Estampilhas, computadores e direito tributário
27 de junho de 2025, 20h37
No passado, o sistema tributário brasileiro, dizia Becker [1], era estruturado de acordo com a forma e a cor das estampilhas. Passados os anos, aquilo que antes era objeto inconfundível da burocracia fazendária brasileira — o selo — tornou-se artefato de coleção e de deleite de entusiasmados filatelistas. Até os menos acostumados com estas figuras são seduzidos pela curiosidade de observar as diminutas imagens e detalhes que costumavam colorir um tempo passado. Se austeramente sentado à mesa com uma pinça à mão, colocar os pequenos papéis picotados sobre um filigranoscópio, ligar uma poderosa lâmpada de LED e depois levar uma encorpada lupa aos olhos, o tributarista-filatelista irá se deparar com o microcosmo que regia a relação jurídico tributária do passado.

Se o tributarista-filatelista se fascinar pelos vetustos quadradinhos de selos fiscais, poderá ainda se armar com esquisitos equipamentos: um odontômetro para contar os picotes, uma guilhotina para corte, potinhos de benzina retificada para observar filigranas, livros classificadores, catálogos e até mesmo uma lâmpada ultravioleta. Munido de toda esta equipagem, pode rumar às feiras de rua, lojas especializadas e — se tiver coragem e know-how — até mesmo leilões. Após comprar centenas de milhares de selos fiscais, contar todos os picotes, realizar estudo minucioso e classificá-los com uma lógica que deixaria até mesmo o próprio Aristóteles estarrecido, o tributarista-filatelista então estaria satisfeito. Poderia retornar, finalmente, ao seu escritório e voltar a ser somente tributarista.
Uma vez sendo novamente somente tributarista, perceberia que algo tinha mudado no mundo tributário. Perceberia que os tributos atuais nada têm a ver com os tributos antigos. Abriria seu catálogo da década de 1930, por exemplo, e leria espécies de tributos que nunca ouvira falar: “Taxa de Assistência aos Menores”, “Taxa de Aposentadoria”, “Selo Policial”, “Selo de Procedência Ambiental”, “Taxa de Educação e Cultura”. Para onde tinham ido estes tributos? As cores acabaram. Os tributos deixaram de ser coisas reais, deixaram de ser um papel gravado. Agora são fictos números, confusas leis, decretos, instruções normativas, portarias etc. Se antes era necessário grudar os selos e estampilhas em contratos, documentos e até mesmo em coisas, agora são necessários sites, softwares da receita federal, estadual e municipal, cupons fiscais, DCTFWeb 2.5, SPED, ECD, ECF, validadores digitais, certificados digitais, tokens e é claro, um computador com memória RAM suficiente e com o último sistema operacional lançado no mercado.
Arrecadação mais racional e eficaz
Toda essa modernidade e forma tech de tratar os tributos é fruto de uma tentativa de supostamente tornar a arrecadação racional, imparcial, eficaz, célere. E diriam os mais ousados que torna tudo mais simples (se você tiver no mínimo dez contadores à sua disposição e milhares de agentes fazendários). E é só o começo. Logo mais as poderosíssimas inteligências artificiais conseguirão substituir os agentes fazendários nas profundas e complexas análises. Os infalíveis (supostamente), imparciais (hipoteticamente) e incorruptíveis (teoricamente) robôs fazendários serão implacáveis.
E o contribuinte? Bom, o contribuinte terá que ser igualmente perfeito. Terá que ser igualmente hi-tech, assinar os pacotes das inteligências artificiais de ponta disponíveis e também contratar operadores, programadores (igualmente cibernéticos) e técnicos especializados. Talvez seja possível demitir algum contador e substituí-lo por um ou dois analistas de tecnologia da informação. Talvez seja possível demitir todo mundo — os agentes fazendários, os contadores, os advogados tributaristas e os juízes da vara da fazenda pública — e substituir todos por um laptop-tributário (isento de contribuição previdenciária patronal).
Não existirá mais relação direta entre contribuinte e receita, entre sujeito ativo e sujeito passivo. Todos serão intermediados por inteligências artificiais. A hipótese de incidência tributária será substituída pelo “Algoritmo de Incidência Tributária”, os critérios da norma jurídica tributária serão escritos em C++, java, python, ou coisa parecida. O clássico Curso de Direito Tributário do Paulo de Barros Carvalho terá que ter edição póstuma revista e atualizada (somente em e-book) com alterações práticas nos conectivos lógicos entre o descritor e o prescritor da norma tributária.

Enfim, atingiremos a desumanização total do fenômeno tributário. Tudo que é falho, tudo que é torto, tudo que é demasiadamente humano será pouco a pouco podado, formando um jardim sem flores e sem cores.
Problemas de programação no sistema futurista
Isonomia tributária, capacidade contributiva, vedação ao confisco, legalidade, anterioridade e todos os demais princípios serão meros problemas de programação. Se o contribuinte se sentir injustiçado mesmo com tamanha perfeição no sistema tributário futurista, poderá peticionar à delegacia da receita federal online e obter a sentença em alguns milissegundos. Poderá ainda recorrer ao Carf automaticamente, na mesma plataforma. Os robôs que representam o contribuinte e os robôs que representam a receita emitirão um acórdão instantâneo. As eventuais discordâncias dos robôs pro-fisco e robôs pro-contribuintes serão resolvidas por um voto de qualidade de um robô imparcial (vinculado ao Ministério da Fazenda).
Além disso, todas as decisões serão reverentemente respeitadas. Como poderia eu, contribuinte, ser mais inteligente que um computador? Talvez faça sentido cálculo por dentro, tributos na base de cálculo de outros tributos, falta de atualização da tabela do imposto de renda etc. etc. Talvez tudo isso faça muito sentido e na verdade sou eu, o contribuinte, muito burro frente à mente infalível do computador da receita federal do futuro.
Justiça imediatista
O Judiciário será igualmente perfeito. Sentenças automáticas e acórdãos instantâneos. Em um momento inicial, entretanto, os programadores terão absurda dificuldade em criar o Superior Tribunal Cibernético Federal (STCF), já que os agentes de inteligência artificial terão entraves em absorver a lógica das decisões do STF. Alguns problemas pontuais precisaram ser corrigidos “à mão” pelo programador. Por exemplo, como o STCF foi abastecido com os arquivos do STF, as decisões monocráticas e os acórdãos estranhamente sempre são favoráveis ao requerente quando este está vinculado a algum escritório de advocacia de esposas de antigos membros do tribunal. Como robôs não amam e não contraem matrimônio, não faria sentido manter esse output (é o que vai dizer o memorial descritivo do programador-chefe do Judiciário).
É o futuro. É o progresso. Os selos fiscais e o sistema tributário atual serão meras incursões históricas. Serão apenas resquícios de um tempo esquisito, primordial e irracional. As pessoas do futuro apontarão o dedo para nós e dirão “olha como eram burros e insensatos!”, e ficarão aliviados por viver em um mundo supostamente evoluído.
Voltado à sua coleção de selos fiscais, o tributarista-filatelista se depara com alguns selos, emitidos entre 1937 e 1940 em São Paulo. Na parte superior, um brasão com espada ao meio, dividindo um S e um P, com os ramos de louro e carvalho às laterais. Em volta, uma faixa quadrada diz “imposto sobre vendas e consignações”, seguido de um valor em réis e com a informação que pertence ao “Thesouro do Estado de São Paulo”. Na estampilha falta a inscrição, para o horror dos heraldistas, do “pro brasilia fiant eximia” (pelo Brasil, faça-se o melhor), talvez seja proposital ou talvez não coubesse no milimétrico papel. É um artefato pré-histórico do ICMS, sua forma coisificada. Eram isso os tributos? Então nossos contribuintes ancestrais tinham que colocar os sapatos, ceroulas, calças de alfaiate, abotoar a camisa, dar nó em gravata, sair de casa, pegar o bonde até a repartição arrecadadora de seu distrito fiscal, somente para comprar selos coloridos? Pensa o tributarista-filatelista.
Cansado de pensar e refletir, fecha seu livro classificador (capa preta de couro) e exclama a si mesmo: “como eram burros e insensatos”! E fica aliviado por viver no mundo evoluidíssimo dos sites, softwares da receita federal, estadual e municipal, cupons fiscais, DCTFWeb 2.5, SPED, ECD, ECF, validadores digitais, certificados digitais, tokens, PER/DCOMP Web, eSocial …. (ad infinitum).
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