisão na decisão como orientadores do sistema de controle da qualidade ambiental. Tais princípios, sem dúvida, convergem para a concretização do postulado da dignidade da pessoa humana, erigido como pilar e alicerce da República Federativa do Brasil, além de ser um valor fixado no epicentro de nosso sistema jurídico constitucional.
A vedação ao retrocesso ambiental (artigo 1º, caput e III; artigo 5º, XXXVI e § 1º; e artigo 60, § 4º, IV, da CF) impede que novas leis ambientais reduzam o nível de proteção já alcançadoe o princípio da precaução veda a simplificação excessiva dos procedimentos de licenciamento, na medida em que podem comprometer a efetividade da proteção, especialmente nas atividades de médio e de alto potencial degradador. Esse princípio, aliás, foi abordado no Tema 479 de repercussão geral, e funciona como um critério de gestão de risco a ser aplicado sempre que existirem incertezas científicas sobre a possibilidade de um produto, evento ou serviço desequilibrar o meio ambiente ou atingir a saúde dos cidadãos [1].
O princípio da prevenção, por sua vez, serve para evitar diretamente o dano. Este princípio manifesta-se na exigência de que os procedimentos simplificados sejam aplicados apenas às atividades de pequeno potencial poluidor ou degradador [2].

A vedação ao retrocesso ambiental aliada aos princípios da precaução e da prevenção, permeou a análise do STF sobre os dispositivos da lei estadual gaúcha. Ao declarar a inconstitucionalidade da Licença de Operação e Regularização (LOR), o tribunal considerou que esta violava frontalmente o princípio da precaução, pois permitia o funcionamento de atividades que não haviam passado previamente pelo devido processo de licenciamento. A regularização a posteriori subverte, portanto, o papel preventivo do licenciamento, que é justamente de evitar danos e desastres ambientais e climáticos antes que estes se concretizem.
Somados a estes princípios, o Supremo Tribunal Federal reiterou o seu consagrado entendimento do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental, de terceira geração ou novíssima dimensão, uma vez que a proteção da natureza está intimamente relacionada com a ideia da dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana.
Os elementos principiológicos, doutrinários e jurisprudenciais identificados na decisão refletem a estrutura do sistema constitucional brasileiro e a capacidade do STF de equilibrar, valendo-se do princípio da proporcionalidade, as demandas de eficiência administrativa e econômica com o cumprimento do dever fundamental de proteção ambiental. A uniformização da compreensão constitucional acerca dos critérios de licenciamento ambiental pode contribuir para a construção de um sistema mais coerente e efetivo de proteção ao meio ambiente e ao sistema climático, desde que respeitando sempre as competências constitucionais dos diferentes entes federativos.
Aliás, o federalismo ecológico foi elemento relevante na decisão, pois sua invocação auxilia na distinção adequada das competências comuns, materiais e formais, o que contribui para a uniformização dos procedimentos de licenciamento ambiental. Isto impede que os estados adotem critérios substancialmente divergentes e que possam comprometer a efetividade da proteção ambiental ou, ainda, criar distorções competitivas entre os entes federativos. O federalismo deve ser um instrumento de descentralização política, sempre com o intuito de concretização dos direitos fundamentais.
Foram apresentados parâmetros claros acerca da repartição de competências entre a União e os estados na regulamentação do licenciamento criando-se um marco jurisprudencial importante no que se refere às competências constitucionais em matéria ambiental e aos limites do federalismo brasileiro.
A decisão proferida na ADI nº 6.618/RS destaca, o que já era firme na jurisprudência, inclusive do STJ, no sentido de que os entes setoriais e locais, visando atender às suas peculiaridades, poderiam legislar sobre meio ambiente, mas não flexibilizar ou alargar comandos já definidos no âmbito federal. Materialmente, só poderiam estabelecer critérios mais restritivos, sempre no intuito da ampliação da tutela ambiental.
Em outros termos, os estados podem suplementar a legislação federal, mas não podem criar modalidades de licenciamento ambiental não previstas na legislação federal, nem flexibilizar indevidamente os procedimentos estabelecidos no âmbito nacional. Enquanto os Estados possuem competência explícita para suplementar a legislação federal ambiental, não possuem competência implícita para criar novos tipos de licenciamento ou flexibilizar substancialmente os procedimentos estabelecidos no âmbito federal.
Para o STF as regras de distribuição de competências legislativas são os alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado Socioambiental de Direito, a partir da perspectiva do princípio da predominância do interesse, como já consagrado na ADI 5.996/AM.
De fato, os dispositivos da Lei Estadual nº 15.434/2020 visavam implementar três modalidades de licenciamento: a) Licença Única (LU); b) Licença Ambiental por Compromisso (LAC); c) Licença Ambiental de Operação e Regularização (LOR). A LU seria utilizada para simplificação do licenciamento, sem a necessidade de obedecer às fases de LP, LI e LO, como estabelece a Resolução do Conama nº 237/97. A LAC envolveria declarações e compromissos assumidos pelo empreendedor, agilizando a obtenção da licença, postergando para momento futuro exigências técnicas necessárias ao adequado licenciamento.
No julgamento, o STF analisou detalhadamente os dispositivos que tratavam das novas modalidades de licenciamento ambiental: Licença Única (LU), Licença por Adesão e Compromisso (LAC) e Licença de Operação e Regularização (LOR). Enquanto a LU e a LAC foram consideradas constitucionais mediante interpretação conforme à Constituição – restritas as atividades de pequeno potencial de impacto, conforme a Resolução do Conama 237/1997 –, a LOR foi declarada inconstitucional.
Os critérios estabelecidos na norma estadual gaúcha para a concessão das licenças não foram admitidos, ou foram apenas em parte, especialmente porque prescritos em abstrato, sem atentar, adequadamente, para o fato de que o processo decisório para a concessão do licenciamento ambiental é complexo e demanda a análise de vários fatores, sendo a concessão de licença por simplificação de procedimento ou por procedimentos específicos, excepcional.
Embora se admita a criação de novos tipos de licenciamento ambiental, a simplificação só é possível em casos de obras ou empreendimentos de pequeno potencial degradador, nos termos do artigo 12, § 1° da Resolução Conama 237/1997, critério não cumprido pela Licença Única (LU) e a Licença Ambiental por Compromisso (LAC), do RS.
A Licença de Operação e Regularização (LOR) não foi admita pelo STF por colidir frontalmente com o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado previsto no artigo 225, da CF. Referida espécie foi declarada inconstitucional por flexibilizar sobremaneira o licenciamento, assim como foi declarada inconstitucional a ampliação do autolicenciamento.
O julgado também declarou a impossibilidade da delegação do poder de polícia para o exercício da atividade de licenciamento, salvo mediante convênios ou cooperação entre órgãos públicos, como autoriza a LC nº 140/11. O STF reconheceu que o licenciamento ambiental envolve o exercício de funções tipicamente públicas, não podendo ser delegado a particulares não integrantes da administração pública, fato que só se admite especificamente, por exceção, às pessoas de direito privado prestadoras de serviço público, em regime não concorrencial, e sem finalidades lucrativas.
Proteção insuficiente dos direitos de 2ª geração
Também foi afastada a possibilidade de postergação para a etapa final do licenciamento do reassentamento de populações afetadas por grandes obras e projetos, por afrontar ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao mesmo tempo violar direitos sociais fundamentais, como à moradia, ao trabalho e à identidade cultural.
Esses problemas se mostram bem evidenciados em projetos de mineração, que sendo considerados de utilidade pública, por força da Resolução do Conama nº 369/06 e do CFlor (artigo 3º, VIII, b), exigem remanejamento de populações, em razão da chamada rigidez locacional do minério. De fato, relegar o devido planejamento e, sobretudo, as decisões da realocação de pessoas apenas para a fase da Licença de Operação significa clássico caso de proteção insuficiente dos direitos fundamentais de segunda dimensão.
O STF também estabeleceu balizas para o licenciamento das atividades de silvicultura, a partir da perspectiva da dimensão e dos efeitos do impacto, notadamente quanto as suas sinergias, de modo que o tamanho da área não pode ser o balizador para o afrouxamento dos critérios de licenciamento, na medida em que frequentemente essas culturas florestais envolvem cultivo de espécies exóticas. A dispensa generalizada de licenciamento contraria a PNMA, a Resolução do Conama nº 237/97 e configura omissão estatal na proteção ambiental.
O STF declarou inconstitucionais igualmente os dispositivos que tratavam da silvicultura, notadamente o artigo 224 da Lei 15.434/2020 e o artigo 14, §1º, I, da Lei Estadual nº 14.961/2016, tendo em conta que “a silvicultura é atividade ou empreendimento obrigatoriamente sujeito ao licenciamento ambiental”, conforme o Anexo I da Resolução do Conama 237/1997, que a classifica como de impacto médio ou alto. O ministro Zanin pontuou de modo claro que “não cabe aos demais entes federativos dissentir da sistemática definida em normas gerais pela União, estabelecendo dispensa de licenciamento”.
Em voto-vista, por sua vez, o ministro Gilmar Mendes destacou, com profundidade, a importância de se assegurar um mínimo existencial ecológico como decorrência da dignidade humana e dos direitos fundamentais. Ele pontuou que “a política ambiental não pode ser compreendida apenas como política pública, mas como condição de possibilidade do exercício dos demais direitos fundamentais, inclusive os sociais”. Para o ministro Gilmar Mendes, a Constituição não tolera soluções que inviabilizem a proteção ambiental sob o argumento de eficiência ou economicidade, pois isso implicaria ruptura com os deveres estatais de proteção.
A decisão, portanto, traz impactos práticos ao licenciamento estabelecendo limites claros para flexibilizações futuras, restringindo as condições de simplificação e de autolicenciamento e confirmando que a autonomia dos entes locais e setoriais do meio ambiente deve observância à Constituição e às normas federais e resoluções do Conama em matéria ambiental, o que vai gerar impacto na formulação de futuras legislações pelos entes estaduais e municipais sobre o tema licenciamento ambiental.
O leading case representa um claro compromisso do STF com os fundamentos do Estado Constitucional Ecológico, ao destacar que “a Constituição de 1988, ao estabelecer um Estado Democrático de Direito e incluir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no rol dos direitos fundamentais, promoveu uma verdadeira mutação constitucional”, inserindo a dignidade humana no centro da proteção ecológica. Esse compromisso não é retórico, mas operacional, exigindo do legislador e do administrador público a adoção de medidas coerentes com os princípios constitucionais ambientais.
[1] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3.937/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator para o acordão Min. Dias Toffoli, DJe 1/2/2019.
[2] WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública (de acordo com o Direito das Mudanças Climáticas e o Direito dos Desastres). Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 49).
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