Política pública da transação tributária: quais os próximos passos da infante?
26 de junho de 2025, 17h24
A Lei n° 13.988/2020, que instituiu a transação tributária no Brasil, completou cinco anos no dia 14 de abril, com representativos avanços para a redução da litigiosidade e incremento da recuperação dos créditos inscritos em dívida ativa da União.
A infante se consolida como relevante política pública em fase de amadurecimento e desenvolvimento, o que pressupõe monitoramento estratégico por todos os players, sustentado no pilar da transparência, crucial para a boa governança e eficiência das instituições, como reconhece a Organização das Nações Unidas (ONU) no ODS 16 (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável).
Para tanto, é necessário que o ambiente desenvolvido pela Procuradoria da Fazenda Nacional, denominado Regularize, que já permite o monitoramento mensal de negociações [1], possibilite a pesquisa completa de dados pela academia e sociedade e não apenas aqueles referentes às transações já celebradas.
O número de requerimentos protocolizados e em tramitação, em especial aqueles que compreendem os contribuintes com débitos de valor superior a R$ 10 milhões, o prazo médio para que as negociações sejam cristalizadas e os resultados alcançados a partir da contraposição da dívida original e do resultado após a negociação são dados relevantes para compreender a evolução da política pública e que não são apresentados no sistema.
Ademais, o procedimento administrativo, que tem início com a apresentação do requerimento de transação individual pelo contribuinte ou grupo econômico, carece de adequada regulamentação e essa ausência traz impacto para a legalidade e segurança jurídica desejável em ambiente de negociação com ente público.
Massas falidas
Há ainda outro ponto crucial: entender a razão para o reduzido número de transações tributárias até hoje celebradas por entes despersonificados, massas falidas, segundo dados divulgados pela Procuradoria da Fazenda Nacional [2].
É intrigante que a política pública tenha alcançado resultados tão expressivos sem que os entes despersonificados, cujos débitos por decorrência de lei são classificados como irrecuperáveis, tenham contribuído decisivamente para essa conquista.

A Lei n° 13.988/2020 expressamente equipara e classifica os créditos de devedores em recuperação judicial, liquidação judicial, extrajudicial ou falência como irrecuperáveis, conforme prevê o artigo 11, parágrafo 5º.
Na Medida Provisória n° 899/2019, que deu ensejo aos debates no Congresso para publicação da Lei n° 13.988/2020, não constava o referido dispositivo e sequer referência aos entes despersonificados. A previsão legal deriva de proposição do Poder Legislativo, e esse esclarecimento é importante porque a vontade do legislador, expressa no ambiente plural da “Casa do Povo”, equiparou na mesma classificação — créditos irrecuperáveis — os devedores em recuperação judicial e falidos.
Nada obstante, há distorções que foram postas por normas posteriores que se distanciaram ou se afastaram do desejo cristalizado pelo legislador no dispositivo de lei.
Devedores em recuperação judicial
É importante lembrar ao leitor que a Lei Complementar n° 95/98, que trata das técnicas de elaboração de leis, prevê expressamente, no artigo 7º, IV, que o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei. Todavia, a transação para devedores em recuperação judicial não foi disciplinada na Lei n° 13.988/2020 e sim na Lei n° 14.112/2020.
Explica-se, em dezembro de 2020, portanto oito meses após a publicação da lei de transação tributária, sobreveio a Lei n° 14.112/2020, que alterou dispositivos da Lei nº 10.522/2002, norma que estabelece condições para o parcelamento ordinário de débitos inscritos em dívida ativa da União, para estabelecer condições especiais para a transação tributária para os devedores em recuperação judicial, com possibilidade de descontos de até 70%, quando o usual, previsto na Lei n° 13.988/2020 — lei de transação — é de 65%.
Essa alteração restringiu o desconto majorado apenas para a transação tributária celebrada pelo devedor em recuperação judicial, contrariando o desejo inicial assentado no artigo 11, §5º, da Lei nº 13.988/ 2020, que equiparou na mesma classificação os débitos de falidos e devedores em recuperação judicial, como já apontamos.
Hoje, portanto, pessoas jurídicas em recuperação judicial têm direito a desconto superior àquele de massas falidas. E esse é um primeiro ponto relevante. Onde a lei de regência da transação tributária expressamente equiparou, norma posterior criou diferenciação e condições mais benéficas para empresas em recuperação judicial.
Transação individual federal
Se o principal objetivo da Lei de Falência é garantir a satisfação de todos os credores de forma organizada e equitativa, há evidentemente interesse público a preservar, já privilegiado pelo legislador na Lei n° 13.988/2020, e que não admite tergiversação.
Analise-se agora a norma regulamentadora da transação individual federal, a Portaria PGFN n° 6.757/2002, instrumento normativo relevantíssimo para a transação a ser formalizada por contribuintes com débitos inscritos em dívida ativa da União em montante superior a R$10.000.000,00.
A Portaria PGFN nº 6.757/2022 regulamentou os percentuais de descontos limitados à capacidade de pagamento da devedora. A partir da referida regulamentação, o desconto para redução dos valores devidos passou a pressupor a definição da capacidade de pagamento do sujeito passivo que, no artigo 24 da Portaria PGFN n° 6.757/2022, foi dimensionado em quatro categorias, de ‘A’, para créditos com alta perspectiva de recuperação, a ‘D’, para créditos considerados irrecuperáveis.
Cálculo da Capag
Nada obstante a previsão da norma regulamentar, em sua quinta versão, o cálculo da “CAPAG” hoje pressupõe confronto entre dados declarados pelo contribuinte e créditos devidos e, portanto, percentuais de descontos variáveis para cada contribuinte, que não observam as quatro categorias estratificadas na Portaria n° 6.757/2022.
E como é o cálculo da “CAPAG” para as massas falidas? Para os entes despersonificados, o artigo 49 da Portaria PGFN n° 6.757/2022, em sua redação original, previa que a capacidade de pagamento seria calculada tendo como fundamento o valor total de bens e direitos arrecadados e disponíveis confrontado com o montante de créditos a liquidar.
O critério era simplista e não capturava, verdadeiramente, as variáveis envolvidas no potencial pagamento dos débitos da União no cenário financeiro da entidade jurídica despersonificada. Somente em 16 de setembro de 2024, com a publicação da Portaria PGFN MF nº 1.457/2024 que alterou o artigo 49 da Portaria 6.757/2022, foram estabelecidos critérios que permitem melhor densificar ou colocar em números a expectativa de recebimento desses débitos pela Procuradoria da Fazenda Nacional.
Fruto das negociações realizadas e, portanto, da construção da política pública pela vivência social, hoje para a definição da capacidade de pagamento da massa falida é necessário estratificar os seguintes dados:
- Valor total de ativos arrecadados e disponíveis;
- Débitos de cada credor, o que pressupõe estabilização mínima do quadro gerais de credores, com a indicação da ordem de pagamento segundo a Lei n° 11.101/2005;
- Individualização e identificação da ordem de pagamento de todos os entes públicos fazendários.
A definição de critérios orienta os interessados para as rodadas de negociação e debates, com idealização dos números e projeções, em ambiente cooperativo e paritário, que deve ser incessantemente buscado pela Fazenda Nacional para preservar a higidez da revolucionária política pública de transação tributária.
Cultura da pacificação
A cultura da pacificação [3], para usar a expressão adotada por Kazuo Watanabe, reclama a institucionalização de um ambiente para o pleno exercício da cidadania voltado à autocomposição de conflitos pelos indivíduos autônomos, na dimensão de democracia denominada por Luis Alberto Warat de democracia de qualidade total [4].
O diálogo é fundamental e não se revela na simples abertura à comunidade e sim na disposição para ampliar a participação cidadã.
Não é suficiente a simples previsão normativa da política pública de transação tributária, é preciso que a Procuradoria da Fazenda Nacional se abra ao diálogo crítico, que exponha todos os dados e que elucide as razões para dar tratamento tão distante aos devedores em recuperação judicial e aos falidos.
Recentemente, a infante deu um passo além do que estava previsto naquele momento em que publicada a Medida Provisória n° 889/2019.
Na EMI n° 00268/2019 ME AGU, que contempla a exposição de motivos para a publicação da Medida Provisória n° 889/2019, está previsto que a transação tributária tem por objetivo reduzir o estoque de créditos “limitados àqueles classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação”. Nada obstante, em abril a Fazenda Nacional divulgou a Portaria que regulamenta o Programa de Transação Integral (PTI), voltado para a regularização de passivos tributários de devedores com boa saúde financeira, porém com discussões complexas e difícil prognóstico.
A iniciativa é nobre, desde que não se abandone o objetivo inicial e não se esqueça de que o amadurecimento pressupõe, como já apontado, exaustivo trabalho de monitoramento do que já foi realizado por todos os pares, objetivo ainda a ser alcançado.
[1] No portal REGULARIZE é possível acessar o painel de parcelamentos em andamento e consultar sua situação — painel do parcelamento. DW PGFN
[2] Os Termos de Transação Individual já celebrados são divulgados aqui
[3] WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: MORAES, Maurício Zanoide; YARSHELL, Flávio Luiz (Coords.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ Ed., 2005, p. 684-690 passim.
[4] WARAT, Luis Alberto. A cidadania e direitos humanos da qualidade total. Disponível aqui
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