Opinião

Política pública da transação tributária: quais os próximos passos da infante?

Autores

  • é advogado. Foi membro do Ministério Público Federal de 1987 até 2017 e ministro da Justiça em 2016 no governo Dilma Rousseff. É professor titular de direito internacional da UnB (Universidade de Brasília) pela qual é graduado em direito.

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  • é advogada na Bento Muniz Advocacia pós-graduada em direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/DF.

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26 de junho de 2025, 17h24

A Lei n° 13.988/2020, que instituiu a transação tributária no Brasil, completou cinco anos no dia 14 de abril, com representativos avanços para a redução da litigiosidade e incremento da recuperação dos créditos inscritos em dívida ativa da União.

A infante se consolida como relevante política pública em fase de amadurecimento e desenvolvimento, o que pressupõe monitoramento estratégico por todos os players, sustentado no pilar da transparência, crucial para a boa governança e eficiência das instituições, como reconhece a Organização das Nações Unidas (ONU) no ODS 16 (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável).

Para tanto, é necessário que o ambiente desenvolvido pela Procuradoria da Fazenda Nacional, denominado Regularize, que já permite o monitoramento mensal de negociações [1], possibilite a pesquisa completa de dados pela academia e sociedade e não apenas aqueles referentes às transações já celebradas.

O número de requerimentos protocolizados e em tramitação, em especial aqueles que compreendem os contribuintes com débitos de valor superior a R$ 10 milhões, o prazo médio para que as negociações sejam cristalizadas e os resultados alcançados a partir da contraposição da dívida original e do resultado após a negociação são dados relevantes para compreender a evolução da política pública e que não são apresentados no sistema.

Ademais, o procedimento administrativo, que tem início com a apresentação do requerimento de transação individual pelo contribuinte ou grupo econômico, carece de adequada regulamentação e essa ausência traz impacto para a legalidade e segurança jurídica desejável em ambiente de negociação com ente público.

Massas falidas

Há ainda outro ponto crucial: entender a razão para o reduzido número de transações tributárias até hoje celebradas por entes despersonificados, massas falidas, segundo dados divulgados pela Procuradoria da Fazenda Nacional [2].

É intrigante que a política pública tenha alcançado resultados tão expressivos sem que os entes despersonificados, cujos débitos por decorrência de lei são classificados como irrecuperáveis, tenham contribuído decisivamente para essa conquista.

Spacca

A Lei n° 13.988/2020 expressamente equipara e classifica os créditos de devedores em recuperação judicial, liquidação judicial, extrajudicial ou falência como irrecuperáveis, conforme prevê o artigo 11, parágrafo 5º.

Na Medida Provisória n° 899/2019, que deu ensejo aos debates no Congresso para publicação da Lei n° 13.988/2020, não constava o referido dispositivo e sequer referência aos entes despersonificados. A previsão legal deriva de proposição do Poder Legislativo, e esse esclarecimento é importante porque a vontade do legislador, expressa no ambiente plural da “Casa do Povo”, equiparou na mesma classificação — créditos irrecuperáveis — os devedores em recuperação judicial e falidos.

Nada obstante, há distorções que foram postas por normas posteriores que se distanciaram ou se afastaram do desejo cristalizado pelo legislador no dispositivo de lei.

Devedores em recuperação judicial

É importante lembrar ao leitor que a Lei Complementar n° 95/98, que trata das técnicas de elaboração de leis, prevê expressamente, no artigo 7º, IV, que o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei.  Todavia, a transação para devedores em recuperação judicial não foi disciplinada na Lei n° 13.988/2020 e sim na Lei n° 14.112/2020.

Explica-se, em dezembro de 2020, portanto oito meses após a publicação da lei de transação tributária, sobreveio a Lei n° 14.112/2020, que alterou dispositivos da Lei nº 10.522/2002, norma que estabelece condições para o parcelamento ordinário de débitos inscritos em dívida ativa da União, para estabelecer condições especiais para a transação tributária para os devedores em recuperação judicial, com possibilidade de descontos de até 70%, quando o usual, previsto na Lei n° 13.988/2020 — lei de transação — é de 65%.

Essa alteração restringiu o desconto majorado apenas para a transação tributária celebrada pelo devedor em recuperação judicial, contrariando o desejo inicial assentado no artigo 11, §5º, da Lei nº 13.988/ 2020, que equiparou na mesma classificação os débitos de falidos e devedores em recuperação judicial, como já apontamos.

Hoje, portanto, pessoas jurídicas em recuperação judicial têm direito a desconto superior àquele de massas falidas. E esse é um primeiro ponto relevante. Onde a lei de regência da transação tributária expressamente equiparou, norma posterior criou diferenciação e condições mais benéficas para empresas em recuperação judicial.

Transação individual federal

Se o principal objetivo da Lei de Falência é garantir a satisfação de todos os credores de forma organizada e equitativa, há evidentemente interesse público a preservar, já privilegiado pelo legislador na Lei n° 13.988/2020, e que não admite tergiversação.

Analise-se agora a norma regulamentadora da transação individual federal, a Portaria PGFN n° 6.757/2002, instrumento normativo relevantíssimo para a transação a ser formalizada por contribuintes com débitos inscritos em dívida ativa da União em montante superior a R$10.000.000,00.

A Portaria PGFN nº 6.757/2022 regulamentou os percentuais de descontos limitados à capacidade de pagamento da devedora. A partir da referida regulamentação, o desconto para redução dos valores devidos passou a pressupor a definição da capacidade de pagamento do sujeito passivo que, no artigo 24 da Portaria PGFN n° 6.757/2022, foi dimensionado em quatro categorias, de ‘A’, para créditos com alta perspectiva de recuperação, a ‘D’, para créditos considerados irrecuperáveis.

Cálculo da Capag

Nada obstante a previsão da norma regulamentar, em sua quinta versão, o cálculo da “CAPAG” hoje pressupõe confronto entre dados declarados pelo contribuinte e créditos devidos e, portanto, percentuais de descontos variáveis para cada contribuinte, que não observam as quatro categorias estratificadas na Portaria n° 6.757/2022.

E como é o cálculo da “CAPAG” para as massas falidas? Para os entes despersonificados, o artigo 49 da Portaria PGFN n° 6.757/2022, em sua redação original, previa que a capacidade de pagamento seria calculada tendo como fundamento o valor total de bens e direitos arrecadados e disponíveis confrontado com o montante de créditos a liquidar.

O critério era simplista e não capturava, verdadeiramente, as variáveis envolvidas no potencial pagamento dos débitos da União no cenário financeiro da entidade jurídica despersonificada. Somente em 16 de setembro de 2024, com a publicação da Portaria PGFN MF nº 1.457/2024 que alterou o artigo 49 da Portaria 6.757/2022, foram estabelecidos critérios que permitem melhor densificar ou colocar em números a expectativa de recebimento desses débitos pela Procuradoria da Fazenda Nacional.

Fruto das negociações realizadas e, portanto, da construção da política pública pela vivência social, hoje para a definição da capacidade de pagamento da massa falida é necessário estratificar os seguintes dados:

  • Valor total de ativos arrecadados e disponíveis;
  • Débitos de cada credor, o que pressupõe estabilização mínima do quadro gerais de credores, com a indicação da ordem de pagamento segundo a Lei n° 11.101/2005;
  • Individualização e identificação da ordem de pagamento de todos os entes públicos fazendários.

A definição de critérios orienta os interessados para as rodadas de negociação e debates, com idealização dos números e projeções, em ambiente cooperativo e paritário, que deve ser incessantemente buscado pela Fazenda Nacional para preservar a higidez da revolucionária política pública de transação tributária.

Cultura da pacificação

A cultura da pacificação [3], para usar a expressão adotada por Kazuo Watanabe, reclama a institucionalização de um ambiente para o pleno exercício da cidadania voltado à autocomposição de conflitos pelos indivíduos autônomos, na dimensão de democracia denominada por Luis Alberto Warat de democracia de qualidade total [4].

O diálogo é fundamental e não se revela na simples abertura à comunidade e sim na disposição para ampliar a participação cidadã.

Não é suficiente a simples previsão normativa da política pública de transação tributária, é preciso que a Procuradoria da Fazenda Nacional se abra ao diálogo crítico, que exponha todos os dados e que elucide as razões para dar tratamento tão distante aos devedores em recuperação judicial e aos falidos.

Recentemente, a infante deu um passo além do que estava previsto naquele momento em que publicada a Medida Provisória n° 889/2019.

Na EMI n° 00268/2019 ME AGU, que contempla a exposição de motivos para a publicação da Medida Provisória n° 889/2019, está previsto que a transação tributária tem por objetivo reduzir o estoque de créditos “limitados àqueles classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação”. Nada obstante, em abril a Fazenda Nacional divulgou a Portaria que regulamenta o Programa de Transação Integral (PTI), voltado para a regularização de passivos tributários de devedores com boa saúde financeira, porém com discussões complexas e difícil prognóstico.

A iniciativa é nobre, desde que não se abandone o objetivo inicial e não se esqueça de que o amadurecimento pressupõe, como já apontado, exaustivo trabalho de monitoramento do que já foi realizado por todos os pares, objetivo ainda a ser alcançado.

 


[1] No portal REGULARIZE é possível acessar o painel de parcelamentos em andamento e consultar sua situação — painel do parcelamento. DW PGFN

[2] Os Termos de Transação Individual já celebrados são divulgados aqui

[3] WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: MORAES, Maurício Zanoide; YARSHELL, Flávio Luiz (Coords.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ Ed., 2005, p. 684-690 passim.

[4] WARAT, Luis Alberto. A cidadania e direitos humanos da qualidade total. Disponível aqui

Autores

  • é advogado, sócio titular no escritório Eugênio Aragão Advogados, subprocurador-geral da República aposentado, doutor pela Ruhr-Universität (Alemanha), mestre pela University of Essex (Inglaterra) e graduado pela UnB.

  • é advogada no escritório Eugênio Aragão Advogados, pós-graduada em Direito Constitucional pelo IDP e em Direito Tributário pelo IBET.

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