Opinião

Autonomia dos estabelecimentos para fins de ICMS e o Convênio 109/24: conflitos e impactos

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27 de junho de 2025, 21h45

Muito se tem debatido nos últimos meses sobre a (não) incidência de ICMS nas remessas realizadas entre estabelecimentos do mesmo contribuinte e seus impactos após a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 49, ocasião em que a corte fixou que, de fato, não há incidência sobre tais operações, uma vez que nas referidas transferências não há a ocorrência de fato gerador a ensejar a tributação pelo ICMS.

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mulher fazendo cálculos na calculadora

Uma das questões relevantes para a aplicação do ICMS é a definição do estabelecimento responsável pelo recolhimento do imposto, bem como a possibilidade de aproveitamento de créditos relativos às operações e prestações anteriores. Nesse sentido, a Lei Kandir estabelece, em seu artigo 11, que o local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto, é o do estabelecimento onde se encontre a mercadoria no momento da ocorrência do fato gerador, ou o do estabelecimento que transfira a propriedade ou o título que a represente, entre outras hipóteses.

Além disso, o artigo 20 da mesma lei assegura ao contribuinte o direito de creditar-se do imposto anteriormente cobrado em operações de que tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de comunicação.

Essas disposições consagram o princípio da autonomia dos estabelecimentos para fins de ICMS, segundo o qual cada unidade do contribuinte, localizada em território nacional, é considerada um sujeito passivo distinto, com direitos e obrigações próprios, independentemente da existência de uma pessoa jurídica única. Esse princípio tem sido reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que já decidiu, por exemplo, pela inconstitucionalidade de normas que pretendiam atribuir a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS a estabelecimentos de mesma titularidade localizados em outro estado (ADI 1.851/AL), ou que vedavam o aproveitamento de créditos de ICMS nas operações interestaduais entre filiais (ADC 49).

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No entanto, esse princípio tem sido desafiado por algumas normas editadas pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), órgão que reúne os secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal, com o objetivo de harmonizar a legislação tributária estadual e celebrar convênios sobre matéria de ICMS. Um exemplo recente é o Convênio ICMS 109/24, publicado em 7 de outubro de 2024, que dispõe sobre a remessa interestadual de mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade, e que traz disposições que podem impactar a autonomia dos estabelecimentos e gerar conflitos jurídicos e práticos para os contribuintes.

O Convênio ICMS 109/24 foi editado com o propósito de regulamentar as remessas interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade, em conformidade com o disposto nos §§ 4º e 5º do artigo 12 da Lei Kandir, na redação dada pela Lei Complementar nº 204/2023, e, teoricamente, em atenção ao determinado pelo STF na ADC 49.

Esses dispositivos estabelecem que não se considera ocorrido o fato gerador do ICMS na saída de mercadoria de estabelecimento para outro de mesma titularidade, mantendo-se o crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte, inclusive nas hipóteses de transferências interestaduais em que os créditos serão assegurados pela unidade federada de destino, por meio de transferência de crédito, e pela unidade federada de origem, em caso de diferença positiva entre os créditos pertinentes às operações e prestações anteriores e o transferido.

Possibilidade de conflitos com a legislação e com a jurisprudência do STF

Além disso, esses dispositivos permitem que, alternativamente, o contribuinte opte por equiparar a transferência de mercadoria a uma operação sujeita à ocorrência do fato gerador de imposto, para todos os fins.

Contudo, o convênio exige que tal opção – pela transferência dos créditos ou pela equiparação à operação tributada – será anual, irretratável para todo o ano-calendário, e alcançará todos os estabelecimentos do contribuinte localizados no território nacional, devendo ser registrada no Livro de Registro de Utilização de Documentos e Termos de Ocorrências de todos os estabelecimentos do mesmo titular, e que a renovação da opção será automática a cada ano, até que se consigne opção diversa (cláusula sexta, § 2º).

Assim, o Convênio ICMS 109/24, ao pretender regulamentar as remessas interestaduais de mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade, pode gerar conflitos jurídicos com a legislação tributária federal e com a jurisprudência do STF, que reconhecem a autonomia dos estabelecimentos para fins de ICMS.

À priori, a limitação da obrigação da unidade federada de origem em garantir a transferência completa dos créditos de ICMS relativos às operações e prestações anteriores, obrigando-a a assegurar apenas a diferença positiva entre o crédito acumulado e o valor da operação de transferência, pode violar o princípio da não-cumulatividade do imposto, previsto no artigo 155, § 2º, I, da Constituição, e o direito do contribuinte de creditar-se do imposto anteriormente cobrado, previsto no artigo 20 da Lei Kandir.

Essa limitação pode impedir que o contribuinte transfira a totalidade dos créditos acumulados em razão das operações e prestações anteriores, que deveriam ser mantidos em seu favor, conforme o § 4º do artigo 12 da Lei Kandir, e que poderiam ser utilizados para compensar débitos futuros do imposto, reduzindo a sua carga tributária. Além disso, essa limitação pode criar uma distorção entre as unidades federadas de origem e de destino, que poderiam se beneficiar de uma parcela maior do imposto, em detrimento do contribuinte.

Além disso, a definição do crédito a ser transferido como o imposto apropriado referente às operações anteriores, relativas às mercadorias transferidas, limitado ao resultado da aplicação de percentuais equivalentes às alíquotas interestaduais do ICMS sobre o valor médio da entrada da mercadoria em estoque, o custo da mercadoria produzida ou a soma dos custos da mercadoria não industrializada, conforme o caso, pode violar o princípio da legalidade tributária, previsto no artigo 150, I, da Constituição, e o conceito de base de cálculo do imposto, previsto no artigo 13 da Lei Kandir.

Essa definição pode implicar uma alteração da base de cálculo do imposto, que, segundo a Lei Kandir, é o valor da operação ou da prestação, e não o valor da entrada ou do custo da mercadoria. Além disso, essa definição pode contrariar o princípio da legalidade tributária, que exige que os elementos essenciais da obrigação tributária, como a base de cálculo, sejam definidos por lei complementar, e não por convênio entre os estados.

Por fim, a opção pela equiparação da transferência de mercadoria a uma operação sujeita à ocorrência do fato gerador de imposto de forma a alcançar necessariamente todos os estabelecimentos do contribuinte em território nacional pode violar o princípio da autonomia dos estabelecimentos para fins de ICMS, previsto no artigo 11 da Lei Kandir.

Isso porque, de acordo com a autonomia dos estabelecimentos prevista na Lei Kandir, os estabelecimentos do contribuinte, por serem considerados unidades autônomas para fins de ICMS, deveriam ter a liberdade de escolher a melhor forma de gerir os seus créditos e débitos do imposto, de acordo com as suas necessidades e estratégias, e não ficar sujeitos a uma opção única e irretratável para todos os estabelecimentos do mesmo titular.

Assim, o Convênio ICMS 109/24, ao regulamentar a transferência de mercadorias entre estabelecimentos de mesma titularidade, impõe restrições que podem conflitar com princípios constitucionais e normas federais, especialmente no que se refere à não-cumulatividade do ICMS, à autonomia dos estabelecimentos e à legalidade tributária. As limitações à transferência de créditos e a obrigatoriedade de uma opção única e irretratável para todos os estabelecimentos do contribuinte podem gerar insegurança jurídica e distorções na distribuição do imposto entre as unidades federadas.

Diante desse cenário, é possível que as disposições do convênio venham a ser questionadas judicialmente, à luz da jurisprudência consolidada do STF e dos princípios que regem a tributação pelo ICMS, sendo fundamental que os contribuintes acompanhem os desdobramentos dessa regulamentação e avaliem estratégias para mitigar seus impactos.

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