Não há golpe de Estado dentro das 'quatro linhas' da Constituição
26 de junho de 2025, 13h14
Não há golpe de Estado constitucional. Por isso, a importância da Constituição. O tema está na ordem do dia. Vamos abordar questões do golpismo à brasileira e a nossa frágil democracia colocada recentemente em risco.
Há o entrelaçamento entre o jurídico e o político. Ou seja, trata-se do debate constitucional-penal-político.
Não podemos fingir que nada aconteceu e banalizar os crimes que afrontam à Constituição e à democracia.
Houve, sim, um levante golpista!
O mínimo a esperar é que os responsáveis sejam julgados, com direito à ampla defesa e contraditório e, uma vez comprovada as culpabilidades, punidos.
Vamos lá. O ex-presidente Jair Bolsonaro jura que nunca quis sair das quatro linhas da Constituição. Tudo bem. Ninguém é obrigado a se autoincriminar ou a produzir prova contra si mesmo, previsto constitucionalmente (artigo 5º, inc. LXIII, da CF).
Aliás, a Quinta Emenda à Constituição dos Estados Unidos estabelece que: “ninguém pode ser obrigado, em um processo criminal, a ser testemunha contra si mesmo”.
Porém, segundo denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) e recebida pelo STF, o ex-presidente Bolsonaro cometeu o crime de golpe de Estado e outros.
Direito à não incriminação
O direito à não incriminação surgiu durante o Iluminismo, no século 18. Foi uma resposta às práticas da inquisição conduzida pelo absolutismo monárquico e pela Igreja.
A confissão era a prova principal, ou seja, rainha das provas, muitas vezes obtida por meio da nojenta tortura.
Pois é. Ainda bem que, na democracia, todos têm os direitos fundamentais humanos garantidos de: permanecer em silêncio e de não falar a verdade.
Tortura na ditadura
Ah, cá pra nós, se fosse na ditadura, os réus do golpe de Estado: seriam torturados no pau-de-arara, passariam por choques elétricos nos dentes, órgãos genitais, ouvido, sofreriam golpes nas orelhas, pés e mãos, estupros, teriam as unhas arrancadas por alicate.

É uma triste e tormentosa viagem ao inferno!
O passado não passou. Não temos ódio, mas memória…
O médico e psicanalista Hélio Pelegrino [1] explica: “a tortura destrói a unidade do ser humano e procura o cisalhamento do indivíduo em duas partes antagônicas: seu corpo e sua mente”.
No mesmo sentido, Leonardo Boff [2]: “A tortura cinde a pessoa ao meio. Coloca a mente contra o corpo”.
Golpe de Estado “dentro das quatro linhas” da Constituição?
A resposta é bem simples: não, não e não! Não há como justificar o injustificável. Seria uma perversão da Constituição!
Não há golpe de Estado constitucional!
A Constituição que é a maneira de ser do Estado seria rasgada! Surgiria um novo Estado ditatorial. A propósito, vale lembrar de que o golpe de Estado se caracteriza com a ruptura da ordem constitucional, onde o governo eleito democraticamente é derrubado de maneira ilegal.
O fuzil dominaria a lei. A Constituição passaria a ser uma folha de papel como dizia Lassale. Não valeria a força normativa, como ensina Konrad Hesse.
Golpismo à brasileira
Mas, infelizmente, o golpismo, está no DNA das nossas elites. Fomos colônia de exploração de Portugal, o modo de produção escravista acabou em 1888, monarquia, República Velha e Nova, ditadura e democracia.
A propósito, a nossa democracia está em construção: Não há democracia econômica, política, racial e cultural. Pior: o deus mercado governa as democracias.
Será que o mercado quer a felicidade geral da nação? Será? É direito fundamental à busca da felicidade. Está implicitamente na Constituição.
Uma coisa: Pelas minhas contas, na nossa formação social, após a independência, em 1822, tivemos nove golpes de Estado. Tudo isso? Sim!
Tentativa já configura golpe de Estado
No golpe de Estado é punido a tentativa: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído” (art. 359-M, CP). Observa-se que a lei prevê, expressamente, na descrição da figura típica, a conduta de tentar o resultado.
O crime é doutrinariamente classificado como atentado ou empreendimento, envolvendo conduta coletiva e divisão de tarefas.
Por outras palavras, não existe o crime de golpe de Estado. Só existe o crime de tentar dar o golpe de Estado. Por quê? Porque, caso o golpe seja bem-sucedido, não haveria punição. ao grupo golpista que assumissem o poder.
É uma questão de lógica!
Pois então. O legislador optou por punir os atos preparatórios ao golpe de Estado devido à sua natureza lesiva e perigosa a fim de evitar o Estado de Exceção que prostitui a Constituição. Não poderia ser diferente.
Explico: Pensar não é crime. Não é problema. É a fase da cogitação. Porém, planejar o golpe de Estado já seria a consumação do crime. A tentativa já seria o crime.
Por exemplo, a realização de várias reuniões com estratégias de depor o governo eleito legitimamente ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: É um crime de empreendimento, com a participação vários agentes e divisão de tarefas.
O legislador, por exceção, faz essa previsão em dois crimes especiais: Abolição violenta do Estado Democrático de Direito e Golpe de Estado. No tipo penal vem o verbo: tentar.
De outra maneira: A tentativa já é crime! É que se tivesse dado certo o golpe de Estado, eu não estaria aqui escrevendo…
O 8 de janeiro
Um exemplo triste foi o episódio de 8 de janeiro, inaceitável em uma democracia, com a depredação da Praça dos Três Poderes por manifestantes pedindo intervenção militar. Eles protestavam sem motivo contra o resultado das eleições do presidente eleito pela maioria.
Importante: Fica claro e visível que, o 8 de janeiro, não existiria sem a articulação golpista. É fato.
Bárbaros invadiram os prédios. Destruíram tudo que viam pela frente. Destruição fascista. Destilaram um ódio maior ao STF. O neofascismo o elegeu como inimigo. É negacionismo jurídico.
Não bastasse o negacionismo científico onde o Brasil chegou à marca de 700 mil mortes por Covid-19.
São ataques ferozes às instituições sob uma capa de liberdade e democracia e, hipocritamente, misturando: Deus, Pátria e Família (maiúsculas compulsórias).
Dizer o quê? Foi uma baderna o 8 de janeiro? Não, mesmo! Colocar pessoas na entrada dos quartéis pedindo intervenção militar foi a última estratégia para demonstrar uma suposta revolta popular e tentar conseguir a adesão das Forças Armadas.
Por óbvio, tudo isso fazia parte do golpe! O caos foi fomentado como pretexto para tentar deflagrar um golpe. Que por sorte não ocorreu!
Generais descartaram o golpismo
Prevaleceu o legalismo dos generais chamados de “melancias”. Foi louvável. Não quiseram embarcar na aventura do capitão em implantar uma ditadura no país.
Não há ditadura boa: seja de direita, à esquerda, das mídias, militar, econômica, cultural, religiosa e do Judiciário.
Aliás, o general Tomás, comandante do Exército, foi meu colega na Escola Preparatória de Cadetes do Exército. Éramos da mesma companhia de alunos.
Um ponto: as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes essências na democracia. Pertencem ao povo. Nada do “meu Exército” como dizia Bolsonaro, que, aliás, sequestrou os símbolos nacionais.
Mas os militares não são poder moderador. O STF já pacificou a questão afastando a interpretação errada do artigo 142 da Constituição.
Não existe a tutela da sociedade civil pelos militares.
O nosso fascismo
Uma pausa: Chegou em minhas mãos o livro Trincheira Tropical- A Segunda Guerra Mundial no Rio, do acadêmico e jornalista Ruy Castro [3] No primeiro capítulo, intitulado “O nosso fascismo”, é mencionada a Ação Integralista Brasileira (AIB), criada por Plinio Salgado na década de 1930.
Este movimento, inspirado no fascismo de Mussolini, baseava-se na tríade: Deus, Pátria e Família (maiúsculas compulsórias). Além disso, Castro menciona que, em 1931, Mussolini recebeu Plinio Salgado no Palazzo Venezia.
A extrema-direita saia do armário com o integralismo. Logo depois, com a ditadura de Vargas, o Estado Novo, a ditadura de 1964.
Hoje, em pleno século 21, a partir de 2018, o fantasma do slogan: Deus, Pátria e Família é ressuscitado entrando na política, pela extrema-direita, através do bolsonarismo.
O bolsonarismo é um fenômeno social de ressentimento
Por sinal, pela boa história o bolsonarismo é: militarista, autoritário, populista digital, fundamentalista, messiânico, culto à personalidade – com a ideia do “mito”, armamentista, negacionista, conservador aos costumes e à maior inclusão social, com discurso do ódio e desinformação nas redes, tem elementos neofascistas, desprezo às comunidades LGBTQIA+ e desrespeito aos direitos humanos fundamentais.
A historiadora, antropóloga, professora da USP, escritora e acadêmica Lilia Schwarcz [4], diz que “o bolsonarismo é um fenômeno social de ressentimento” e que “não tenho nenhuma dúvida de que Jair Bolsonaro vai para o lixo da história”.
Fraude nas eleições?
Voltando: Muitos dizem que a eleição à presidência foi fraudada, inclusive o ex-chefe do Executivo Bolsonaro. Pior: Sem nenhuma prova.
É a realidade fraudulenta. Essas alegações, por óbvio, estimularam os protestos de cunho golpistas do dia 8 de janeiro.
Na verdade, a narrativa falsa da fraude nas eleições, em 2022, era para gerar uma condição objetiva para o golpe de Estado. A condição subjetiva seria ter o apoio dos generais do Alto Comando do Exército.
Bolsonaro não apresentou nenhum dado para sustentar as suas afirmações de fraude nas urnas. Nem poderia. As evidências mostram o contrário. Somente apresentou declarações tóxicas contra ministros do STF. No entanto, ele tentou encontrar indícios de fraude. Não consegui.
É a teoria da conspiração. Ela afirma que o sistema de votação pode ser fraudado desde a fabricação das urnas até a totalização dos resultados.
Mas, é tudo no gogó com uma retórica violeta: No populismo digital. Não prova por a+ b.
Desde as eleições de 1996, quando as urnas eletrônicas foram usadas pela primeira vez, não houve comprovação de fraude. O Brasil, sim, é a maior autoridade em eleições digitais.
Estado de sítio, estado de defesa e prisão
O tenente-coronel do Exército Mauro Cid declarou em seu depoimento no dia 9 de junho, no STF:
“Com a fraude na urna, poderia convencer os militares, dizendo que a eleição foi fraudada e, talvez, a situação mudasse”. “Foi levado esse documento (minuta) ao presidente. O documento consistia em duas partes. A primeira parte eram os considerados (…) Na segunda parte, entrava em uma área mais jurídica, estado de defesa, estado de sítio e prisão de autoridades”
Segundo Cid, após as alterações feitas por Bolsonaro, a minuta passou a prever somente a prisão do ministro Alexandre de Moraes. A investigação da Polícia Federal demostrou que Kids pretos monitoravam Alexandre de Moraes.
De outro modo: a minuta do golpe passou, sim, pelo Palácio do Planalto.
Afinal, pode o ex-presidente convocar comandantes militares sem justificativa para discutir Estado de Defesa ou Sítio após perder eleições? O que está por trás da moral?
É normal? É claro que não! A reunião no Palácio do Planalto visava e pulsava claramente empreender um golpe de Estado. Bolsonaro estava no centro de gravidade da trama golpista.
Pois então. A Constituição prevê a decretação de estado de sítio ou de defesa em situações extremamente excepcionais. Não obstante, o inconformismo com o resultado da eleição não é uma das hipóteses previstas na Constituição.
Isso tem nome: é golpe de Estado! Sim, podem ler de novo, G-O-L-P-E!
Uma palavra final: sabemos que a delação é meio de obtenção de prova. Porém, as declarações de Mauro Cid foram corroboradas pelas testemunhas: Freire Gomes, então comandante do Exército, e Baptista Junior, então comandante da Aeronáutica.
Lendo com atenção a peça acusatória de 272 folhas, com honestidade intelectual, nota-se que a denúncia se sustenta, independentemente, da colaboração premiada, que, por si, não pode levar a uma condenação.
Não há o direito fundamental de tentar o golpe de Estado. É crime. O povo tem o sagrado direito de democracia. Punir com rigor os responsáveis após o devido processo legal, para evitar novos levantes golpistas e fortalecer o Estado Democrático de Direito.
O preço da liberdade é a eterna vigilância!
Referências
[1] PELLEGRINO, Hélio, A Burrice do Demônio, 1990, 2ª edição., Editora Rocco.
[2] BOFF, Leonardo, Tortura como cisão da mente e do corpo, https://leonardoboff.org/2012/11/21/tortura-como-cisao-de-mente-e-corpo/
[3] CASTRO, RUY, Trincheira Tropical- A Segunda Guerra Mundial no Rio, p.14, 2025, Companhia das Letras;
[4] LCHWARCZ, Lilia, O bolsonarismo é um fenômeno social de ressentimento, Jornal do Campus-USP,
https://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2022/10/lilia-schwarcz-o-
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