STF, big techs e separação de Poderes: quem está legislando?
27 de junho de 2025, 11h21
A separação de poderes é, por definição, um dos pilares do Estado democrático de Direito. Mas no Brasil, esse pilar parece muitas vezes ser de papel. Desde a Constituição de 1988, o texto normativo assegura a independência entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. No entanto, a prática institucional revela outra história: intromissões frequentes, omissões convenientes e sobreposição de funções mostram que, por aqui, a separação de poderes é mais simbólica do que real.

Não é novidade. Durante o Estado Novo, o Executivo concentrou poderes e as demais esferas foram silenciadas. No regime militar, a separação era apenas formal. Com a redemocratização, esperava-se que os freios e contrapesos funcionassem, mas o que se vê é a continuidade de vícios estruturais: comissões parlamentares usadas como instrumentos políticos, o Executivo legislando por medidas provisórias, e o Judiciário decidindo sobre temas que deveriam ser debatidos no Parlamento.
Constituição simbólica: diagnóstico incômodo
O jurista Marcelo Neves conceitua esse fenômeno como “constituição simbólica”: normas que representam valores, mas que não têm efetividade (2018). É nesse contexto que se insere a separação dos poderes no Brasil. Está prevista, mas não se realiza. Está proclamada, mas não se cumpre.
E o Judiciário? Em tese, deveria ser o árbitro neutro entre os Poderes. Mas também ele tem oscilado entre dois extremos: ora assume protagonismo excessivo, decidindo sobre temas de política pública; ora se omite, mesmo diante de violações evidentes. Essa ambiguidade reforça a percepção de que a independência entre os poderes é um ideal, não uma prática.
ADPF 347, big techs e elasticidade funcional do STF
A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 347, que reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário, é emblemática por sua postura ativamente interventiva. Ao assumir a responsabilidade de coordenar a resposta institucional a uma crise histórica — a violação sistemática de direitos no sistema prisional —, o STF ultrapassou os limites da autocontenção e assumiu um papel central na formulação, monitoramento e fiscalização de políticas públicas. Esse movimento revela uma quebra no arranjo idealizado de separação entre os Poderes e explicita a disfuncionalidade institucional que marca o cenário político brasileiro.
Mas esse não é um episódio isolado. A mesma elasticidade funcional pode ser observada no julgamento em curso sobre a responsabilidade das plataformas digitais pelo conteúdo veiculado nas redes sociais. Aqui, o STF novamente ocupa um espaço que, em tese, caberia ao Legislativo: regulamentar os limites da liberdade de expressão, o dever de moderação das plataformas e a responsabilização civil por danos decorrentes de postagens.

A lacuna normativa — ou, mais precisamente, a paralisia legislativa — tem aberto caminho para que a Corte atue como legislador positivo, fixando parâmetros sobre o que deve ser removido, em quanto tempo, com quais consequências jurídicas e até mesmo sobre o modelo de negócios das big techs no Brasil. Tal como na ADPF 347, a atuação do STF surge como resposta à omissão dos demais Poderes, mas também levanta questões sobre os riscos da hipertrofia judicial.
Ambos os casos expõem a mesma patologia institucional: a transferência progressiva de decisões políticas para o Judiciário. Em vez de funcionar como árbitro das regras postas, o STF tem sido convocado (ou se permitido) a criar normas em contextos de inércia legislativa e fragilidade executiva. A consequência é a naturalização de uma lógica de substituição entre os Poderes, que pode até produzir efeitos simbólicos positivos, mas fragiliza a estrutura democrática.
Nominalismo, instrumentalismo e crise da institucionalidade
A Constituição de 1988 é generosa em promessas. Mas a realidade política brasileira é marcada por nominalismo — quando se enuncia um direito sem realizá-lo — e por instrumentalismo — quando a norma é usada apenas para fins estratégicos. A separação dos poderes, nesse cenário, serve para legitimar decisões centralizadas e reforçar relações de poder personalistas.
O uso recorrente de medidas provisórias pelo Executivo, a judicialização excessiva da política e a atuação seletiva do Ministério Público são sintomas de um Estado que opera mais por conveniência do que por convicção institucional. O que deveria ser um sistema de freios e contrapesos torna-se um jogo de empurra, no qual todos tentam exercer o poder sem assumir suas responsabilidades.
Considerações finais
A separação de poderes permanece como cláusula pétrea na Constituição de 1988, mas sua efetividade segue sendo uma promessa. A atuação do STF, tanto na ADPF 347 quanto no julgamento das big techs, reflete um Judiciário que preenche lacunas deixadas por um Legislativo paralisado e por um Executivo fragmentado. Mas esse protagonismo judicial não deve ser romantizado: ele revela, em última instância, a fragilidade do nosso pacto institucional.
O desafio contemporâneo não está em rediscutir a teoria da separação de poderes, mas em reconstituir as bases que a tornem exequível: estabilidade institucional, cultura democrática e compromisso com a legalidade. Enquanto os Poderes seguirem atuando de forma reativa, sobreposta e descoordenada, a democracia brasileira continuará refém do simbolismo constitucional.
A reconstrução passa não apenas por reformas normativas, mas por um novo pacto político e institucional, no qual o cumprimento da Constituição deixe de ser exceção e volte a ser regra.
Referências
ALBUQUERQUE, J. A. Guilhon, Montesquieu: sociedade e poder. In: WEFFORT, Francisco Correa (org.). Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática, 2001
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 347. Rel. Min. Marco Aurélio. Disponível em: aqui.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Homologação em processo estrutural na ADPF 347. Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 07 fev. 2025. Disponível aqui.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF reconhece violação massiva de direitos no sistema carcerário brasileiro. Disponível aqui.
NEVES, Marcelo. Constituição e direito na modernidade periférica: uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!