Opinião

Convenção de Montreal e declaração de valor: nova decisão do STF

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  • é advogado sócio fundador de Machado Cremoneze Lima e Gotas Advogados Associados mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos especialista em Direito dos Seguros em Contratos e Danos e em Direito Processual Civil e Arbitragem pela Universidade de Salamanca professor de Direito dos Seguros membro efetivo da Academia Nacional de Seguros e Previdência da Associação Internacional de Direito dos Seguros (Aida-Brasil) do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) da Ius Civile Salmanticense (Espanha) vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp) presidente do Instituto de Direito dos Transportes (IDTBrasil) membro do Clube Internacional de Seguros de Transportes (Cist) autor de livros de Direito dos Transportes e Direitos dos Seguros associado da Sociedade Visconde de São Leopoldo e laureado pela OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da profissão.

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  • é associado de Machado e Cremoneze – Advogados Associados.

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28 de junho de 2025, 6h35

Nos litígios de transporte internacional de cargas, poucos assuntos hoje são tão debatidos quanto a extensão da responsabilidade do transportador aéreo; discute-se se, em caso de avaria ou do extravio de carga, ele terá de indenizar todo o prejuízo ou apenas uma parte. A controvérsia é antiga, mas se acentuou a partir de 2017, quando o Supremo Tribunal Federal julgou o RE 636.313/RJ e definiu o Tema 210 de repercussão geral. Com a tese, a Convenção de Montreal passava a ter prevalência tanto sobre o Código de Defesa do Consumidor quanto sobre o Código Civil.

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bagagens na esteira do aeroporto; pessoas esperando

Isso acabou trazendo consequências para os casos em que se discute o descumprimento de contrato de transporte, uma vez que os dois Códigos são muito mais claros em sua defesa do princípio da indenização integral; já a Convenção dispõe de regras para limitar a responsabilidade do transportador a valores tarifados.

No Brasil, antes do Tema 210, as convenções internacionais não costumavam reger o transporte aéreo [1]; nem de passageiros, nem de cargas. Prevalecia, em ambos, o princípio da reparação integral. Se causou R$ 1 milhão em dano, o transportador pagaria R$ 1 milhão em indenização. Com o tema 210, o STF declarou: no transporte de passageiros, pode ser que a indenização tenha de ser reduzida.

Levando-se em conta a decisão que o gerou, o Tema 210 parecia se destinar a isto: extravio de bagagem. E fazia sentido. Nem sempre é fácil saber o que há dentro de uma mala extraviada, e independentemente disso, quando acionado pelo consumidor, o transportador arcava com tudo. Por outro lado, no transporte de cargas, a coisa transportada é documentada, tem descrição precisa e valor declarado; a lógica é outra.

Com o tempo, porém, o STJ passou a aplicar a ratio decidendi do precedente a todo tipo de transporte internacional; de cargas também. Em paralelo, o STF seguia caminho próprio — até coerente com o que havia dito desde o início —, isolando o tema 210 do transporte de carga, em que se mantinha intacto o princípio da reparação integral [2].

Logo depois, o STJ deu sinais de retorno ao entendimento anterior, especialmente nos casos em que figurava seguradora sub-rogada no polo ativo [3]. Mas foi o STF que, no fim das contas, mudou de posição: passou a considerar que o transporte de cargas também se submete à Convenção de Montreal. Nascia ali o tema 1.366, encerrando (por ora) a instabilidade hermenêutica [4].

Ficou acertado, enfim, que a Convenção de Montreal se aplicava ao transporte de carga. Isso não significa que a discussão acabou na Suprema Corte (ainda há ministros que entendem ser inadequado deixar que a Convenção comande o transporte de cargas). Nisso tudo, porém, o que mais importa é compreender que aplicar o tema 210 não significa, e jamais significou, limitar obrigatoriamente a responsabilidade do transportador.

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Dentro da Convenção de Montreal, a limitação tarifada sempre foi uma possibilidade, apenas; não uma necessidade. Dito de outro modo: a limitação está na Convenção, mas ela não é a Convenção. A distinção parece razoavelmente simples, mas nem sempre é vista desse jeito. De vez em quando, surgem interpretações até mais favoráveis aos transportadores do que a prevista pelo legislador.

Para se ter uma ideia: o próprio artigo 22.3 da Convenção de Montreal, que dispõe sobre a limitação tarifada no transporte de cargas, também admite que ela seja excluída; para isso, basta que haja uma “declaração especial de valor” ao transportador.

O que, na prática forense, seria essa declaração de valor?

Desde que o tema 210 chegou aos processos de transporte aéreo de carga foram surgindo dúvidas a esse respeito: não se sabia se seria necessário um documento intitulado ‘declaração especial de valor’ (interpretação literal), ou se bastaria que o transportador tivesse ciência do valor da carga por qualquer meio (interpretação teleológica).

Sobre isso já houve alguma discussão; juízes, tribunais estaduais e até o STJ se pronunciaram, mas sem a esperada uniformidade: em algumas decisões se admitia que qualquer prova de ciência valia e era suficiente para atingir a finalidade da norma; noutras se entendia que o transportador não estava ciente nem mesmo quando ele próprio informava o valor da carga no conhecimento de transporte — possibilidade esta que sempre nos pareceu um pouco curiosa. Mas até então não havia decisão do STF.

Agora há; e a mais justa possível.

A Suprema Corte voltou recentemente a reequilibrar o debate, definindo com clareza a interpretação que dispensa apegos formalistas e privilegia a finalidade da norma.

No ARE nº 1.186.944/SP, os ministros já haviam rejeitado a necessidade literal de um documento chamado “declaração especial de valor”, afirmando que “a própria Convenção garante uma gama ampla de comprovação dos valores transportados” e indicando “observar a integralidade da Convenção, e não apenas o trecho contendo expressão específica que denomina um tipo de documento específico”.

Mas foi no RE 1.525.098/SP que o Supremo Tribunal Federal — por meio do ministro Flávio Dino — enunciou, com todas as letras, que serve de prova da declaração de valor qualquer documento em que esse valor figure:

“[…] a comprovação do valor das mercadorias pode se dar por diversos meios, tais como o conhecimento de transporte, a invoice e o packing list, nos termos dos artigos 4º, 11 e 22 da referida Convenção […] os documentos constantes dos autos (HAWB, Commercial Invoice e Packing List) não apenas comprovam os valores das mercadorias transportadas, mas também demonstram que a embargada tinha plena ciência desses valores no momento da contratação e execução do transporte. Afasta-se, assim, a aplicação da limitação tarifada prevista no artigo 22, item 3, da Convenção de Montreal, assegurando-se a integral reparação do dano apurado.” […] (STF – EDcl no RE 1.525.098/SP, Rel. Min. Flávio Dino, DJE 14/05/2025).

O próprio STJ já reconheceu, no EREsp 1.289.629/SP, que a declaração de valor pode constar de documentos típicos de transporte. Afinal, se o transportador sabe do valor que carrega, por que razão deveria indenizar quantia inferior à perda que sabe ter causado?

Como dito agora pelo ministro Flávio Dino: constando dos autos o valor da carga — no conhecimento de transporte (AWB), nas faturas comerciais (invoices), no packing list ou em qualquer documento cujo acesso foi franqueado ao transportador —, ficará garantida a indenização integral.

Isso se deve sobretudo aos artigos 4º, 11 e 22.3 da Convenção de Montreal:

O artigo 4º admite que os dados do transporte, inclusive os essenciais à identificação da carga, constem não apenas do conhecimento aéreo, mas também de outros meios equivalentes, como recibos ou documentos eletrônicos. O artigo 11, por sua vez, confere valor probatório a esses instrumentos, presumindo, salvo prova em contrário, tanto a existência do contrato quanto as informações neles contidas.

Já o artigo 22.3 (iluminado pelos dois anteriores), ao prever a possibilidade de afastamento da limitação tarifada mediante declaração especial de valor, não exige forma específica: basta que o transportador tenha ciência do valor da carga, por qualquer documento idôneo a refletir o conteúdo da operação.

Transportador sabe o que está sendo levado e o quanto vale

A decisão é justa, e se originou em caso patrocinado pelos colegas do Almeida Santos – Advogados Associados, responsáveis pela bem-sucedida atuação no caso.

A tese — que eles defenderam e que há algum tempo também sustentamos — é simples: se os documentos da compra e venda da carga foram levados ao conhecimento do transportador, não há razão para exigir mais nada. Cumpre-se, assim, a exigência da Convenção, mesmo sem o chamado frete ad valorem. Além do mais, se o transportador recebe o frete originalmente estipulado e não exige nele qualquer ajuste, é porque reconheceu como justo, adequado e declarado o valor que lhe pagaram.

Em suma, por meio dos documentos já indicados, notadamente a fatura comercial, o transportador sabe o que está sendo levado e o quanto vale. Não pode, portanto, alegar ignorância. Esse reconhecimento é suficiente para atender à finalidade da norma, afastar a limitação tarifada e garantir o ressarcimento integral; solução que, aliás, se alinha ao entendimento contemporâneo da responsabilidade civil.

Nada disso impede, é claro, que ao longo de um litígio se invoquem outras teses já consolidadas em favor da reparação integral, como a conduta temerária do transportador ou as circunstâncias próprias à sub-rogação, que podem excluir a seguradora do alcance da Convenção (o próprio artigo 37, por exemplo, afirma que nenhuma de suas disposições afeta o direito de regresso).

Sobre uma das hipóteses, contudo, o STF acaba de ser suficientemente claro: quem sabe do prejuízo que causa não deve se surpreender ao ser chamado a arcar com ele.

 


[1] Cf. REsp 1289629/SP, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 03/11/2015

[2] Cf. Ag. Reg. No ARE 1.434.920/SP, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 25/09/2023, DJe 02/10/2023

[3] Cf. EDcl nos Embargos de divergência em RESp nº 1289629/SP, Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 18/06/2024).

[4] MINISTRO PRESIDENTE, RE 1520841 (Acórdão de mérito publicado). Aprovada em 04/02/2025.

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