A segunda era Trump e o Direito Penal Econômico
27 de junho de 2025, 6h08
Os motivos da elaboração do presente artigo estão nos surpreendentes acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos a partir da eleição do presidente Donald Trump, com possíveis impactos no Direito Penal Econômico. A segunda gestão do republicano é um fenômeno midiático, seja pelo agressivo combate à imigração ilegal, pelo exotismo de seu círculo pessoal no governo, pelo constante uso de declarações públicas, falas diretas e posições geopolíticas de grande ambiguidade.

Donald Trump exerce seu segundo mandato na presidência dos Estados Unidos de modo extremamente diferente de seus antecessores. A Casa Branca distancia-se das práticas republicanas costumeiras quando o novo presidente passa a cercar-se de amigos e parceiros, com quem mantem relações pouco institucionais, tornando públicas em redes sociais inclusive ofensas pessoais. O que está ocorrendo hoje em Washington tem potencial de alteração substancial da economia e do Direito em todo o mundo, tendo em vista a posição de liderança mundial ocupada pelos EUA.
Desde a queda do muro de Berlim, um fato que pode ser considerado o marco histórico do fim da grande guerra mundial do século 20, tem-se como vencedor o sistema capitalista liberal democrático, liderado pelos EUA. Isso propiciou ao gigante do norte consolidar-se como o maior protagonista da economia mundial, com riqueza e poderio bélico incomparáveis. De se apontar que, mesmo com o surgimento de um novo rival, a China, os países, com raras exceções, vivem sob a égide do capitalismo, num sistema de liberalismo econômico difundido e patrocinado pelos EUA.
Importante observar que os EUA fomentaram e implementaram de forma metódica, desde 1945, uma nova versão da pax romana imperial, a pax americana, no sentido de unir culturas e povos diversos sob as regras de comércio (Direito) e a língua dos negócios (antes o latim, agora o inglês). A civilização romana e seu modo de viver acabavam por se firmar com essas ferramentas secundárias à imposição bélica, assim como hoje, no pós-guerra, o jeito yankee de fazer negócios, consumir e viver.
Soft power e soft law
O dólar americano virou a moeda base para as trocas comerciais internacionais, enquanto os EUA investiam em planos de desenvolvimento econômico e reconstrução do Japão, de recuperação e integração da Europa, no Plano Marshall, envolvendo-se em inúmeros conflitos bélicos da guerra fria (como Coreia, Vietnã etc.) e em questões políticas dos demais países, tudo isso em paralelo a um minucioso trabalho de bastidores, conhecido por soft power, em que os valores e a cultura norte-americanos eram inoculados aos poucos à população de todo o planeta.
Seja pela força de sua produção de entretenimento e arte, vendendo o estilo de vida, seja pela abertura de suas escolas e universidades aos estrangeiros, a ideia de espalhar o “sonho americano” tinha como mote a facilitação dos negócios do seu empresariado. O ápice desse momento histórico, no hodierno, recebeu o nome de globalização. Tal processo incrementou-se ainda mais, potencializado pelo rápido desenvolvimento das tecnologias de informação.
Durante esse processo, para assegurar os investimentos dos cidadãos americanos nessa grande expansão territorial comercial, na formação do império, consubstanciado num mercado global, necessário se tornou a diminuição dos riscos aos investidores. Impôs-se e fomentou-se, assim, a adoção, pelos países da comunidade internacional, de inúmeras políticas assecuratórias contra concorrências desleais, localismos nacionais, proteções de patentes e esforços anticorrupção.

Inúmeras instituições surgiram nesses 70 anos, desde 1945, como o G7, o Banco Mundial, o FMI, a OCDE, a OMS, o Gafi, entre outros, que não só fomentam o desenvolvimento e a livre iniciativa, mas também sugerem, na forma da chamada soft law, as diretrizes legislativas aos países da comunidade internacional. Isso pois, as sugestões de referidos órgãos supranacionais são orientações que, devidamente seguidas, acabarão por premiar e chancelar aqueles países seguidores com benesses em rankings econômicos e maiores aberturas para recebimento de investimentos e participação efetiva nos referidos organismos.
Em suma, mais benesses e riquezas locais advindas do abraço ao sistema interligado da produção internacional. Tais orientações acabam por modificar, de forma significativa, as legislações locais dos países. A OCDE, por exemplo, transformou-se num clube da elite mundial de países mais ricos. Trata-se de uma organização à qual o Brasil tenta, há muito anos, filiar-se como membro, mas ainda sem sucesso na complementação das dezenas de diretrizes prévias a serem completadas para sua admissão.
Positivação de institutos do sistema norte-americano
Tem-se, assim, no Brasil, a implementação de diversos esforços de gestão pública para se acomodar às linhas da globalização, dentre eles, a aprovação de leis por pressão da OCDE. Vale aqui citar a Lei 12.850 de 2013, Lei de Organizações Criminosas e a Lei 12.846 de 2013, Lei Anticorrupção, entre outros diplomas.
Da mesma forma, os organismos internacionais acabam compelindo as nações às assinaturas de tratados e convenções internacionais, de modo a compelirem os países signatários às adoções legislativas que os obrigarão a seguir um padrão internacional de coibição de atos lesivos e à prática de outros que consideram salutares ao desenvolvimento internacional. É a chamada hard law, que tem força de imposição legal pelos tratados e convenções internacionais, ao passo que a soft law tem a força da “sugestão premiada”.
A globalização é o resultado do interesse liberal norte-americano desenvolvido com afinco após 1945, ficando perceptível no Brasil, país de tradição civil law (direito construído nas bases romano-germânicas da Europa continental) as influências da common law (direito europeu insular britânico e dos EUA). Essa intromissão da common law no sistema brasileiro de direito vem provocando constantes modificações na estrutura do Direito Processual Penal e no Direito material penal pátrios [1]. Ou seja, o sistema brasileiro de Direito está caminhando em direção a um sistema misto, criado entre as duas vertentes, continental e insular, algo bem problemático.
No Brasil, é visível a positivação e adoção de institutos corriqueiros do sistema norte-americano de Direito, como a transação penal, os acordos de não persecução penal, as delações premiadas, as infiltrações de agentes, as ações mais livres do Ministério Público, assumindo-se como parte, desvinculando-se cada vez mais de suas funções como custos legis, as utilizações de institutos, doutrinas e terminologias como compliance, whistleblowing, cegueira deliberada, strict liability etc. Vê-se a adoção de “menor rigor” à letra da lei e mais flexibilidade interpretativa nas cortes, acrescendo poder às decisões judiciais na formação das jurisprudências, em clara aproximação ao sistema common law.
Na seara empresarial, os efeitos dessa interligalidade também ocorreram. O melhor exemplo vem pela adoção ampla do instrumento do compliance, que surgiu nos Estados Unidos na década de 1960 como mecanismo de proteção do acionista contra malfeitos de seus colaboradores. O instituto ganhou projeção junto aos órgãos da administração pública americana. Visto como poderoso auxílio na coibição de más práticas e ilícitos, o compliance passou a ser fomentado e imposto pelos órgãos públicos daquele país e depois pelos órgãos da supranacionalidade mundo afora. As empresas devem seguir protocolos e adoção de programas rigorosos de compliance, com normativas complexas que garantem a imposição da cultura empresarial e o respeito às leis e normativas internas e externas nos seus modelos de negócios.
Há inúmeras proposições e definições criadas nos órgãos como a OCDE e o Gafi, que norteiam os programas de compliance em questões que envolvem corrupção de agentes públicos, corrupção privada e lavagem de dinheiro. Na doutrina há inclusive desenhos sobre a interpretação do que seja corrupção na seara empresarial, nas relações envolvendo particulares, particulares e entes públicos, seja na troca de benesses ou mesmo oferecimentos de presentes a executivos e agentes públicos, o que pode ou não ser aceito, seu quantum, e aquilo que pode ser oferecido ou não. Tais esforços visam combater um dos maiores inimigos da estabilidade sistêmica econômica, a corrupção. Trata-se de problema que preocupa as autoridades americanas há décadas, tanto que o FCPA [2] é do longínquo ano de 1977.
O interesse norte-americano na coibição da corrupção no exterior sempre teve como mote assegurar às companhias americanas em solo estrangeiro as mesmas condições de competição que em seu próprio país. Assim, coibir a corrupção em outros países, mais sujeitos às influências dos empresários locais junto aos seus governantes, é uma forma de assegurar os investimentos dos cidadãos nas empresas americanas, que competem também com empresas estrangeiras em todos os mercados do mundo globalizado.
O aparato erigido em torno do modo de se comerciar, competir e produzir é fruto da construção e vigília dos órgãos da supranacionalidade. Tais mecanismos foram edificados sistematicamente visando a estruturação mundial dos negócios, dentro de padrões previsíveis e aceitáveis, em cartilhas que pregam a chamada autorregulação regulada. As normas penais econômicas vieram no esteio de assegurar, por meio das penas penais, a ordem econômica local, em cada país, de modo a equilibrar tais sistemas ao todo globalizado.
O Direito Penal Econômico é o último e mais forte recurso para se garantir o equilíbrio dos mercados e dos negócios. Ele objetivará a proteção da economia, terá condão de auxiliar na manutenção da livre e justa concorrência, trazendo aos investidores e ao cidadão, na ponta final, a confiança em uma ordem econômica mais estável e previsível. Protege-se, desse modo, o capitalismo de si mesmo, para que não seja autofágico e não destrua seu maior benefício, que é a livre e justa concorrência do mercado.
Onde entraria Donald Trump nessa história?
O que faz a segunda era Trump tornar-se um hiato no desenvolvimento global aqui demonstrado, é que em apenas seis meses de governo, algumas medidas trazidas pela sua gestão mostram-se frontalmente contrárias a tudo que os EUA vêm desenhando há quase 80 anos.
Como se não bastasse a constante intervenção estatal direta de Trump no mercado econômico mundial, com o jogo de ameaças e significativo aumento de alíquotas no comércio, as suas criticáveis relações pessoais mistas entre o público e o privado, as pouco institucionais manifestações e falas como presidente norte-americano, são capazes, per si, de desmontar por completo o emaranhado de regras e normativas construídas ao longo das décadas. Tal construção, diga-se, feita para assegurar os interesses norte-americanos no seu maior trunfo, a posição de comando do processo de globalização.
O exemplo que vem do Poder Executivo americano, na descuidada relação do privado com o público, ao demonstrar a existência de um apoio “institucional” como política de estado na cartelização e domínio das chamadas big techs, na aceitação como membro de seu estafe de empresário que tem inúmeros negócios com o governo norte-americano, na interferência direta em universidades que são válvulas motrizes do American soft power, na ingerência bélica em outros países sem autorização do congresso americano, dentre outros inúmeros exemplos, são situações novas e extremamente preocupantes.
O que poderia se extrair de tais situações? Há sinalização de uma interrupção do processo de globalização? Se abandonado pelos EUA, esse processo continuaria nos mesmos parâmetros de desenvolvimento, sendo liderado pela Europa Continental e a China? Qual o caminho do Direito Penal Econômico, então, já que vem sendo criado e desenvolvido a partir das fontes da globalização? Devem os governos e as empresas continuarem suas lutas nos processos anticorrupção, em busca de mercados abertos justos e concorrenciais? Ou devem levantar as bandeiras do salve-se quem puder, na defesa do interesse nacional de cada país e cada empresa por si?
Ao que parece, se a situação continuar como está, as fontes do hodierno Direito Penal Econômico acabarão por se modificar, para que não careçam de legitimidade. Na toada do que parece dizer o presidente da nação mãe da globalização, “façam o que eu falo, não façam o que eu faço”, há como se extrair confiança num mercado global em que o maior de seus líderes rasga e ignora suas mais basilares regras?
Trata-se de um momento de perplexidade de grande conteúdo como marco. Aos governantes e empresários resta a tarefa de bem observar os caminhos próximos das gestões públicas e privadas. Aos acadêmicos e estudiosos do Direito Penal Econômico, que se cerquem de cautelas, pois a materialização do direto sempre gera efeitos futuros e prolongados, podendo ficar absolutamente descasado de seu momento histórico.
[1] Assim lecionam, SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 35.
[2] The Foreign Corrupt Practices Act.
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