Friedrich Müller: um autor fundamental para compreender o Direito
28 de junho de 2025, 8h00
Friedrich Müller (nascido em 22 de janeiro de 1938, em Eggenfelden, Baviera) é um dos mais influentes teóricos contemporâneos do Direito Constitucional e da teoria da norma jurídica. Professor emérito da Universidade de Heidelberg, Müller desenvolveu uma vasta obra voltada à Filosofia do Direito, à Teoria geral do Direito e, especialmente, à análise da linguagem normativa. Além da sua produção acadêmica, também publicou obras literárias sob o pseudônimo Fedja Müller.
Formado num contexto europeu profundamente marcado pelas transformações do pós-guerra, Müller voltou-se desde cedo ao estudo do Direito Constitucional, compreendido como o ponto de partida de todo o ordenamento jurídico. Seu pensamento foi forjado em meio a intensas mudanças políticas, filosóficas e ideológicas vividas pela Alemanha ao longo do século 20 — fatores que influenciaram diretamente sua crítica ao positivismo jurídico tradicional.
Ao se deparar com os limites epistemológicos das abordagens positivistas e das leituras puramente formais do texto legal, Müller desenvolveu uma proposta teórico-interpretativa inovadora: a Metódica Estruturante do Direito (Strukturierende Rechtslehre). Tal método parte da premissa de que o texto normativo não se confunde com a norma jurídica. O enunciado legal seria apenas a parte visível de um iceberg normativo, cuja completude depende de um processo rigoroso de interpretação que leva em conta elementos estruturais, contextuais e materiais.[1]
Lenio Streck nos ensina que a Teoria Estruturante é uma teoria da contemporaneidade, tendo em vista que se coloca como uma epistemologia da práxis, partindo da análise das decisões dos Tribunais, principalmente do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht).
Segundo Streck “a Teoria Estruturante estabelece um novo conceito de norma jurídica, ao tentar dissolver os contrastes entre ser e dever-ser, ou sob outro ponto de vista, entre o campo normativo e o campo factual. Diante de tais considerações, imprescindível verificar o caráter concretista da teoria, que tenta conciliar na sua applicatio a norma e a realidade, estabelecendo um novo paradigma como matriz teórica e operacional do Direito por meio da inovação teórica do conceito de norma (Normstrukturund Normativität). Não existirá norma ante causum. O que se pode abstrair dos códigos e Constituições são apenas textos, as normas deverão advir do processo de concretização (Rechtsarbeit). Deste modo, o Direito normativo não resultará da produção legislativa, sendo os textos normativos o início do processo de concretização da norma, bem como um interdito, haja vista que serão sempre observados os parâmetros de um Estado democrático de Direito” [2].
Crítico das dicotomias simplistas entre norma e fato, teoria e prática, Müller propõe uma compreensão não subsuntiva da aplicação do Direito, exigindo uma articulação entre a estrutura normativa e a realidade social concreta.

Segundo o autor, o texto normativo somente é compreensível quando estiver materialmente ligado ao âmbito normativo e ao programa normativo. Enquanto este constitui os elementos linguísticos do processo concretizador, o âmbito normativo consiste no recorte da realidade social na sua estrutura básica que o programa da norma criou para si como seu âmbito de regulamentação [3]. O Direito, nessa chave, não é um conjunto fechado de comandos, mas sim uma prática institucional vinculada a um processo hermenêutico normativamente orientado.
Reconhecido como um dos principais estudiosos estrangeiros do sistema jurídico brasileiro, Friedrich Müller é referência obrigatória nos debates sobre constitucionalismo contemporâneo, linguagem jurídica e racionalidade interpretativa. Sua obra contribui decisivamente para a superação do decisionismo judicial e da hermenêutica voluntarista, ao oferecer parâmetros normativos para a aplicação estruturada do Direito.
Um diálogo entre Müller e Dworkin: crítica ao positivismo e ao ‘pós-positivismo superficial’
Embora oriundos de tradições jurídicas distintas — Müller da dogmática constitucional alemã e Dworkin da filosofia do direito anglo-americana —, há convergências teóricas significativas entre os dois autores, sobretudo quanto ao papel da interpretação jurídica, à crítica ao formalismo e ao esvaziamento conceitual de certas versões do pós-positivismo.
Ambos rejeitam a concepção tradicional de norma como simples enunciado extraído automaticamente do texto legal. Para Ronald Dworkin, a aplicação do direito exige uma interpretação construtiva, orientada por princípios jurídicos que conferem unidade e integridade ao sistema [4]. O juiz, para ele, deve atuar como um “autor em cadeia”, dando continuidade à narrativa institucional do direito com base nos princípios que justificam melhor sua história interpretativa.
Friedrich Müller, por sua vez, sustenta que o texto normativo é apenas a “parte visível do iceberg normativo”, sendo a norma fruto de um processo complexo de interpretação que envolve reconstrução do programa normativo e análise do contexto estrutural da realidade jurídica. Assim como Dworkin, Müller entende que a decisão jurídica não é um ato puramente técnico ou mecânico, mas sim uma atividade racionalmente orientada e argumentativamente justificada, que pressupõe um compromisso com a Constituição e com a coerência do sistema.
Mais ainda: Müller é um crítico do que chama de “pós-positivismo superficial”, corrente que, embora proclame a superação do positivismo, mantém vícios de estrutura e método que acabam por reproduzir uma aplicação voluntarista do direito, muitas vezes travestida de ativismo ou moralismo judicial. Para Müller, não se pode considerar legítima a produção de decisões discrepantes para o mesmo caso concreto. Nessa crítica, ele se aproxima de Dworkin, que também combateu o decisionismo disfarçado sob retórica valorativa, insistindo na necessidade de submeter a moralidade jurídica a critérios de racionalidade e integridade institucional.
Assim, tanto Dworkin quanto Müller se opõem à ideia de que o direito se esgota no texto legal ou na vontade do intérprete. Ambos sustentam que a norma jurídica é uma construção interpretativa vinculada a parâmetros normativos objetivos, o que exige do intérprete não apenas competência técnica, mas também responsabilidade institucional, argumentação estruturada e fidelidade aos compromissos constitucionais do Estado de Direito.
Por uma adequada compreensão da teoria estruturante no direito brasileiro
Entre os autores que mais profundamente se dedicaram ao estudo do pensamento de Friedrich Müller no Brasil, destaca-se o jurista e professor Georges Abboud. Em obras como Processo Constitucional Brasileiro e Direito Constitucional Pós-Moderno, Abboud não apenas apresenta a metódica estruturante de Müller com notável rigor conceitual, como também a articula com os dilemas mais sensíveis do direito contemporâneo brasileiro, marcado por crises de fundamentação, voluntarismo decisório e esvaziamento hermenêutico do pós-positivismo.
Em sua leitura sofisticada de Müller, Abboud [5] adverte que a superação do positivismo — que não pode ser entendida como um fim em si mesma — exige enfrentamentos profundos e contínuos. Não basta invocar princípios ou declarar a centralidade da Constituição como panaceia retórica. É necessário reconhecer, como ele destaca com base em Müller, que:
“(i) a norma não pode mais ser reduzida ao seu texto;
(ii) o ordenamento jurídico positivo sem lacunas é uma verdadeira ficção artificial;
(iii) a solução dos casos jurídicos não pode mais pretender ser realizada pelo silogismo lógico-formal, porquanto a decisão de cada caso deve ser estruturada e construída a partir dos dados linguísticos (programa da norma) e extralinguísticos (âmbito da norma), a fim de se alcançar a norma de decisão do caso concreto (não há norma em abstrato — sem problema a se solucionar, não há norma);
(iv) em suma, o pensamento pós-positivista não pode mais partir de uma cisão ficcional entre o jurídico e a realidade.”
Essa abordagem, que integra linguagem e mundo, norma e realidade, supera a velha dicotomia entre “questão de fato” e “questão de direito”, tão cara ao positivismo clássico. Como afirma Abboud, a partir da teoria estruturante:
“A norma não está contida na lei. Somente após a interpretação a norma é produzida. A norma é realizada na linguagem, diante da problematização, quando é contraposta aos fatos jurídicos e à controvérsia judicial que pretende solucionar.
Esse ponto é crucial porque a norma na visão da teoria estruturante não é algo estático em que o direito enxerga de fora a tensão entre vida e direito. A própria realidade social é trazida como elemento formador da aplicação do direito, a norma em si” [6].
Ou seja, conforme destaca Abboud, a norma não se confunde com texto legal (enunciado), e surge somente diante da problematização do caso concreto, seja real ou fictício. Todavia, o fato de se afirmar uma diferença entre texto e norma não implica uma cisão completa entre ambos. Pelo contrário: o texto normativo estabelece os limites para as variantes interpretativas que alcançarão a produção da norma.
Assim, nos lembra Müller que a normatividade não é uma qualidade intrínseca ou estática do texto normativo, mas sim “[…] um processo baseado no trabalho comprometido com o Estado de Direito e a democracia. Esse processo parte dos textos das normas (e dos casos jurídicos) e encontra neles os seus limites, de modo a ser discutido mais além” [7].
Ou seja, a construção das normas jurídicas, sempre situada na tensão entre elementos reais e normativos, deve ser entendida como um processo de racionalidade prática — uma teoria da prática jurídica cujo escopo é investigar as condições concretas para a realização do Direito, e não apenas sua aplicação técnica ou burocrática. Aqui reside o grande mérito do chamado paradigma pós-positivista, quando corretamente compreendido: não como uma etiqueta doutrinária vazia, mas como uma mudança profunda no modo de conceber a normatividade jurídica em sociedades constitucionais e democráticas.
Nesse sentido, Georges Abboud desempenha importante papel no contexto brasileiro ao conectar Müller às demandas práticas da jurisdição contemporânea, mostrando como a metódica estruturante oferece um modelo hermenêutico superior à lógica do livre convencimento motivado ou ao decisionismo judicial com roupagem principiológica. Sua obra é leitura obrigatória para quem deseja compreender os impasses do direito brasileiro atual e as promessas de um novo horizonte metodológico.
No Brasil, a teoria estruturante de Müller não é apenas fundamental para se romper com o equívoco de se considerar que a norma corresponde à própria lei, mas, também, trata-se de um aporte teórico precioso para a construção de uma adequada teoria dos precedentes. Isso porque, se no passado acreditava-se que a lei conteria a infinidade de solução dos casos, contemporaneamente, essa mística tem sido depositada na edição de enunciados gerais e abstratos pelos tribunais superiores, os quais trariam a solução pronta (norma) para deslindar uma multiplicidade de casos.
Lenio Streck iniciou um debate relevante sobre a criação de enunciados interpretativos, evidenciando a atualidade da teoria de Friedrich Müller para o direito brasileiro. Em 2015, Streck publicou texto criticando a elaboração de 62 enunciados pela Enfam, apontando que refletiam um paradigma pré-moderno ao tentar antecipar o sentido do novo CPC, como uma retomada do exegetismo ou do pandectismo. (texto aqui)
Em resposta, dois juízes defenderam os enunciados, argumentando que seria possível interpretar normas mesmo sem casos concretos, em uma analogia com o que Müller fala sobre casos fictícios. Streck rebateu mostrando que isso distorcia a teoria estruturante de Müller, cuja centralidade está na concretização da norma a partir do caso. Assim como Alvy Singer em Annie Hall, de Woody Allen, Streck convidou o próprio autor para que ele mesmo explicasse o que diz (ou não diz). Desse modo, o próprio Müller, por e-mail divulgado por Streck, confirmou que sua teoria não autoriza a fixação prévia de sentidos: a norma jurídica só surge pela concretização refletida no caso, mesmo que fictício.
Esse debate, embora centrado nos enunciados interpretativos sobre o novo CPC, se aplica também às práticas atuais dos tribunais superiores ao criarem teses abstratas. Segundo Müller, a norma resulta da interação entre texto e caso concreto. Assim, não importa se o enunciado vem da lei ou do tribunal: ele só ganha sentido na aplicação concreta.
Se consultássemos Müller hoje, ele reiteraria que teses e súmulas são textos, não normas. A teoria estruturante ensina que o direito não pode ser reduzido a enunciados abstratos a-históricos e desvinculados da realidade, especialmente em um paradigma pós-positivista que reconhece a centralidade da facticidade.
Friedrich Müller é um autor fundamental para quem deseja compreender o direito para além de sua superfície normativa. Sua teoria estruturante da norma jurídica oferece ferramentas potentes para elucidar a prática jurídica, mostrando que a norma não está pronta no texto, mas se constrói na applicatio. Por isso, vale a pena conhecer sua obra, seja diretamente ou por meio de excelentes leituras secundárias, como os livros de Lenio Streck e Georges Abboud. Em tempos de confusão entre texto e norma, sua leitura continua atual e necessária. Afinal, não há nada mais prático do que uma boa teoria — e Müller nos mostra justamente isso.
[1] Friedrich Muller. O Novo paradigma do Direito. Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes do Direito. São Paulo: RT, 2013.
[2] Lenio Streck. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta tema fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte, Letramento, 2017. Verbete Texto e Norma, p. 280.
[3] “o âmbito normativo não se limita ao puro empirismo de um recorte da realidade. […] como parte integrante da norma estruturante vista, ele só aparece quando o programa normativo assinala, no processo de interpretação prática e na aplicação de normas jurídicas, as estruturas básicas relevantes desse âmbito normativo, considerando o caso particular”. Friedrich Müller. Teoria estruturante do direito, São Paulo: Ed. RT, 2008, n. 2.XII, p. 249.
[4] Ronald Dworkin. Law’s Empire. Cambridge: Belknap, 1986.
[5]Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro. 4ed. São Paulo: RT, 2020.
[6] Georges Abboud. Processo constitucional brasileiro. 5. ed. rev., atual. e ampl. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 245.
[7] Ibidem, p. 249.
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