Inteligência artificial: quando a informação não é saber
27 de junho de 2025, 18h27
Todo momento de transição é um perigo! Assemelha-se a alguém que, diante de uma bifurcação, precisa optar por um dos caminhos que as circunstâncias lhe impõem, mesmo sem desejá-lo.

Hoje, na área da sociologia — dentro de uma compreensão bastante ampla —, dirigimo-nos a passos largos a uma dessas “bifurcações”, cujo rumo a ser escolhido resultará em consequências indeléveis para cada indivíduo e, por conseguinte, para a nação.
Falo da inteligência artificial [1].
Sobre esse tema, tão controverso quanto tentador, incidirá maior luz se o compararmos com aquela guinada ocorrida nos idos tempos de Gutenberg — momento de transição igualmente perigoso para a humanidade…
A respeito daquele contexto, certo literário de aguçada observação, contrapondo a era das catedrais com a da tipografia, escrevera com acerto: “O livro matará o edifício!” Com efeito, se as catedrais significavam uma mostra da inteligência humana esculpida em pedra, o homem daquela época pareceu preferir consignar seu gênio mais na imprensa do que na arquitetura, crendo ser esta menos duradoura do que aquela.
Movido pelo êxito da novidade, a humanidade abandonou séculos de pensamento refletidos nos pórticos de seus melhores templos para escolher a letra célere e passageira impressa em folhas de papel.
Mas não tinha muito o que fazer, pois o caminho estava escolhido, e o gênio de Gutenberg — sem o querer — enquanto disseminava ideias obliterava civilizações.
Mas sob este pensamento primeiro, acredito haver outro, novo, corolário menos visível e mais sutil, de cunho filosófico e moral, que talvez muitos pressintam, mas não consigam exprimir, e é de que quando mudam as formas do pensamento humano, são suas expressões que se alteram. Assim, se a humanidade foi uma até a invenção da imprensa, com mais razão podemos dizer que será outra depois do ingresso da IA.
Não quero ser avesso ao advento de qualquer elemento novo, mas apenas chamar atenção ao fato de que, no caso da IA, o problema que se coloca é muito análogo ao que se passou na época de Gutenberg: não se tratava tanto de interrogar se imprimir livros era uma coisa boa ou má — os benefícios eram evidentes —, mas sim questionar o que era impresso nos livros…

Neste contexto, talvez conviessem melhor as indagações: o que temos permitido à IA? Ou, o que temos cedido a ela, de nossas responsabilidades intransferíveis? Temos preferido que ela pense por nós? Ou que somente nos ampare dentro dos limites cabíveis a um elemento externo falível? Estaria a IA, em tão pouco tempo, desrespeitando os ritmos naturais do conhecimento humano?
Informação e saber
Com o uso da IA, sem nos darmos muito conta, cada um começa a deixar que seja escrito em si – no interior indelével de nossas faculdades cognitivas – um livro bom ou mau, dependendo do uso que lhe dispensarmos; este “livro”, entretanto, talvez venha a solapar os fundamentos do edifício dos bons princípios que levamos décadas, ou até uma vida inteira, construindo.
Assim, da sofisticada produção da inteligência humana talvez germine não só a IA, mas também a disseminação generalizada da ignorância, se permitirmos que se imprimam em nosso interior caracteres tipográficos de uma concessão desregrada e desmesurada [2].
Em outras palavras, não culpemos a Gutenberg pelo seu gênio, mas questionemos aos maus usuários de sua invenção o terem publicado maus livros. Tivesse a sociedade daquele século 16 escolhido que a imprensa recém-nascida reproduzisse tão somente palavras afins com a beleza de suas edificações cristãs, teriam prosperado as Letras e a Arquitetura.
Com a IA — essa “bifurcação de nosso século” —, duas vias estão diante de nós, oxalá não prefiramos optar pelo atalho em detrimento do caminho verdadeiro, o único capaz de nos conduzir ao ponto final, ainda que custe mais pensamento.
Deveras, a IA nos prova, cada vez mais, que obter informação não significa necessariamente saber. Disso, aliás, Tomás de Aquino já nos tinha alertado, quando pontuou que “a palavra inteligência implica um conhecimento íntimo; inteligir é algo como ler dentro” [3].
Portanto, a regra é clara e simples como o pensamento do Aquinate: quando quisermos ler o sentido superficial e externo das coisas, usemos a IA — com critério! [4] —; mas quando quisermos ler as coisas desde dentro, não abandonemos nossa própria inteligência, pois é o maior presente que Deus nos deu.
[1] Em realidade, o tema inteligência artificial vem sendo aventado há décadas, embora fosse considerado bastante intangível, quase “crença tecnológica”. No entanto, tal “crença” passou a se materializar a partir da década de 1980, mediante o notável concurso de Edward Feigenbaum, considerado o criador dos “sistemas especialistas” – denominação primária daquilo que hoje chamamos inteligência artificial. Em 1994, Feigenbaum ganhou o prêmio Turing por sua grande contribuição ao que era considerado o “campo emergente” da computação, e pela demonstração de sua importância, como aliás vem ocorrendo com a inteligência artificial na atualidade.
[2] No que tange à regulamentação do uso da IA a nível nacional, interessa notar o seguinte: “No Brasil, para além do PL nº 2.338/2023 – que tramita no Congresso e visa instituir o Marco Legal da IA –, observam-se também significativos avanços em âmbito subnacional: Alagoas (Lei n. 9.095.2023) e Goiás (LC nº 205/2025) já regulamentam pontualmente o uso ético da IA no setor público; ainda na esfera estadual, Paraná adotou um Plano de Diretrizes da IA, e São Paulo discute o PL nº 180/2025, que autoriza a implantação voluntária de sistemas inteligentes de monitoramento por reconhecimento facial para apoio à segurança pública. No âmbito municipal, Curitiba aprovou a Lei nº 16.321/2024; São Paulo implementou o programa Smart Sampa, que utiliza IA e reconhecimento facial para monitoramento urbano e policiamento preditivo; São Leopoldo inovou com a ferramenta LegIA no Legislativo; e Goiânia retoma neste ano a tramitação do PL 240/2023. São iniciativas legislativas que demonstram que os entes subnacionais brasileiros, ainda que de forma heterogênea, começam a se mobilizar frente aos desafios impostos pela IA” (cf. Carvalho, André Castro; Ferro, Murilo Ruiz; Melo, Felipe Luiz Neves Bezerra de. Aqui).
[3] Tomás de Aquino. Summa Theologiæ, II-II, q. 8, a. 1. São Paulo: Loyola, 3. ed., 2012, v. 5, trad. Loyola. (Itálicos do original). Algo que excede os limites deste artigo, mas que convém ter em conta é o seguinte: São Tomás adota, em sua quase totalidade, os pressupostos aristotélicos acerca da inteligência, desenvolvendo-os, por exemplo, em seus Comentários aos livros da Metafísica e nas Questões disputadas sobre as potências (cf. Tomás de Aquino. Sententia libri Metaphysicae, liber I-XII. Disponível aqui. Acesso em: 30 jun. 2025; id. Quæstiones disputatæ de potentia. Textum Taurini, 1953. Disponível aqui).
[4] Neste sentido, ler também a recente mensagem do Papa Leão XIV aos participantes da 2ª Conferência anual de Roma sobre Inteligência Artificial, ética e governo corporativo. Disponível aqui.
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