Opinião

O PL sobre crimes sexuais e a armadilha do endurecimento penal

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  • é advogada criminalista e especializada em Processo Penal pela Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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28 de junho de 2025, 15h21

A recente aprovação pelo Congresso do projeto de lei que altera os artigos 65 e 115 do Código Penal (PL 419/2023), para impedir que agressores em crimes de violência sexual se beneficiem da atenuante da idade (se menores de 21 ou maiores de 70 anos) ou da redução da prescrição, gerou entusiasmo em diversos setores do movimento feminista e progressista nas redes sociais. A medida foi celebrada como um avanço na responsabilização penal de autores de crimes sexuais, e como uma resposta do Estado à impunidade que por vezes parece imperar em relação à violência de gênero.

No entanto, por mais compreensível que seja essa reação, é necessário questionar: que tipo de justiça estamos reforçando ao apostar no endurecimento penal?

Nesse sentido, é importante destacar que não se pode negar o papel histórico do movimento feminista na visibilização da violência sexual contra as mulheres, especialmente a partir da década de 70, que tornou possível enxergar o estupro, o assédio e outras formas de violência de gênero como uma questão pública, e não apenas doméstica/privada. Por exemplo, a criação das Delegacias de Defesa da Mulher, em 1984, bem como do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, foram marcos importantes nesse processo.

No entanto, também revela uma contradição: ao reivindicar visibilidade e ação estatal, o feminismo dominante acabou optando, em muitos casos, pelo caminho da penalização, ou seja, pelo uso do sistema de justiça criminal como principal instrumento de resposta. Isso gerou uma adesão ambígua a duas vertentes político-criminais distintas: por um lado, a descriminalização de práticas como o aborto e o adultério; por outro, a criminalização de condutas como o assédio e a violência doméstica.

Essa estratégia, ainda que compreensível, gerou efeitos colaterais. O resultado é uma política criminal feminista que, na prática, tem se delineado de forma reativa e voluntarista e a consequência disso é que a resposta que mais comumente emerge à pergunta “o que se espera do sistema penal?” é: castigo.

O problema é que, como se sabe, endurecer leis e penas não reduz a violência, só amplia o poder de um sistema que já marginaliza pobres, negros e periféricos. Como alerta Maria Lúcia Karam, o feminismo pode, sem querer, ecoar o conservadorismo punitivista quando trata prisão como sinônimo de justiça.

Spacca

É claro que como advogada sei da importância que canais de denúncia sobre violência sexual assumem nesses contextos, mas também sei — e vejo na prática — como o sistema de justiça criminal não apenas revitimiza mulheres, mas também é completamente frágil na proteção das vítimas e prevenção da prática do crime.

É preciso atacar as raízes do problema

Na verdade, assim como o sistema escolhe quem vai ser tratado como criminoso, ele também escolhe quem pode ser reconhecida como vítima, e, na realidade, muitas mulheres vítimas continuam sendo ignoradas, desacreditadas ou silenciadas em crimes sexuais, principalmente quando não se encaixam no que a sociedade e a justiça costumam imaginar como o “perfil ideal” de uma vítima — geralmente uma mulher branca, de classe média e com comportamento considerado “adequado”.

Enquanto isso, muitas vítimas seguem sendo desacreditadas — sobretudo se forem negras, pobres, trabalhadoras sexuais ou trans, ou se em algum momento desviaram do papel esperado de “vítima perfeita”. Basta ter usado drogas, estar bêbada no momento da agressão ou frequentar espaços estigmatizados, como um baile funk ou uma balada, para que sua palavra seja posta em dúvida.

Por isso, a lei aprovada pode até transmitir a ideia de combate à impunidade, mas, na realidade, fortalece um sistema que sabemos ser injusto e falho. Não se nega a gravidade da violência sexual — questiona-se apenas se a resposta está em um aparato que desumaniza e fracassa repetidamente.

O caminho exige mais do que crítica; demanda criatividade. É preciso investir em justiça restaurativa, em educação, em redes comunitárias de apoio, em reparação que vá além das grades. O verdadeiro desafio está em atacar as raízes da violência, não apenas suas consequências, afinal o sistema penal não supera discriminações, ele as alimenta.

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