Opinião

O Tribunal Constitucional alemão e a suspensão do financiamento dos partidos políticos

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  • é advogado professor e autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (Forense 2007) Introdução ao Direito Constitucional (Forense 2008) Formação e Estrutura do Direito Constitucional (Malheiros 2011) e 10 Lições Sobre Carl Schmitt (Vozes 2014).

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27 de junho de 2025, 9h25

Uma das principais características do nosso tempo é a vida política online, acompanhada, com certas dificuldades, pelas tentativas do direito constitucional de enquadrá-la no seu sistema normativo. Na vida política online, em meio à ausência de responsabilização dos usuários, “o populismo, a desinformação, o ódio e o incitamento podem se espalhar rapidamente” [1]. Essa realidade gera uma sensação de “terra sem lei” que favorece as tendências antissistemas, convertendo a preservação das instituições democráticas no leitmotiv do constitucionalismo contemporâneo.

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Os mais sérios desafios da e-democracy são lançados pelo populismo e pelo discurso fascista. Daí surge uma participação política cujo objetivo é desmobilizar a democracia constitucional de forma violenta ou de dentro para fora, dando corpo, mais uma vez, às previsões de Karl Loewenstein sobre os perigos das estratégias antissistemas. Para lidar com o autoritarismo virtual e seu potencial desagregador, a Constituição reage com o princípio da democracia defensiva (ou responsiva) [2]. E essa reação também alcança o sistema partidário.

O Tribunal Constitucional Federal alemão, em janeiro de 2024, suspendeu por seis anos a possibilidade de financiamento público do partido A Pátria (Die Heimat) por suas constantes investidas contra a ordem constitucional e o regime democrático. Trata-se, de acordo com a corte, de um partido de extrema direita que se aproxima do projeto político nazista, defendendo, desde a sua fundação, em 1964, a formação de uma comunidade nacional (Volksgemeinschaft) de bases autoritárias e racistas.

O partido enfrentou uma tentativa de ilegalização ante o Tribunal Constitucional em 2003 (BVerfGE 107, 339). Mas o julgamento de mérito não avançou por uma questão ligada ao devido processo legal e ao Estado democrático de direito. Na Alemanha, existe, em nível federal e estadual, um órgão responsável pela proteção da Constituição: a Agência de Proteção da Constituição (Verfassungsschutz). No caso em questão, membros da agência se infiltraram na executiva estadual e nacional do partido, influenciando o processo de tomada das suas decisões.

Quando o pedido de ilegalização foi apresentado ao tribunal, ainda havia membros da agência infiltrados na agremiação. Em razão disso, o partido requereu que o processo fosse extinto. Sua continuidade necessitaria dos votos de dois terços dos membros da turma julgadora, maioria qualificada que não foi obtida. Em síntese, o tribunal entendeu que o processo não poderia ter continuidade pelo fato de afrontar o princípio do Estado democrático de direito previsto no artigo 20.3 da Lei Fundamental de 1949 (LF).

Em 2017, por sua vez, a ilegalização do partido não foi decretada porque a corte entendeu que sua atuação antissistema não tinha potencial para subverter a ordem democrática (BVerfGE 144, 20)[3]. O princípio da liberdade dos partidos políticos, segundo a corte, impõe a existência de “provas concretas e de peso que ao menos tornem possível o êxito da ação dirigida contra a ordem fundamental, livre e democrática” para justificar a ilegalização.

O partido A Pátria possui limitada relevância eleitoral, não tendo alcançado, nos últimos anos, o percentual necessário de votos (0,5% nas eleições federais ou europeias ou 1% nas disputas estaduais) para receber o financiamento público[4], mantendo-se em funcionamento através de doações, recebimento de heranças e outras fontes privadas. Em 2019, a título de exemplo, o partido recebeu cerca de 339 mil euros através de doações de filiados. O Tribunal Constitucional atuou de forma prospectiva e preventiva.

A decisão que suspendeu o financiamento do partido (BVerfGE 168,193) foi tomada pela segunda turma (Zweiter Senat) do tribunal, adotando os seguintes fundamentos:

  • a) equivalência de procedimentos para excluir um partido ou suspender seu financiamento público;
  • b) empenho contínuo do partido para eliminar a ordem constitucional democrática e livre, o que já havia sido estabelecido na decisão de 2017;
  • c) implementação da democracia defensiva (wehrhaften Demokratie), nos termos do artigo 21.3 da LF;
  • d) ausência de participação na formação da vontade política segundo o conceito de democracia previsto pelos artigos 20.1 e 20.2 da LF;
  • e) princípio da proporcionalidade, na linha do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Equivalência de procedimentos para proibir um partido ou suspender seu financiamento público

O procedimento para ilegalizar um partido ou suspender o seu financiamento é o mesmo porque seu ponto de partida, em ambos os casos, é a prerrogativa do Tribunal Constitucional de avaliar e decidir sobre a eventual condição de inconstitucionalidade do partido político, tomando como base os artigos 21.2 e 21.3 da Lei Fundamental. Se o partido vai ser excluído do sistema político ou ter o seu financiamento público suspenso é uma questão de gradação, de aplicação do princípio da proporcionalidade, que partirá, conforme o caso, do modo, da intensidade e da viabilidade da atuação do partido contra a ordem constitucional ou a existência da República Federal da Alemanha.

Empenho contínuo do partido para eliminar a ordem constitucional democrática e livre

A Lei Fundamental trata da exclusão do financiamento do partido de forma explícita no artigo 21.3. Perdem o financiamento os partidos que tentarem prejudicar ou eliminar a ordem fundamental livre e democrática, de um lado, ou colocar em perigo a existência do Estado alemão, de outro. Essa tentativa ocorre pelos objetivos da própria agremiação partidária ou pela atuação dos seus membros. De acordo com a decisão (BVerfGE, 168,193) a suspensão do financiamento pode ocorrer apenas no caso de partidos “cuja participação igualitária no processo de tomada de decisões políticas não seja parte do conceito constitucional de democracia” trazido pela Lei Fundamental. Trata-se, in casu, de uma participação contrária à democracia constitucional.

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A exclusão do financiamento ocorreu porque o Tribunal Constitucional constatou a violação da democracia constitucional pelo Die Heimat. De acordo com a decisão, o partido pretendia eliminar a ordem fundamental, livre e democrática, tanto no que se refere à dignidade humana quanto ao Estado de direito, apresentando, além disso, uma afinidade material ou essencial com o nacional-socialismo.

Nos termos do julgado, o partido atinge a dignidade humana porque defende a submissão do indivíduo à comunidade nacional e apresenta uma visível tendência racista e antissemita. Já seu ataque ao Estado de direito se manifesta através da afronta direta à Constituição, conjugada com a ideia de criar um grupo paramilitar para sua defesa e com ataques reiterados ao Poder Judiciário. Trata-se de uma agremiação partidária visivelmente identificada com ideias fascistas, incompatíveis, portanto, com a ordem constitucional alemã.

Implementação da democracia defensiva

O tribunal entende que “a proteção da democracia constitui uma razão objetiva para a diferenciação dos partidos sob a forma de exclusão do financiamento dos partidos”. O princípio da democracia defensiva está previsto no artigo 9.2 da LF e tem “por objeto — segundo o tribunal — garantir que os inimigos da Constituição não coloquem em perigo, prejudiquem ou destruam a ordem constitucional ou a existência do Estado, invocando as liberdades asseguradas pela Lei Fundamental e que estão sob a sua proteção”. A proibição do financiamento de um partido que ataca a ordem constitucional é um ato de proteção da democracia e da soberania popular.

Ausência de participação na formação da vontade política, segundo o conceito de democracia

A vontade política a que o Tribunal Constitucional se refere tem sua base material na LF. A vontade política só é válida quando observa o disposto nos seus artigos 20.1 e 20.2, ou seja, quando preserva a ordem constitucional plasmada na Lei Fundamental. O discurso partidário antissistema não é admitido no espaço público. A liberdade de expressão, por exemplo, não pode preponderar sobre a ideia constitucional de democracia porque ela é um direito fundamental tipicamente democrático. O abuso da liberdade de expressão pelos partidos ou por seus membros pode levar ao fim da democracia e à inevitável extinção dos direitos fundamentais. Por fim, a limitação da liberdade de expressão é um pressuposto lógico para a própria existência dessa forma de liberdade.

Princípio da proporcionalidade

O Tribunal Constitucional submeteu os atos do partido à prova da proporcionalidade. Partindo da experiência histórica de cada povo, essa prova “primeiro pergunta se existe um propósito legítimo, logo se há uma necessidade social urgente e finalmente se a medida é apropriada”. Superadas as duas primeiras fases, a corte se baseou na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para justificar a suspensão do financiamento: “Um Estado parte (…) persegue um fim legítimo quando se opõe a um partido político cujas atividades, por seus fins e pelos meios que utilizam, são incompatíveis com o conceito de sociedade democrática.” Porém, o Estado parte deveria “examinar se se poderiam considerar outros meios, incluindo as sanções financeiras, antes de proibir um partido.”

O caso analisado no artigo traz elementos para o aprofundamento da democracia defensiva ou responsiva no Brasil. A Constituição de 88 prevê a democracia responsiva em seu artigo 17, quando exige que os partidos políticos resguardem o regime democrático e os direitos fundamentais. A Lei de Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) e a Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97), por outro lado, não tratam da suspensão do Fundo Partidário ou do Fundo Especial de Financiamento de Campanha por ataques das agremiações partidárias à democracia. Há uma lacuna legislativa.

A legislação não prevê esta hipótese de suspensão por atuação antissistema porque pressupõe-se que os partidos políticos cujos estatutos foram regularmente registrados no TSE respeitam a democracia e os direitos fundamentais. No entanto, essa presunção é juris tantum. Se o artigo 17 da Constituição permite que um partido seja extinto por investidas contra a democracia e os direitos fundamentais, a aplicação do princípio da proporcionalidade viabilizaria a suspensão do financiamento público como medida intermediária. A ausência de previsão legal não impede a imediata aplicação da medida. Mas a suspensão só pode ser imposta em situações excepcionais e com base numa interpretação restritiva. Proteger a Constituição contra os partidos antissistemas é uma exigência normativa da e-democracy.

 


[1] Isabelle Borucki et al. Die digitalisierte Demokratie. Ein Überblick. Zeitschrift für Politikwissenschaft, n.° 30, 2020, p. 165.

[2]  A democracia responsiva se baseia na ideia de defesa da própria democracia e também na necessidade de ela se adaptar aos novos desafios colocados pela vida política online. Sobre o conceito de democracia responsiva, cf. aqui.

[3] Na decisão de 2017 (BVerfGE 144, 20), o tribunal entendeu que esse potencial lesivo concreto em relação ao regime democrático deveria decorrer de uma avaliação global da situação da agremiação, analisando “a situação do partido (filiação e desenvolvimento, estrutura organizacional, grau de mobilização, capacidade de campanha, situação financeira), seu impacto na sociedade (resultados eleitorais, publicações, alianças, bases de apoio), sua representação em cargos e mandatos, os meios, estratégias e medidas que utiliza, bem como todas as outras circunstâncias que possam fornecer informações sobre se a concretização dos objetivos prosseguidos pelo partido parece possível.”

[4] O partido perdeu o direito de receber financiamento público devido ao seu baixo desempenho nas eleições federais de 2021 e nas eleições que ocorreram nos Estados de Berlim e Meclemburgo-Pomerânia Ocidental, não alcançando o percentual previsto no art. 18.4 da Lei de Partidos Políticos. O baixo desempenho se repetiu nas eleições posteriores.

Autores

  • é advogado, professor e autor dos livros Fundamentos do Direito Constitucional (Forense: 2007), Introdução ao Direito Constitucional (Forense: 2008),Formação e Estrutura do Direito Constitucional (Malheiros: 2011) e 10 Lições Sobre Carl Schmitt (Vozes: 2014).

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